Os novos cossacos da Ucrânia
PAULO MOURA (Texto) e OLYA MORVAN/WOSTOK PRESS KIEV
(Fotografia, em Kiev) / PÚBLICO
A revolução de Maidan foi executada por um exército
organizado à maneira dos cossacos, uma espécie de cowboys do século XV no
imaginário ucraniano. Os Sotnia são unidades militares de autodefesa criadas
por civis, iguais às da ilha dos cossacos de Sich, no Dniepre. O nacionalismo,
a democracia directa, o poder emanado de baixo para cima, o sentido da honra e
da seriedade, mas também o amor pela violência e o ódio ao estrangeiro, tudo
isso vem dessa fronteira dos tempos míticos e define hoje o movimento de Maidan
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Ievgen Shulga é jogador profissional de póquer. Formou-se em
Matemática Aplicada e chegou a trabalhar como engenheiro de Tecnologias de
Informação (IT). Mas o póquer, que começou por ser um hobby, era mais rentável,
pelo que se dedicou a ele a tempo inteiro. Além de uma outra actividade,
complementar, de investidor em acções e fundos.
Ievgen, que tem 26 anos, cabelo louro, compleição esguia e
olhar perspicaz, vivia com a mulher em Lviv, na parte ocidental da Ucrânia, mas
deslocava-se frequentemente ao estrangeiro, para participar nos grandes
festivais de póquer, principalmente em Monte Carlo e Barcelona.
Conhecia portanto muito bem a Europa do Ocidente, e
aborrecia-o toda a burocracia necessária para pedir um visto, de cada vez que
ia trabalhar. Esperava ansiosamente pela entrada da Ucrânia na União Europeia,
processo de aproximação que estava em curso, designadamente através da
assinatura de um acordo comercial entre Kiev e Bruxelas, há muito anunciado.
Quando o então Presidente, Viktor Ianukovich, desistiu desse
acordo em favor de um outro com Mosvovo, alguns estudantes saíram para as ruas
em protesto. O que estava em causa era um estilo de vida e uma perspectiva de
futuro. Uma grande parte dos ucranianos sente-se muito mais identificada com a
Europa do que com a Rússia. Principalmente no Oeste do país, onde vastas
regiões pertenceram no passado à Polónia ou ao Império Austro-húngaro, e só com
as confusões da Segunda Guerra Mundial acabaram dentro da União Soviética.
“Sinto-me totalmente identificado com a Europa, não tenho
nada a ver com a Rússia”, diz Ievgen com uma gargalhada. “A Rússia é um país
morto. Andam todos bêbedos…”
O ressentimento com a Rússia é muito generalizado e tem os
seus motivos. Durante os tempos soviéticos, Moscovo forçou a deportação de
milhões de pessoas em processos de limpeza étnica. Uma espécie de reforma
agrária aplicada à força levou à morte por fome de mais de 10 milhões de
pessoas (uma catástrofe que os historiadores tendem hoje a considerar um
genocídio, por ter sido provocada, deliberadamente, para reduzir o peso da
população ucraniana, e aplacar o crescente nacionalismo). A língua ucraniana
foi proibida e perseguida, bem como a religião católica. E já depois da queda
da URSS, em 1992, Moscovo nunca deixou de tentar exercer a sua influência (ou
manipulação) económica e política sobre os líderes de Kiev.
A preferência pela Europa em detrimento da Rússia tem
portanto raízes históricas, mas é também uma opção pela democracia, a
liberdade, o Estado de direito, e a rejeição da autocracia, o autoritarismo, a
arbitrariedade e a corrupção. Pelo menos é assim que a dicotomia surge
desenhada na imaginação das pessoas, a par com uma noção de patriotisno que
está intimamente ligada com a de independência.
O sentimento nacionalista, que vê a Rússia como inimigo, é
muito forte nas regiões ocidentais da Ucrânia. No Leste e Sul, bem como na
península da Crimeia, zonas onde a população de etnia e língua russa é
significativa, ou mesmo maioritária, o sentimento nacionalista é substituído
por uma proximidade económica e afectiva com a Rússia.
