Se descarrilar, descarrilou
PEDRO SOUSA
CARVALHO 16/01/2015 / PÚBLICO
O Banco Central
da Suíça surpreendeu ontem ao anunciar o fim da ligação do franco ao euro. O
“peg” do franco suíço ao euro era uma espécie de cordão umbilical que ligava os
suíços à moeda única e remontava à década de 70. Nessa altura, os suíços já
tinham de combater um franco forte e impuseram não só taxas de juro negativas,
mas também um tecto ao câmbio face ao marco alemão. Em 2011, novamente para
evitar a sobrevalorização da moeda e para evitar o contágio da crise do euro, a
Suíça voltou a colocar um travão à valorização da moeda (1,20 francos por cada
euro) que ontem surpreendente deixou cair.
É um sinal claro
de que os helvéticos estão a antecipar que na próxima semana o Banco Central
Europeu (BCE) vá anunciar um gigantesco plano de compra de dívida que irá
inundar o mercado de euros. E os suíços, cujas reservas de moeda estrangeira
mais do que duplicaram nos últimos três anos, sabem que não podem aguentar a
qualquer custo um câmbio com uma aba fixa e, como tal, resolveram abandonar o
“peg”. Para evitar que haja uma corrida excessiva ao franco, que poderia ser
altamente prejudicial para as empresas exportadoras como a Swatch ou a Nestlé,
o Banco Central colocou a taxa de juro negativa em 0,75%. Não serviu de muito.
O franco suíço, visto como moeda de refúgio, chegou ontem a disparar quase 30%
face ao euro.
“É uma clara
capitulação”. Foi assim que reagiu Jeremy Cook, do World First, em declarações
ao Guardian: “A pressão e a crença de que o BCE vai lançar na próxima semana um
programa de compra de obrigações – provocando uma desvalorização ainda maior no
euro – foi o suficiente para que o banco suíço saísse do caminho”. Este
economista diz que “ninguém consegue ganhar quando se coloca à frente de um
comboio em andamento”.
Já se percebeu
que Mario Draghi quer colocar o comboio do euro a andar a todo o vapor e já na
próxima semana deverá anunciar, para desconsolo dos alemães, um ambicioso plano
de compra massiva de dívida pública, para aliviar os balanços dos bancos da
região e injectar dinheiro na economia. O quantitative easing significará
atirar toda a lenha para a fogueira. Resta saber se é desta que a economia
europeia regressa aos carris e afasta a ameaça da deflação, ou se é desta que
descarrila de vez.
Esta semana, o
Tribunal de Justiça Europeu veio desobstruir o caminho ao BCE, afirmando que o
Banco Central tem toda a legitimidade para fazer programas de compra de dívida
como o Outright Monetary Transactions (OMT) que foi lançado em 2012. O OMT
acabou por nunca ser activado, mas só a sua mera existência (e as palavras de
Mario Draghi de que tudo faria para defender o euro) funcionou como escudo para
proteger a moeda única e aliviar os juros da região.
Mas o OMT tinha
um pecado original: foi feito à medida da Espanha e da Itália. Predispunha-se a
comprar dívida soberana apenas dos países que estivessem sujeitos a algum tipo
de programa acordado com as instituições europeias e que tivessem um acesso
garantido e regular aos mercados. Portugal e Grécia, na altura sem acesso aos
mercados, estavam automaticamente proscritos.
O novo programa
que será anunciado pelo BCE poderá padecer do mesmo problema se se confirmar
que apenas comprará dívida com um rating acima de investment grade, o que
deixará novamente de fora os países periféricos do euro. Quem defende esta
opção argumenta que Portugal e Grécia acabarão por beneficiar indirectamente
quando os juros dos países beneficiados pelo programa caírem para terreno
negativo. Nesse cenário, os investidores voltariam a procurar dívida portuguesa
e grega por terem rendibilidades positivas. Quem defende esta teoria está a
dizer que os grandes países do euro farão um grande banquete à custa do BCE e
pode ser que sobre alguma migalha para países como Portugal e Grécia.
Aliás, esta
tentação de puxar pela Europa a duas velocidades e esta teoria das migalhas
também se aplica claramente à flexibilização das regras do Pacto de
Estabilidade e Crescimento (PEC) que foi decidida esta semana e que só permite
fechar os olhos à derrapagem do défice – pela via do investimento e do plano
Juncker – se os países em causa estiverem fora dos procedimentos por défices
excessivos. Os defensores desta flexibilização, feita à medida da Itália e da
França, defendem que países como Portugal e Grécia, apesar de não poderem
beneficiar no imediato, irão ganhar pela via das exportações. Quando a França e
a Itália descolarem, vão comprar mais pastéis de nata a Portugal e queijo feta
à Grécia. Migalhas, digo eu.
É a percepção
desta tentativa de perpetuar uma Europa a duas velocidades, uma Europa de
filhos e enteados, que vai levar a que, na próxima semana, mais de 30% dos
gregos votem num partido de esquerda radical para governar o país. Merkel já
terá ameaçado: se o Syriza ganhar as eleições, a Grécia provavelmente salta
borda fora do comboio europeu. A Alemanha que anunciou esta semana que o seu
PIB cresceu 1,5% em 2014, que o défice foi de zero, algo que já não acontecia
desde 1969, e que a taxa de desemprego caiu para um mínimo histórico de 6,5%. Alexis
Tsipras já respondeu a Merkel: se a Grécia sair, pode ser o fim do euro. Claro
que a ameaça de Tsipras faz lembrar aquela anedota "da formiga que está a
atravessar a linha do comboio e fica com o pé preso nos carris. Depois de um
esforço e a ver o comboio aproximar-se desiste e diz: 'Que se lixe, se
descarrilar, descarrilou'..." A Europa não vai descarrilar por causa da
Grécia, que representa apenas 2% do PIB da região. E a Grécia também não irá
desaparecer se abandonar o euro. Tal como na Suíça, ao final do dia, tudo se
resume a uma questão de câmbios. Um regresso e uma desvalorização do dracma,
como explicava ontem Hans-Werner Sinn do Ifo ao Diário Económico, iria dar
competitividade às empresas gregas, os gregos deixariam de ter dinheiro para
importar, voltariam a produzir e a construir novas fábricas. Quando chegarmos
todos à conclusão que o projecto europeu se resume a uma questão cambial, é
porque terá chegado a altura de acabar com ele.
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