O Bairro Alto e os jornais: uma relação a dois contada em
livro
João Morales
Texto
11 Junho, 2018
O Bairro dos Jornais
Paulo Martins
Bertrand
432 págs
19,90 euros
Lisboa nos Livros
Uma vez por mês, O Corvo vai falar dos livros e da
literatura que vão fazendo eco da cidade de Lisboa. Um espaço onde poderão encontrar
referências a publicações recentes, romances, ensaios, poesia e outras
manifestações, mas também fragmentos de obras antigas, passagens que convém não
esquecer, escritos que teimam em mostrar-se únicos.
E não podia começar com um livro mais adequado. Muito
recente, “O Bairro dos Jornais” é um trabalho exaustivo, rigoroso e repleto de
episódios e referências, construído por Paulo Martins, apostado em elencar e
articular a História do Jornalismo lisboeta e do Bairro Alto, como reflexos
simultâneos. Um livro muito completo, mesmo quando se trata de recorrer a um
olhar quase sociológico, sem escamotear a ancestral boémia e as suas
consequências: “A fama da estúrdia vem de longe e ficaram na História as
rivalidades entre os «capotes brancos» (ligados ao Marquês de Pombal) e os
«capotes negros», comandados por D. Francisco, irmão do rei D. João V.”,
escreve o jornalista e olisipógrafo Appio Sottomayor, num adequado prefácio.
A profusão de títulos instalados no Bairro Alto e arredores
ao longo de séculos constitui um autêntico fenómeno, merecedor de um olhar
investigador que enriquece várias abordagens à nossa História – ao lermos o
livro de Paulo Martins reflectimos sobre a Imprensa, sim, mas igualmente sobre
a dimensão laboral em cada época e as relações que se criaram, o devir político
e as condicionantes de cada conjuntura, bem como, em sentido inverso, a
influência que os jornais e os seus obreiros puderam (e souberam) exercer em
seu redor.
“Mais de 80% dos diários lisboetas do século XX – 173 dos
211 identificados por Mário Matos e Lemos em 2006 – passaram pelo Bairro Alto
(ou pelo Chiado, incluído nestas contas pela proximidade geográfica e porque as
redacções de alguns títulos «saltitaram» de uma zona para outra)”, lemos, e
ponderamos na profusão de títulos envolvidos.
A ligação às letras é antiga. Na Rua do Longo,
posteriormente baptizada Formosa, hoje do Século, a Academia dos Ilustrados
promovia dissertações sobre Filosofia ou Literatura, organizadas pelo pai do
futuro Marquês de Pombal. Aliás, é de realçar que o terramoto de 1755 poupou
grande parte dos edifícios do Bairro Alto. E, na primeira metade do século
seguinte, assistiu-se a uma movimentação decisiva para a consolidação desta
zona da cidade como preferencial para gestação jornalística: “Será atrevimento
imputar a uma única causa a enorme concentração de tipografias no Bairro Alto,
que arrastou a instalação de jornais”, avança o autor, reconhecendo logo a
importância desta associação, porque “nos primeiros jornais o redactor escrevia
em casa, e quando as equipas de jornalistas se tornaram mais numerosas,
reservava-se um espaço para redacção nas oficinas”. É tentador criar aqui um
pequeno parêntesis e pensar em voz alta como os nossos dias representam um
retrocesso, mas também um regresso, em tempo de uma crescente geração de
jornalistas free lancer que escrevem, enviam, publicam… longe do convívio
diário em grupo que, durante décadas, foi imagem de marca de uma cumplicidade e
uma postura muito própria nos jornais.
Regressemos às páginas de “O Bairro dos Jornais”. Leitores
mais jovens, distanciados do contexto histórico na viragem do século XIX para o
seguinte, mas também das técnicas de impressão e consequente cadeia de ofícios
envolvidos, encontrarão informação preciosa: “Não se pode falar da «capital da
Imprensa» sem falar das greves dos tipógrafos e dos jornalistas ou das menos
poderosas lutas de ardinas que já não fazem parte da paisagem. E das
instituições relacionadas com o sector, todas naturalmente sediadas na zona: a
Casa da Imprensa, que serviu de berço ao movimento sindical dos Jornalistas; o
único sindicato representativo da classe; os extintos Serviços de Censura/
Exame Prévio”.
Entre figuras famosas que escreveram nos jornais; influência
política e crítica quase constante (veja-se o caso dos títulos satíricos); a
longa presença da Censura, e o combate incansável que encontrou em gerações
sucessivas de jornalistas (como as sete versões de uma crónica de Luís de Sttau
Monteiro, até vencer por cansaço); a enorme importância dos vespertinos (mais
uma realidade que se eclipsou); a explosão de energia que o 25 de Abril
produziu; o exemplo obrigatório do único título que permanece no Bairro Alto –
o desportivo A Bola –, ou até mesmo a presença do jornalismo digital (e aqui,
em causa própria, será de realçar que O Corvo é produzido no Bairro Alto) são
apenas alguns dos tópicos desta caleidoscópica viagem pelo mundo dos jornais.
Uma viagem em que o Bairro Alto foi simultaneamente cenário e protagonista.