“Eu andava preocupado, porque eles nunca mais assinavam o
acordo com a UE”, conta Ievgen. “E quando anunciaram o cancelamento, pensei que
tinha de fazer qualquer coisa”.
“Se eu não o fizer, quem o fará?”
Muitos jovens na capital pensaram o mesmo, e saíram à rua,
para se manifestarem pacificamente na Praça da Independência, a Maidan. Em Lviv
também houve protestos, com um carácter mais organizado e mais politizado. Mas
sem o impacto mediático internacional dos protestos de Kiev.
“O movimento começou em Lviv”, diz Ievgen. “Todos os
movimentos começam lá. Kiev é muito mais difícil de acordar. Por isso nós, no
Ocidente, pensámos que era nossa obrigação ir para Kiev. Se eu não o fizer,
quem o fará?, pensei”.
Ievgen Shulga chegou a Kiev, com dois amigos, em 24 de
Novembro do ano passado, no início dos protestos do chamado Euromaidan. “Na
altura, isto era apenas um grupo de estudantes a cantar canções numa zona do
parque. Os problemas começaram quando um grupo deles quis subir a rua, em
direcção ao Parlamento, para aí fazerem ouvir as suas reivindicações”.
A polícia bloqueou a rua Grushevska, que liga a Praça da
Independência e o largo do Parlamento, impedindo a passagem dos estudantes.
“Nós organizámos um ‘avanço pacífico’, tentando forçar a passagem, sem
agressão. Mas era muito difícil impedir as pessoas de atirar coisas aos
polícias. Alguns começaram a agredir, a atirar pedras. Mas a verdade é que a
polícia também não deixava passar aqueles que se mantinham pacíficos”.
Até que, junto à igreja da rua Michaelevski, a polícia
agrediu mesmo os estudantes. Foi aí que tudo se tornou mais sério. Era preciso
organizar as pessoas, para se defenderem, para se protegerem. E também para
evitar excessos, que se tornariam perigosos. Mais uma vez, Ievgen, o jogador de
póquer, pensou: “Se não sou eu a fazê-lo, quem o fará?”
Como era ele que tinha o megafone na mão, para gritar as
palavras de ordem pró-europeias, começou a chamar os manifestantes, para se
inscreverem num grupo. “Estávamos ali uns 150 ou 200, e eu comecei a dizer-lhes
que tínhamos de nos organizar. Distribuir tarefas, recolher recursos,
equipamento de defesa, armas, dinheiro. As pessoas deram o nome, e criámos o
primeiro Sotnia. A partir daí, tudo foi muito rápido”.
Já alguém tinha instalado, na praça, umas caixas para a
recolha de donativos. A primeira tarefa do Sotnia foi aceder ao dinheiro que já
havia, para fazer umas compras. Foi nesse momento que Ievgen conheceu um homem
que viria a ter um papel fundamental em todo o movimento de autodefesa de
Maidan: Andrei Parubi. Era um deputado do oposicionista Pátria, o partido
chefiado por Iulia Timoshenko, que estava na prisão, condenada por abuso de
poder. Parubi fora no passado o fundador de alguns movimentos nacionalistas
radicais, mas acabara por se convencer que a melhor forma de combater a
corrupção era o debate parlamentar, integrado num partido com força eleitoral.
Mas agora tinha voltado à acção de rua, e estava no
Euromaidan a dar apoio aos estudantes. Por alguma razão, era ele que tinha
acesso às caixas de donativos, mas quando Ievgen lhe expôs a sua ideia,
concordou de imediato. Abriu as caixas e deixou que o dinheiro fosse usado na
aquisição de algumas centenas de capacetes de plástico vermelho, daqueles que
são usados nas obras de construção civil.
Ievgen foi assim o criador do primeiro Sotnia, mas como logo
a seguir teve de regressar por cinco dias a Lviv, por causa das obrigações
profissionais, não ficou a dirigir esse primeiro grupo, crismado como Sotnia
número 1. Criou outro quando chegou, o Sotnia número 2, em que ainda está
integrado, que ficou baseado no mesmo local, onde ocorreram as primeiras
escaramuças — a rua Grushevska, que dá acesso ao Parlamento. Construiram ali
uma tenda, onde viveram mais de um mês.
