Já nem há moradores para as
marchas de Lisboa: "A gente só se dá com turistas"
"Alfama está a ficar
vazia", admite Vanessa Rocha, a ensaiadora da marcha, que também já não
vive em Lisboa. Nesta altura das festas de Santo António, os antigos moradores
estão de volta.
09 DE JUNHO DE 2018
00:01
Maria João Caetano
Ouve-se o assobio cantado de um
amola-tesouras, lá vem o velhote na sua bicicleta a pedir licença por entre a
fila de tuc-tuc. Atravessa o Largo do Chafariz de Dentro, onde um restaurante
tem fotografias dos pratos de sardinhas ao lado dos pratos de salsichas com
batatas fritas e ovos estrelados, e desaparece por uma ruela. Manhã chuvosa em
Alfama. Ruas praticamente vazias. Na quinta-feira já estavam montados os bares
com placas coloridas que anunciam sangria e caipirinhas, bifanas e sardinhas.
"Seja uma pessoa feliz, com o arroz doce da tia Beatriz", lê-se num
dos cartazes. Escadinhas acima, escadinhas abaixo, espreitando pelos becos,
grupos de turistas de impermeáveis puxam os trolleys pela calçada íngreme. Este
é o retrato do bairro em vésperas de Santo António. Como canta este ano a
marcha de Alfama: "A gente agora só se dá com turistas".
"Alfama está a ficar
vazia", admite Vanessa Rocha, a ensaiadora da marcha. "No sábado
passado fomos desfilar no pavilhão e tínhamos as bancadas cheias, não nos
podemos queixar do nosso povo. Mas quando chegamos ao bairro, antigamente tínhamos
o bairro todo à nossa espera e agora já não temos porque, depois do pavilhão,
as pessoas vão todas para as suas casas que já não são aqui. Quem está à nossa
espera são os turistas."
Vanessa sabe bem do que fala.
Também ela já não mora no bairro. Cresceu nas ruas estreitas de Alfama, a
brincar nos becos e a deitar-se tarde para ver os ensaios da marcha na
coletividade do bairro, o Centro Cultural Magalhães Lima. "O meu pai
começou a organizar as marchas em 1983. Eu acompanhava tudo. E só não fui mascote
porque naquela altura ainda não havia mascotes", conta. Desfilou pela
primeira vez na avenida da Liberdade e no Pavilhão Carlos Lopes em 1991: tinha
14 anos. "É uma sensação única. E depois fui todos os anos. Não falhei um.
Fui marchante durante 19 anos." Di-lo com visível orgulho. Só deixou de
marchar porque em 2010 assumiu a função de coreógrafa e ensaiadora. E os nervos
são ainda maiores. "O coordenador da marcha é o João Ramos. Saímos da
avenida no dia 12 e no dia seguinte ele já sabe qual vai ser o tema do ano
seguinte. Começamos logo a trabalhar."
Os ensaios arrancam a 26 de abril. "Temos sorte. Em
Alfama nunca temos falta de marchantes. Todos os dias eu tenho 48 marchantes
nos ensaios. Ninguém falta." Vencedora nos últimos dois anos, mesmo com
pouca gente a morar no bairro a marcha de Alfama tem sempre uma longa fila de
inscritos. "As pessoas que são do bairro já não moram cá mas continuam a
vir marchar aqui. Há muita gente que está na Margem Sul e vem todos os dias aos
ensaios. E depois temos pessoas de outros bairros, da Madragoa, do Castelo,
Alto Pina, São Vicente, que querem vir marchar connosco porque sabem que nós
trabalhamos para vencer." E o que é ainda mais extraordinário é que,
apesar das noites mal dormidas e de todo o trabalho, ninguém ali é pago:
"Só o maestro e os músicos é que recebem salário porque aquele é o
trabalho deles", garante Vanessa.
Antigamente é que era
Ouve-se um martelar insistente na
rua de São Tomé, em Alfama. Arrastam-se barris de cerveja. Há homens
encavalitados em escadotes a pendurar bandeirolas. Uma caixa de ferramentas
aberta num canto do passeio. Ana Dias está a enrolar fitas vermelhas em volta
de um gradeamento de madeira. Tem ainda muita madeira à mostra e muita fita por
enrolar. "Temos de nos despachar. Amanhã já temos de ter tudo a
funcionar", conta, sem parar de trabalhar. "Sempre fiz as festas. Já
a minha mãe fazia, a minha avó também. Isto já vem de família", conta Ana,
de 58 anos. "Fazer as festas" quer dizer que no Santo António ela tem
uma barraca de comes e bebes no bairro onde nasceu, cresceu e sempre viveu,
Alfama. No resto do ano, tem a sua vida normal, mas no Santo António vende
bifanas, sardinhas, imperiais, "o normal" dos arraiais. "É uma tradição."