“Espero que haja sempre espaço para projetos alternativos e
desligados dos grandes grupos”
Paulo Martins é jornalista desde 1983, professor
universitário, investigador e autor de vários livros. O Corvo falou com ele e O
Bairro dos Jornais foi o cenário ideal para ponderamos alguns aspectos
relacionados com o Jornalismo.
A proximidade geográfica entre os jornais está associada a
uma maior noção de grupo, de classe profissional, entre os jornalistas? Hoje há
menos noção de classe profissional?
Não tenho dúvidas de que a proximidade entre redações
favorece um certo gregarismo, sem prejuízo da saudável concorrência entre
órgãos de comunicação. Constatei isso mesmo na investigação realizada para o
meu livro sobre os jornais do Bairro Alto. No século XIX, foi graças à
coabitação no mesmo território que chegaram a ser criadas duas associações em
torno da Imprensa – uma juntando redatores e escritores ligados aos jornais, a
que chamei “aristocratas”; outra agrupando repórteres, que designei de
“proletários da escrita”. Durante a I República, os conflitos entre
republicanos e monárquicos prejudicaram esse sentido corporativo – no bom
sentido da palavra – que voltaria a reemergir sob o Estado Novo, quando o comum
ódio à Censura uniu jornalistas de filiações políticas diferentes, incluindo
simpatizantes do salazarismo. E, para responder por completo à sua pergunta,
sempre direi que sim, que hoje os jornalistas têm muito menos sentido de
classe. As razões são muitas…
Além dessa referida proximidade, a composição das redações,
com jornalistas de diferentes gerações, assegurava uma transmissão contínua dos
saberes e História da profissão. Hoje, as redações assentam numa muito maior
uniformidade etária (essencialmente compostas por jovens). Quais serão as
consequências dessa transformação?
O rejuvenescimento – e, já agora, a feminização – das
redações não constitui um fenómeno negativo; pelo contrário. A baixa qualidade
de uma boa parte do Jornalismo que entre nós se produz (recuso-me a
generalizar) não radica nessa mudança, mas no facto de terem sido afastadas
gerações que poderiam operar a transmissão de saberes de que fala. Esses
jornalistas têm três “defeitos”: são mais velhos, mais caros e mais
reivindicativos. Por isso se lhes aponta a porta da rua, em favor de jovens
precarizados e mal pagos. Sucede que os jornalistas que foram sendo despedidos
asseguravam memória, essencial ao funcionamento de uma redação que queira
cumprir a sua missão, em democracia.
Jornalistas, tipógrafos, telefonistas, motoristas,
revisores… durante várias décadas, os diferentes departamentos de um jornal
conviveram com naturalidade. Com as novas tecnologias e a abolição de várias
dessas funções, há muito menos convívio interno nos jornais. Que implicações
isso poderá ter, numa nova forma de fazer jornais, mas também de os viver?
Não tenho a certeza de que haja menos convívio interno. As
mudanças tecnológicas concentraram nos jornalistas boa parte das tarefas antes
executadas por outros profissionais. Mas não é essa a causa da erosão dos
organismos representativos dos trabalhadores, incluindo dos jornalistas, que
pode tornar esse convívio profícuo para a vivência interna de uma equipa. Um
triste exemplo é o dos conselhos de redação, concebidos para proporcionar a
participação dos jornalistas na orientação dos órgãos de comunicação,
constitucionalmente prevista. Têm vindo a desaparecer, por culpa de todos nós,
jornalistas, que não os valorizamos.
A coexistência entre jornalistas e boémia foi uma realidade
evidente durante anos. Não estará também essa faceta, mais sociológica, hoje em
causa, com a profissão encarada de forma muito diferente?
Todas as profissões evoluem. A confluência de jornalistas
nos mesmos espaços de boémia resultava da proximidade de que já falámos. Com a
dispersão das redações, esse ambiente desapareceu naturalmente. Mas vale a pena
sublinhar que a boémia de outros tempos também constituía uma oportunidade para
o contacto direto com as fontes. Hoje, esse contacto é, na maior parte das vezes,
organizado, filtrado, mediado por assessorias de Imprensa.
Durante muito tempo, os jornais foram empresas, por si só.
Hoje são, muitas vezes, parte de grupos económicos, naturalmente, com
interesses mais amplos. De que forma pensa que isso transformou, ou
influenciou, a Jornalismo que se faz?
Todos os estudos conhecidos demonstram que a concentração
empresarial é suscetível de comprometer o pluralismo da comunicação social,
ainda que favoreça a diversidade de oferta, o que não é a mesma coisa. Compreendo
que, inseridos em grupos empresariais, as dificuldades financeiras e até de
sustentabilidade que os média enfrentam podem ser superadas com maior
facilidade. Mas a concentração não pode deixar de ter como contrapartida duas
garantias: de transparência, para que conheçamos quem são os efetivos donos dos
órgãos de comunicação, e de independência e autonomia dos jornalistas, que não
se garante apenas pela via legal. Espero que haja sempre espaço para projetos
alternativos e desligados dos grandes grupos. O Corvo, cuja redação também se
situa no Bairro Alto, é um excelente exemplo.
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