E quando a luta começou a sério, a 19 de Janeiro, estavam na
linha da frente. Dois dias depois construíram uma barricada, que durante muito
tempo foi a linha de separação entre as duas forças em confronto. Lançavam
pedras e cocktails molotov, defendiam-se com escudos. “A certa altura
percebemos que se trouxéssemos pneus e os incendiássemos, criaríamos uma
cortina de fumo que nos era favorável. O vento soprava sempre na direcção dos
polícias, e por isso eles ficavam no meio de uma nuvem, onde não viam nada. Nós
lançávamos ‘ataques pacíficos’, embora fosse muito difícil mantê-los pacíficos.
A 18 de Fevereiro começou a guerra”.
A organização por Sotnias passou a ser necessária. “Nós
somos um exército revolucionário”, disse à Revista 2 Andrei Parubi, que
entretanto se tornou o comandante incontestado do movimento. “Depois de dois
dias de luta, com mortos e feridos (eu próprio fui ferido na rua Grushevska),
foi preciso organizar as pessoas, para as proteger. Havia medo dos saques,
porque muitos aproveitavam-se da confusão para assaltar casas e escritórios, e
havia medo que grupos descontrolados ocupassem os edifícios administrativos.
Era preciso também defender esses sítios. Tivemos de nos organizar e avançar
para a zona de conflito. Mas não devemos ser vistos como uma unidade de
polícia. Antes como um exército revolucionário”.
Como tal, foi preciso criar uma estrutura hierárquica,
cadeia de comando, sistema de informação, treino militar. E o modelo a copiar
não podia ser o do exército soviético, que os veteranos de guerra ucranianos
conhecem bem. Não podia por razões psicológicas, e também operacionais. O
Exército Vermelho era imperialista. A nova força teria de se inspirar num
modelo de movimento patriótico, independentista, que nascesse nas bases e fosse
imune ao poder e interesses das elites.
Recuar aos cossacos
Não era fácil. Foi preciso recuar. Ao tempo das forças
nacionalistas ucranianas na Polónia durante a Segunda Guerra, embora esses
grupos, comandados por um homem chamado Stepan Bandera, tenham um passado
demasiado controverso para unirem agora os ucranianos e atraírem a simpatia da
União Europeia. É difícil apagar o facto de Bandera, com a sua OUN
(Organizaçção dos Nacionalistas Ucranianos), se ter aliado às forças nazis para
combater os soviéticos. É certo que Bandera acabou a combater os alemães, e até
a ser preso por eles num campo de concentração. Mas a imagem das bandeiras
vermelhas e negras entre as forças de Hitler é um estigma que conotará sempre
Bandera com a direita radical.
Era preciso recuar mais, a um passado mais puro e mítico. Ao
Rus de Kiev, o estado do século IX ao XII, que representa a origem da nação
ucraniana e também da russa. E era preciso recuar aos Cossacos.
Surgiram no início do século XV, numa altura em que os
grã-duques da Lituânia construíram uma linha de fortalezas isolando a terra de
ninguém que separava o seu Ducado, ligado à Polónia, da Crimeia, governada
pelos Tártaros.
Os fortes eram defendidos por mercenários tártaros que se
autodenominavam “aventureiros livres”. Mas aos poucos a zona, onde hoje se
situa a Ucrânia (palavra que significa fronteira) foi atraindo escravos
fugitivos, criminosos fora-da-lei, nobres arruinados, padres desclaustrados. No
final do século, a vasta região tinha-se tornado numa espécie de estado
independente, com leis e exército próprios, e os seus líderes eleitos, chamados
“otamans”.
O coração deste “reino” dos Cossacos, ou guardas da
fronteira, era uma ilha no meio do rio Dniepre, chamada Zaporozhian Sich. Ali,
em cabanas de madeira, viviam os fora-da-lei mais selvagens, bebendo a sua
aguardente típica, o horilka, cantando as suas canções e usando uma linguagem
que mais ninguém entendia.
Os Cossacos do Sich andavam fortemente armados, não deixavam
as mulheres entrar na cidade, e tomavam as suas decisões numa assembleia
chamada Rada (que é hoje a designação do Parlamento ucraniano), num sistema de
“democracia” directa em que todos tinham voz. As escolhas eram feitas por
aplauso e aclamação — quem gritasse mais alto levava a melhor — à semelhança,
segundo o relato do viajante veneziano Alberto Vimina, da antiga República de
Esparta.
