Angela Merkel: a grande
desestabilizadora da União Europeia
O pior de preservar, a
todo o custo, uma construção europeia deficiente, foi ter alimentado uma engrenagem
desestabilizadora da própria União Europeia.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
28 de Junho de 2018, 16:44
1. Ao longo dos últimos anos Angela Merkel transformou-se
numa líder quase mítica para o europeísmo de centro-direita, e, de forma mais
surpreendente, tendo em conta a sua área política, também para o europeísmo de
centro-esquerda. Defendeu o Euro e a estabilidade monetária na União Europeia
no seu período mais crítico, após a crise desencadeada em 2008 nos EUA que
alastrou rapidamente para a Zona Euro. Emergiu como uma autoridade e reserva
moral na questão dos migrantes/refugiados, após a sua decisão de abertura das
fronteiras alemãs em 2015. É vista como o maior bastião da construção europeia
contra as derivas populista e eurocéptica, quer no interior da União, quer no
outro pilar do Ocidente, os EUA, sob o efeito isolacionista e anti-liberal de
Donald Trump. Para os seus defensores, os múltiplos ataques de que Angela
Merkel tem sido alvo só alicerçam a convicção de que é preciso cerrar fileiras
em torno desta e apoiar as suas ideias para a Europa e o mundo. Mas o legado
político de Angela Merkel pode ter uma leitura bem mais crítica, pelos
múltiplos impactos das suas políticas, quer internamente, quer em vários
Estados-membros da União Europeia, sobretudo a Sul e a Leste.
2. Paradoxalmente, a obsessão de Angela Merkel pela
estabilidade europeia tornou-se desestabilizadora. À custa de tanto querer
preservar a construção europeia na lógica actualmente instituída — e o papel
central da Alemanha nesta —, acabou por provocar e libertar forças poderosas
que a desestabilizaram, e continuam a desestabilizar, em sucessivas crises. As
actuais fracturas europeias, em torno da política de asilo e migrações,
evidenciam o problema. Num primeiro olhar, estamos perante uma crise totalmente
artificial, provocada por políticos populistas e outros radicais. Nesta altura,
os fluxos migratórios para a União Europeia são bem mais baixos do que em 2015,
ou até em 2017. É verdade. Mas essa é apenas a superficialidade do problema,
como explicarei melhor. Nas profundezas da questão estão os avanços, pouco
consistentes, da União Europeia, para uma união económica e monetária e para o
Espaço Schengen, a partir do final dos anos 1980 e anos 1990. Não são, importa
deixar isso claro, responsabilidade directa de Angela Merkel, mas dos políticos
da época. Em qualquer caso, ambos se tornaram, ao longo do tempo, aspectos
centrais de uma União Europeia mais integrada e a caminho de uma união
política. O problema é que a arquitectura de ambos — a da Zona Euro e a do
Espaço Schengen — foi mal concebida em aspectos cruciais do seu funcionamento.
Não previu soluções adequadas, a nível europeu, para crises graves. Na prática,
ambas favorecem uns Estados em detrimento de outros, como mostra a experiência
da última década. E aí começam as sementes da contestação e da instabilidade.
3. Ao preservar uma construção europeia desequilibrada que
herdou, na realidade Angela Merkel fez muito mais do que isso: manteve intocado
um sistema que, na prática, favorece uns Estados a favor de outros e a
centralidade da Alemanha. Isso é bastante evidente na Zona Euro. Com esta
actuação, Angela Merkel criou, assim, uma poderosa engrenagem externa de
ressentimento contra si em vários Estados-membros, no Sul e Centro e Leste
europeu. Ironicamente, há também uma dimensão interna desse ressentimento que
não é irrelevante: no pior cenário, até poderá derrubar o seu governo, se
perder o apoio da CSU, os democratas-cristãos da Baviera. O contraste é
flagrante com o passado. Quando chegou ao poder, em finais de 2005, a Alemanha
tinha um sistema partidário muito estável, herdado da fundação da República
Federal da Alemanha em 1949, após o colapso da Alemanha nazi na II Guerra
Mundial. A rotatividade entre o centro-direita (CDU-CSU) e centro-esquerda
(SPD) era uma realidade consistente da política alemã. Agora, em 2018, a Alemanha
tem um governo frágil da CDU/CSU / SPD, assente num centro político cada vez
mais a estreitar-se (com o SPD a arriscar-se a uma crescente irrelevância
política) e com os extremos em alta, especialmente à direita a Alternativa para
a Alemanha (AfD). Pela primeira vez na história do pós-guerra, a aliança
política que estabilizava o centro-direita CDU/CSU está em risco de colapso. Há
uma observação inegável: a grande coligação liderada por Angela Merkel, entre a
CDU/CSU e o SPD, ao desguarnecer os extremos, está a destruir as bases da
estabilidade política alemã tal como a conhecíamos.
4. No plano externo, a engrenagem do ressentimento contra
Angela Merkel e a Alemanha surgiu, primeiro, ligada à crise Zona Euro. Esta
atingiu o seu ponto crítico nos primeiros meses do ano de 2015, com o problema
da imensa dívida grega. O que se verificou, especialmente entre 2010 e 2015,
foi um contínuo acumular de desequilíbrios na Zona Euro. Independentemente de
outras causas — e das responsabilidades nacionais que obviamente também
existiram, como é muito evidente na Grécia —, o sistema potenciou um aumento
contínuo da dívida pública no Estados do Sul da União, um acumular de
superavits comerciais e um afluxo de capitais à Alemanha, que intensificou a
sua primazia económica na União. Ao defender intransigentemente a arquitectura
do Euro — uma réplica europeia do modelo monetário alemão —, Angela Merkel
conseguiu, de facto, preservar o sistema. Mas esse sucesso teve um preço muito
político elevado: libertou uma poderosa engrenagem de ressentimento. Basta
lembrarmo-nos das imagens do nazismo e das guerras da Alemanha na Europa que
ressurgiram em força, na Grécia e nos Estados mais afectados pela crise e pelas
políticas de austeridade. Ao contrário do que muitos pensam, esse ressentimento
não desapareceu, apenas se tornou latente. Ficou à espera de uma nova
conjugação de circunstâncias negativas para explodir. Aqui entram os populismos
que encontraram o terreno perfeito para crescer e funcionam agora como
detonadores.