Mas as tradições já não são bem o
que eram, queixa-se. "Antigamente", montavam-se mesas de madeira,
bancos corridos que "éramos nós mesmos que fazíamos", "havia uma
preocupação em enfeitar tudo com fitas e balões". Agora, há barracas que
já são "pronto-a-usar" e tanto faz que sejam do Santo António como de
outra festa qualquer, e cada vez mais é tudo feito em plástico, "sem graça
nenhuma", diz Ana, que pagou 900 euros para poder estar instalada durante
seis dias naquele canto inclinado. "Não sei se continuarei a fazer isto
muito tempo..." E quando ela desistir muito provavelmente não haverá
ninguém na família com vontade de continuar.
"Ai, menina, isto agora é
tudo muito diferente." Tóni - o Tóni da Mouraria, como lhe chamam os
rapazes que passam na rua - é um dos históricos do bairro. Tem 70 anos e antes
de ser reformado foi mecânico. "Vivi aqui a minha vida toda, os meus pais
tinham uma pastelaria", conta. Na juventude fez as suas tropelias. Tinha
17 anos quando desfilou pela primeira vez na marcha da Mouraria. Nesse ano,
entre ensaios e desfiles, começou a namorar com outra marchante, mas quando os
pais deles descobriram obrigaram-nos a casar. "Era assim,
antigamente", diz, resignado. O casamento não o impediu de continuar a
viver as festas no bairro como sempre: foi marchante durante 36 anos. "As
pessoas não tinham televisão em casa, então juntavam-se na coletividade para
ver televisão. E era ali que começava a nascer a marcha. Os pais acompanhavam
as miúdas e toda a gente levava aquilo muito a sério. Ainda sou do tempo em que
a marcha ia do Marquês de Pombal ao Terreiro do Paço. E havia grandes
rivalidades entre os bairros e às vezes os desfiles no Pavilhão Carlos Lopes
acabavam com pancadaria. Era uma luta renhida!"
Agora, Tóni ainda acompanha os
ensaios da marcha da Mouraria e foi ver o desfile à Altice Arena mas acha que
os jovens já não vivem tão intensamente este momento. Mas uma coisa boa do
Santo António é que é um momento em que muita gente que saiu do bairro
aproveita para vir comer sardinhas com os amigos. É quase um "regresso à
terra": "As pessoas vão-se embora mas continuam a ser sempre da
Mouraria."
O importante é o orgulho no
bairro
À porta do restaurante Basílio
vai ser instalado uma televisão grande. Para os moradores acompanharem o
desfile da marcha da Mouraria na avenida na próxima terça-feira (e, já agora,
para depois verem o campeonato de futebol). "Aqui no bairro ainda temos uma
grande tradição", garante Andreia, de 22 anos, empregada no restaurante,
que está temporariamente afastada da marcha porque tem um filho pequeno.
"Mas para o ano já lá quero estar", garante. "Todos os anos,
quando a marcha sai do Grupo Desportivo para ir para a avenida, o bairro todo
sai à rua e vai aplaudir. É muito bonito." Só de falar nisso, Andreia até
já se arrepia. "Gostava que a Mouraria ganhasse mas não é por isso que a
gente marcha. A gente marcha porque marcha." A seu lado, Cátia, de 39
anos, garante que na Madragoa é igual: "Ainda no fim de semana passado fui
à Altice Arena e fartei-me de chorar quando a marcha entrou. Os meus três
filhos são marchantes" Cátia também foi marchante durante dez anos e
lembra-se de como chegava ao fim da avenida com os pés quase em sangue - as
mulheres da Madragoa desfilam descalças. "Mas é esse o espírito dos santos
populares nos bairros."
"O Santo António une muito
as pessoas dos bairros. É verdade que há cada vez menos moradores e que é uma
pena ver as pessoas a irem embora, mas nesta altura volta tudo. Se não fosse o
Santo António as pessoas desligavam-se", explica Carla Correia, de 49
anos, vice-presidente do Grupo Desportivo da Mouraria. Quase toda a gente se
envolve nestes dias, seja tendo os seus "retiros" (barraquinhas),
seja ajudando a enfeitar as ruas ou participando nas marchas. "As pessoas
fazem muitos sacrifícios. Mas fazem-no pelo gosto pelo bairro, pelo orgulho de
dizer que a festa aqui é melhor."
Sem comentários:
Enviar um comentário