Não havia leis escritas nem verdadeiros líderes. Os Cossacos
organizavam-se em grupos guerreiros chamados Sotnias, de cem elementos
comandados por um Sotni (Sotnia significa cem).
Um desses líderes, Khmelnitski, comandou em 1648 uma
rebelião contra os polacos, chefiou massacres de judeus e criou a Irmandade
Eslava, numa campanha que mais tarde foi considerada a primeira guerra de
independência da Ucrânia.
Depois, os Cossacos desapareceram da face da terra, mas não
da imaginação dos ucranianos. Tornaram-se numa lenda ligada à aventura e
independência, vida dura e elevados padrões morais. Segundo a historiadora Anna
Reid, no seu livro Borderland, os Cossacos estão para a consciência nacional
ucraniana como os cowboys para a americana.
À porta da sede da Samooborona, ou Autodefesa de Maidan, o
organismo que engloba todos os 40 Sotnias que estão em funcionamento, há um
cartaz desenhado pelo Sotnia número 13, de Comunicação e Design. Representa um
soldado com um casaco cossaco verde, um escudo, um capacete da Primeira Guerra,
um lenço palestiniano ao pescoço e uma aura luminosa à volta da cabeça, como um
santo, constituída pelas estrelas da União Europeia. É um apelo ao
recrutamento. Pede aos jovens para se inscreverem nos Sotnias da Samoobarona.
“Sotnia significa 100, mas na realidade os Sotnias têm de 200 a 300 pessoas”, explica
Jaroma Dukh, líder do Sotnia de Comunicação e Design. “São unidades de
autodefesa constituídas por pessoas comuns, inspiradas nos grupos armados dos
Cossacos”. Há pessoas de vários partidos, outras sem partido, há engenheiros,
operários, desempregados, diz Jeroma.
“Fomos buscar os valores à comunidade cossaca da ilha de
Sich, que era independente, não entravam lá tropas russas nem polacas. Era um
Estado dentro do Estado. Os Cossacos eram patriotas, dispostos a morrer pelo
seu país. Havia uma mentalidade de sacrifício, nacionalismo, altos valores
morais. É isso que fomos aprender a essas comunidades. E também a ideia de
grupos de autodefesa que surgem de baixo para cima, formados por pessoas comuns
que sentem a necessidade de se proteger”.
Jaroma não está nem esteve envovido em actividade militar.
As suas funções são na Comunicação e Logística. Mas veste camisola, calças e
botas militares. “É mais prático”, justifica. “Esta camisola é muito quentinha,
comprei-a em segunda-mão, é do exército alemão”.
Há, em todos os membros dos Sotnias, um gosto pela estética
militar e pelos símbolos nacionalistas. A maioria dos voluntários não pertence
aos partidos de extrema-direita. Mas todos têm alguma simpatia por eles, e se
dizem nacionalistas.
“Nacionalismo é sentir amor pelo meu país”, explica Jeroma.
“Sentir-me grato. Deve haver uma razão para que os meus pais e os meus avós não
tenham abandonado o país. Por exemplo, se tivesse nascido num país pobre de
África não poderia ter um smartphone como este”, explica, num exemplo que
parece sugerir que um africano não tem razões para amar o seu país, e um
americano ou um alemão terão razões de sobra. “Dantes, nos tempos soviéticos,
nos tempos dos nossos pais e avós, era proibido ter orgulho em ser ucraniano.
Não podíamos falar a nossa língua. Era horrível. Há uma rejeição partilhada por
todos nós por tudo o que é soviético”.
Os Sotnias foram sendo criados, por várias especialidades,
até atingirem o número de 40. Formaram-se espontaneamente, e depois foram
integrados no Samoobarona, e não o contrário. Mas uma vez na estrutura, todos
obedecem às regras, e às directivas que, cada vez mais, ninguém o nega, vêm de
cima.