5. A engrenagem do ressentimento tem um outro lado crítico
na crise dos refugiados/migrantes do Verão de 2015. Um elemento eminentemente
político da construção europeia está no cerne do problema: o Espaço Schengen.
Tal como a Zona Euro, não foi pensado para crises de alguma gravidade, ligadas
a pressões migratórias de massa de refugiados / migrantes económicos nas suas
fronteiras externas. O quadro legislativo europeu — “os regulamentos de Dublin”
— colocou uma sobrecarga desproporcionada nos Estados com fronteiras externas a
Sul, dado os fluxos migratórios virem do Mediterrâneo. São estes que têm de
lidar, em primeira linha, com as chegadas em massa no seu território e tratar a
generalidade dos pedidos de asilo. (Ver Comissão Europeia, “Country responsible
for asylum application (Dublin)”). Mas sendo este um sistema europeu, pressupõe
uma actuação comum europeia. Todavia, em 2015, quando Angela Merkel, decidiu
abrir as suas fronteiras, fê-lo unilateralmente. (Ver “Merkel's Refugee Policy
Divides Europe” in Der Spiegel, 21/09/2015). Podemos debater,
interminavelmente, se o fez por genuíno sentimento humanitário e liderança
moral da União Europeia — como sustentam os seus defensores; ou se o fez por
frio calculismo político, para melhorar a imagem negativa ligada à insensibilidade
ao sofrimento dos povos do Sul da Europa duramente afectados pelas políticas de
austeridade — como sustentam os seus detractores. Seja qual for a interpretação
mais próxima da realidade, abriu uma segunda área de ressentimento. Foi no Centro
e Leste europeu onde esta ganhou mais terreno.
6. A Itália, originalmente muito europeísta, é hoje o Estado
onde as sequelas da actuação de Angela Merkel em defesa da Zona Euro e do
Espaço Schengen — ambos, como vimos, com falhas de concepção que geram, na prática,
acentuados desequilíbrios entre os Estados-membros — maior desestabilização
acabaram por criar no sistema político. É uma ironia da construção europeia.
Certamente que não há apenas causas externas para o problema de Itália. Há
grandes responsabilidades dos políticos que governaram o país nas últimas
décadas e o amplificaram. A realidade é que em muitos italianos se instalou o
sentimento de que o Euro lhe fez perder bem-estar, levando, ao mesmo tempo, a
ganhos injustos da Alemanha à sua custa. E que a Itália ficou (quase) sozinha,
com um grave problema migratório europeu — devido ao Espaço Schengen e à lógica
desproporcional da legislação europeia sobre o asilo —, mais uma vez
favorecendo a Alemanha e os Estados do Norte que estão longe do Mediterrâneo.
Foi esse terreno político onde cresceram o Movimento Cinco Estrelas (M5S) e a
Liga, actualmente no poder. É tentador ver o M5S e a Liga como causas do actual
problema italiano. Tudo estaria bem se não fossem estes populistas e
extremistas. Mas é uma visão superficial e errada. Na realidade, estes são mais
sintomas e consequências de um mal-estar acumulado ao longo dos últimos anos,
que tem causas internas e externas.
7. Angela Merkel não é certamente culpada de todos males da
União Europeia, nem da Alemanha. (Ver “Deutschland unter alles They can’t blame
this one on ‘Mutti.’” in Politico, 27/06/2018). Para os seus adeptos é uma
heroína. É, tudo indica, uma europeísta convicta. Herdou, como já notado, uma
construção europeia desequilibrada por decisões dos anos 1990. Mas as suas
políticas de preservação, a qualquer custo, dessa construção europeia mal
concebida, sobretudo na Zona Euro e no Espaço Schengen, geraram um sentimento
de ressentimento. Acabaram por tornar grande parte do Sul e do Leste europeu
anti-europeístas e anti-germânicos, de forma aberta ou latente. Instalou-se o
sentimento de que a Alemanha retira os maiores ganhos da construção europeia. E
de que a União Europeia é um instrumento de dominação germânica. Ao mesmo
tempo, internamente, Angela Merkel afastou eleitorado tradicional e abriu, sem
querer, o caminho aos extremos, sobretudo à direita. Mas o pior de preservar, a
todo o custo, esta construção europeia deficiente, ignorando ou não resolvendo
os seus problemas mais profundos, foi ter alimentado uma engrenagem
desestabilizadora da própria União Europeia. A actual crise migratória “ao
retardador” — explorada politicamente pela (extrema)direita populista e outros
contestatários —, mostra como as consequências podem surgir anos mais tarde. No
Conselho Europeu de 28 e 29 de Junho, Angela Merkel tem um teste crítico à sua
longa carreira política. Resta saber se, com tantos ressentimentos e fracturas,
é ainda possível reconfigurar políticas que, para além das intenções
europeístas, desestabilizaram a União Europeia nos seus delicados equilíbrios
entre o Norte e o Sul, o Ocidente e o Leste.
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