Bárbara, Carrilho e o PÚBLICO
JOÃO MIGUEL
TAVARES 29/01/2015 - PÚBLICO
Qualquer pessoa bem formada acha que o combate à violência doméstica deve
ser uma prioridade nacional e impressiona-se muito com o facto de a cada nove
dias uma mulher ser assassinada pelo seu companheiro ou ex-companheiro em
Portugal.
A dimensão do
problema é assustadora: as ocorrências registadas na PSP e na GNR superam as 20
mil por ano – estamos a falar de 55 pessoas a ser agredidas diariamente. Mas
quando saímos dos números abstractos e descemos até às situações concretas,
como é o caso das notícias que envolvem Manuel Maria Carrilho e Bárbara
Guimarães, aí as mesmas pessoas bem formadas começam logo a torcer o nariz,
lamentando a “lavagem de roupa suja”.
Bater numa mulher é noticiável em forma de
relatório ou de estatística. Ao nível da vida dura, das acusações mútuas e das
nódoas negras, parece que já não é. Nesse caso, transforma-se rapidamente numa
coisa “lá deles”. Os jornais respeitáveis que fiquem de fora – mesmo que exista
um despacho de acusação do Ministério Público envolvendo duas figuras públicas,
mesmo que uma antiga mulher tenha dado a cara ao DN para confirmar actos de
violência, mesmo que tenha havido uma longa série de entrevistas, depoimentos,
e até conferências de imprensa inqualificáveis por parte de Carrilho. Tudo
público. Mas nada para o PÚBLICO.
“A verdade é que nós
não estamos a par dos factos. Espere-se que em tribunal tudo se esclareça”,
escreveu um leitor numa caixa de comentários. “Custa-me ver o PÚBLICO a ser
arrastado para este tipo de mexericos”, podia ler-se numa carta à directora. “É
por demais evidente que um jornal como o PÚBLICO, dito de referência, não
deveria colocar os seus jornalistas a transcreverem um despacho do Ministério
Público sobre a acusação a Manuel Maria Carrilho. Sinceramente, acho que há
matéria bem mais importante para publicar”, queixou-se um leitor ao provedor
deste jornal.
Como bem
salientou o provedor, há duas questões distintas. Uma, é saber se o PÚBLICO
deveria ter publicado o despacho da acusação sem ouvir Carrilho (não devia, e
se o contactou deveria tê-lo escrito, ainda que, duas semanas antes, o jornal
tivesse agido da mesma forma ao noticiar o processo que Carrilho interpôs
contra Bárbara Guimarães). Outra questão, bem diferente, e que me interessa
mais, consiste em saber se o PÚBLICO deve ou não noticiar este tema. E aí, a minha
resposta – tal como a do provedor – é um redondíssimo e gritado “sim”.
A violência
doméstica foi tornada crime público em 2000, exactamente para promover a quebra
do silêncio e impedir que estes casos morressem entre quatro paredes. Marinho
Pinto, enquanto bastonário da Ordem dos Advogados, chegou a opor-se a essa
tipificação, argumentando que ela inviabiliza a desistência do processo, ainda
que a vítima assim o pretenda. Ora, a ideia é precisamente essa – impedir a
chantagem do mais forte sobre o mais fraco. Essa decisão teve evidentes efeitos
positivos, dando coragem às mulheres (sobretudo elas) para enfrentarem os seus
medos e denunciarem os abusos. Mas, pelos vistos, ainda falta dar mais um
passo: compreendermos todos, enquanto leitores de jornais de referência, que
existe uma responsabilidade social em noticiar e investigar a violência
doméstica, por mais escabroso que um caso nos pareça. Classificar o que se está
a passar entre Carrilho e Bárbara como “mexericos” não é uma manifestação de
bom gosto – é apenas uma manifestação de insensibilidade para com uma das
maiores chagas sociais deste país.
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