O líder de cada Sotnia tem assento no órgão de direcção, de
40 elementos, o Concelho, ou Narada, chefiado por Andrei Perubi. “Fui eu
próprio que o procurei e lhe disse que queria que ele nos organizasse”, diz
Ievgen, o jogador de póquer. “Eu não tinha qualquer experiência de organização
militar. As coisas começaram a assumir grande complexidade, e era preciso
alguém com capacidade para dirigir”.
Depois, foi preciso treino. Ievgen contactou alguns mestres
de artes marciais para ensinar técnicas de luta corpo-a-corpo. Os mestres de
Aikido formaram o Sotnia número 33. Outros explicaram tácticas de protecção com
escudos. Outros ainda a luta de varapau. E para as tácticas de guerra e guerrilha
foram recrutados antigos veteranos da guerra do Afeganistão. São os chamados
“afegãos”, e andam, com as suas fardas especiais, por todo o lado na revoluçção
da Maidan. Eles próprios formam um Sotnia, o número 18.
Escudos, bastões e coletes à prova de bala foram fabricados
pelos próprios voluntários. Alguns foram encomendados a fábricas, segundo
modelos roubados às unidades da polícia especial, a Berkut.
"A revolução está feita"
Quase não há mulheres na estrutura da Samoobarona. Mas, com
a pressão de algumas delas, foi criado um Sotnia feminino, o 39. O seu Sotni é
Anna Kavalienko, de 22 anos, crítica de teatro. Reúne o seu grupo numa pequena
sala do Museu Histórico de Kiev, agora ocupado pelo Samooborona.
“A revolução está feita. Agora, temos de mudar para o modo
pacífico. Já não estamos em modo de guerra. Não vamos para o Parlamento, porque
acabou, já é nosso. O que há agora a fazer é reconstruir. Cada uma tem de
escolher uma tarefa”, diz Anna numa reunião com 14 mulheres. A seguir corre, de
táxi, para a Rádio Nacional da Ucrânia, onde tem um talkshow, com convidados em
estúdio e telefonemas de ouvintes. O tema do dia é “Reconstrução”. Amanhã será
“Heróis nacionais”. As instruções do Narada são para que fale do recém-criado
41.º grupo — O Sotnia do Céu.
O culto dos mártires é cada vez mais exacerbado na Maidan,
com os funerais dos manifestantes assassinados, a exibição dos corpos no palco,
os monumentos com velas e flores, os cânticos dos padres ortodoxos. A
Samooborona considera que os que morreram têm agora uma missão tão ou mais
importante do que as dos que ficaram vivos: promover a união e garantir que a
causa não será esquecida. Por isso os mortos têm o seu próprio Sotnia.
Anna tem uma expressão suave, que não expressa emoções,
raciocínio rápido e analítico. Adora jogos de estratégia. Já antes de começar a
revolução pertencia a um grupo internacional que se dedica a reproduzir
batalhas famosas, com trajes, armas, tácticas de época. “Eu já sabia muito de
táctica e estratégia militar. Sempre foi o meu hobby. Agora aplico esses
conhecimentos no que estamos a fazer”.
Frequenta regularmente os treinos de armas, escudos e
aikido. Alguma da instrução é dada por grupos armados de extrema-direita, como
o Sector Direito. Trata-se de uma federação que engloba vários partidos
nacionalistas radicais e está, com os seus grupos armados, integrada na
Samooborona. São o Sotnia número 8.
“Eles têm só missões de defesa armada”, diz Anna. “São
chamados para situações de emergência. Quando é preciso, nunca falham”. Anna
considera-os úteis, porque são irredutíveis e mantêm os padrões elevados, tanto
ao nível do moral como do idealismo. “Não os considero perigosos. O
nacionalismo deles é saudável. A Samooborona aceita todos os que queiram viver
numa Ucrânia independente, que pretendam um regime político justo, não
corrupto, e que tenham bom perfil psicológico, estabilidade emocional, etc.”. É
esse o perfil para se ser aceite num Sotnia, e os do Sector Direito cumprem.
Mas se ninguém colocava em causa a utilidade do Sotnia 8
antes da fuga do Presidente Ianukovich, a demissão do Governo e a rendição da
polícia, agora as unidades radicais podem tornar-se um grande sarilho.
São necessários, explica Andrei Parubi, porque não se pode
aliviar a pressão sobre o Parlamento e as instituições, mas é preciso mantê-la
de forma organizada. E ao mesmo tempo é preciso manter a ordem. “De repente
encontrámos a cidade sem polícia. A cidade é enorme, e não há segurança. E o
Sotnia do Sector Direito nunca nos traiu nem desobedeceu. Sempre que há uma
emergência, eles estão prontos. E se for preciso defender Maidan, contamos com
eles”.
Exemplo de uma dessas emergências foi a confusão em frente à
prisão de Lukianska, pouco antes de ter sido decretada a libertação dos presos
políticos. O Sotnia 10 foi chamado, porque surgiu a informação de que um grupo
de Titushki (as milícias de rufias pró-Ianukovich) se preparava para atacar os
presos políticos no momento da libertação.
Os homens do Sotnia 10 saltam do seu camião blindado e
inspeccionam a zona. Estão todos armados de bastões, machados e facas, e
envergam escudos, capacetes, balaclavas, coletes à prova de bala, protecções de
pernas e braços. Mas já estão no local elementos do Sotnia 8, ainda mais
armados.
O líder do 10 recebe um telefonema. A informação era falsa,
afinal. Não há Titushki nem libertação dos presos. Podem regressar, é a ordem.
Mas alguns não concordam. Os do Sotnia 8 dizem que é preciso ficar, para forçar
a libertação dos presos
Deixei de acreditar no sistema jurídico, tornei-me extremista. O
tribunal nunca foi justo nem decente.Por isso decidi desistir. Agora faço
justiça como extremista. Estou aqui, e vou libertar aqueles três homens, com
estas armas que tenho na mão
Ieroslav Babich, 38 anos, advogado
"Decidi desistir. Agora faço justiça como
extremista"
Um dos voluntários, militante do partido Patriotas da
Ucrânia, uma das forças que integram o Sector Direito, diz que é advogado e
defendeu dois dos presos que estão ali, em Lukianska. São autarcas que, por
terem inviabilizado a construção de um casino, foram incriminados pelo corrupto
chefe da polícia, com provas forjadas. Ieroslav Babich, o advogado de 38 anos,
mostrou que as provas eram falsas, mas não demoveu o juiz de primeira
instância, nem da segunda.
“Deixei de acreditar no sistema jurídico, tornei-me
extremista”, diz Ieroslav, um homem alto, de camuflado e lenço palestiniano, um
anel com uma suástica e um boné com a expressão Slavonic Brotherhood.
“O tribunal nunca foi justo nem decente. Os juízes não
queriam ouvir nem considerar as provas, tudo estava decidido desde o início”,
conta. “Por isso decidi desistir. Agora faço justiça como extremista. Estou
aqui, e vou libertar aqueles três homens, com estas armas que tenho na mão”.
Ieroslav não concorda com nada do que foi feito até agora
pelas autoridades, quer seja o Parlamento, quer os próprios líderes da
Samooborona.
“As pessoas que arriscaram, que estiveram dispostas a dar a
vida por este país durante a luta de Maidan é que deviam estar agora no poder,
a dirigir a Ucrânia. O novo Presidente, Oleksander Turchinov, nunca o vi nas
barricadas. O que estamos a assistir é aos oligarcas a reposicionarem-se,
tentando obter cargos, à custa da revolução de Maidan. Eu acho que quem devia
agora ser chamado ao poder são os que realmente fizeram a revolução, o Sector
Direito”.
Gera-se uma discussão, e o líder do batalhão do Sotnia 8,
Igor Krivoruska, um homem baixo, de fato de treino preto, anuncia ao megafone
que irá ao palco da Maidan pedir a todos para que marchem para o Parlamento,
para exigir aos deputados a libertação dos presos políticos. Pelo menos aquela
lista de detidos que pertence às fileiras do Sector Direito.
No dia seguinte de manhã, Igor faz o seu anúncio no palco,
e, à tarde, marcha com os seus homens até ao Parlamento. Depois de horas aos
gritos e a bater com os bastões nos escudos, decidem forçar a porta, que era
guardada por outro Sotnia, que tem aquela missão específica. Dentro do
edifício, desataram a partir a mobília e os candelabros. Um dos deputados veio falar
com eles. Quando regressou ao hemiciclo, explicou aos colegas o que se passava,
e eles aprovaram a lei.
Era já noite quando a horda marchou aos gritos e cânticos,
ajoelhando-se periodicamente para rezar e gritando “Viva Stepan Bandera”, o
nosso herói, até à Maidan. Igor subiu ao palco e anunciou o feito. Leu uma
oração nacionalista e deixou a sua bandeira com uma suástica retorcida.
Para o dia seguinte convocaram uma conferência de imprensa
na sua sede, no 7º andar do edifício da Câmara Municipal de Kiev, ocupado pelos
serviços do Samooborona. Nas poltronas luxuosas do que terá sido o gabinete de
um alto funcionário municipal, agora com suásticas pintadas nas paredes,
sentaram-se Igor e os três presos políticos que trouxe de Lukianska.
“Vou apresentar um ultimato”, disse Igor Mosichuk, um dos
presos políticos, um homem muito gordo, com uma camisola preta com o símbolo do
Sector Direito. “Se nas próximas 12 horas não forem libertados todos os
restantes 24 presos políticos do Sector Direito, nós vamos às prisões buscá-los
à força”.
A sala estava repleta de jornalistas, que desataram todos a
aplaudir. Depois todos a gritar palavras de ordem. Vendo bem, envergavam todos
balaclavas e símbolos nazis. Quando chegou a fase das perguntas, um dos
“jornalistas” levantou-se. Disse o nome de um preso que garantiu ser político e
que queria libertar.
Um deputado do partido nacionalista Svoboda, que entretanto
entrara na sala, fez uma chamada com o telemóvel. “Já está. Dentro de cinco
minutos terá ordem para ser libertado”. Aplausos. “Não vamos depor as armas até
à vitória final”, declarou outro comandante do grupo, acariciando um cassetete.
E o líder do Sotnia 8, o baixinho Igor, precisou: “Nós já não somos um Sotnia.
Não obedecemos ao Samooborona”.
Antes estive num pequeno partido nacionalista, depois decidi ser
cossaco. Somos uma Romada que professa uma religião pagã, pré-cristã. E
ensinamos aos jovens História e cultura da Ucrânia tradicional
Viktor Vashenko,60 anos, agricultor
Manter vivo o medo
Todos os Sotnia têm a sua função, e talvez a deste seja
serem violentos, rebeldes e intratáveis, para manter vivo o medo a Maidan. A de
Viktor Vashenko, por seu lado, é lembrar a origem pura do movimento.
Tem 60 anos, estatura imponente, um manto e um barrete de
pêlo de búfalo. Está sentado na tenda, com os seus amigos, todos de grandes
bigodes, vestindo peles, fumando cachimbo ou tocando tambores. São os cossacos,
e integram o Sotnia 4.
“Nós fomos os primeiros a vir proteger os estudantes. A
nossa missão é defender Maidan”, diz Viktor. “Estivemos nas barricadas, mas
agora ajudamos na organização das coisas, distribuição de comida, patrulha das
ruas, etc.”.
Viktor é o otman do Zvitcheava Romada, uma das 54
organizações de Cossacos da Ucrânia. É agricultor e condutor de escavadora de
profissão, cossaco nos tempos livres. “Foi uma opção, por me identificar com os
valores. Antes estive num pequeno partido nacionalista, depois decidi ser
cossaco. Somos uma Romada que professa uma religião pagã, pré-cristã. E
ensinamos aos jovens História e cultura da Ucrânia tradicional, o que era
proibido fazer nos tempos soviéticos. Organizamos campos de férias, promovemos
a arte e o desporto”. Actividades que o Governo da Ucrânia desvaloriza, tal
como despreza os valores tradicionais, diz o cossaco, explicando por que razão
aderiu logo ao movimento de Maidan.
Uma das tarefas de que foi agora incumbido o Sotnia 4,
devido ao seu ascendente moral, é a educação dos polícias, trabalhando com eles
nas esquadras, “para que deixem de se dedicar à lavagem de dinheiro e outras
actividades corruptas”, diz Viktor na tenda dos Cossacos, a única em Maidan com
aquecimento central, uma salamandra engenhosamente construída com dois bidões
de lata.
O grupo de Ievgen está também incumbido, devido à autoridade
moral de ter sido o primeiro Sotnia, de controlar e educar os agentes da
polícia e das alfândegas. O Sotnia 2 já não vive numa tenda, que foi destruida
pela polícia, nos últimos dias dos combates. Instalou-se agora num luxuoso
café, precisamente no mesmo local, junto à famosa barricada da rua Grushevska,
que leva ao Parlamento.
“A 19 de Fevereiro, a Berkut começou a atacar e a destruir
tudo”, conta Ievgen, sentado a uma das mesas do café, com uma mão engessada e
os olhos ainda pisados de ferimentos. Lutámos contra eles três dias, sem
dormir. Depois apanharam-me”.
A Berkut capturou-o, meteu-o num carro com outros onze
manifestantes e arrancaram para a esquadra. Mas estava cheia, já com outros
detidos. “Andámos 5 horas de carro, à procura de uma esquadra que tivesse lugar
para nós”.
Acabaram por ficar na esquadra de Niprovski. Depois de os
terem espancado, sentaram-nos num banco, onde esperaram até à manhã do dia
seguinte. Às 10 da manhã foram levados a tribunal. “Que armas tens?”, perguntou
o juiz. Ele tinha usado armas de fogo, embora com munições não letais, e
atirado cocktails molotov. Mas não tinham nada, porque a polícia apreendera
tudo, até as roupas.
“Havia um procurador, que forjou a acusação. Nós, os onze
capturados, não nos conhecíamos. Nunca nos tínhamos visto uns aos outros. Mas a
acusação dizia que éramos o grupo organizador de desordem em massa, o que
permite uma pena de 8 a
15 anos de prisão. Fiquei em prisão preventiva enquanto decorresse a
investigação, decretou o juiz”.
Quando o regime caiu, Ievgen, o organizador do primeiro
Sotnia, foi libertado. Oficialmente, está agora em prisão domiciliária, ainda
sob investigação. Espera agora por uma lei que ilibe criminalmente todos os
combatentes de Maidan.
"Não sei se vamos ganhar"
Antes do movimento, Ievgen era simpatizante do partido
Pátria. Agora voltou-se para os nacionalistas. “O Sector Direito talvez seja a
solução”, considera. “Os partidos radicais talvez sejam um pouco violentos no
estilo, mas não tenho medo deles. Acho que são constituídos por pessoas
normais, decentes”. Desenhou com os amigos um símbolo para o seu Sotnia número
2, que consiste num capacete com máscara de gás à frente de dois bastões, sobre
um fundo vermelho e negro, como os nacionalistas de Stepan Bandera. Em cima, as
letras ACAB (All Cups Are Bastards).
“Agora a luta entrou numa nova fase, mais diplomática. O meu
objectivo é colocar o maior número possível dos meus homens em cargos de poder.
Quero aproveitar a posição que tenho, no movimento, para conseguir o mais
possível. No outro dia falei com um deputado, que me pediu para lhe arranjar
cinco homens para uma unidade de polícia de fronteiras. Eu indiquei cinco dos
meus homens. Porque sei que eles, depois daquilo por que passaram aqui, nunca
serão corruptos, nem deixarão que ninguém o seja à sua volta”.
Ievgen não é optimista. Acha que “os políticos são todos
corruptos. O sistema é muito forte. Só se consegue alguma coisa enquanto todos
estivermos mobilizados, enquanto eles tiverem medo de nós. Por isso, eu
gostaria muito de ir para casa, retomar a minha vida, mas não posso. O erro da
revolução de 2004 [a chamada Revolução Laranja, contra Ianukovich e sob a
liderança de Iulia Timoshenko, que acabou presa] foi todos terem ido para casa
cedo de mais”. Agora, quanto mais tempo os Sotnia se mantiverem organizados,
mobilizados e activos, mais a revolução conseguirá avançar. Mas pode acontecer
que os únicos a manter a mobilização sejam os radicais de direita, conduzindo a
mudança nesse sentido. E pode acontecer que os Sotnia se transformem em
estruturas burocráticas, e sejam engolidos pelo sistema.
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