Tudo o que nunca ninguém lhe disse
sobre as leis do arrendamento
03 DE JUNHO DE 2018
Fernanda Câncio
Sabe que até 1990 todos os contratos de arrendamento eram
vitalícios? E que a lei Cristas manteve a proteção de idosos e deficientes? Na
confusão causada pelas sucessivas alterações no setor, distinga o verdadeiro do
falso. E que especialistas acham que as medidas anunciadas não resolvem os
problemas.
"O Estado está sempre a mudar as regras do jogo no
arrendamento, e isso em si é negativo." Maria Olinda Garcia, juíza do Supremo
Tribunal de Justiça, professora na Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra e co-coordenadora de um grupo de trabalho europeu de investigação em
direito à habitação, não tem dúvidas de que Portugal é um dos países com mais
instabilidade no setor. E desfaz algumas ideias feitas, nomeadamente a de que
foi a chamada "lei Cristas" que liberalizou o mercado do
arrendamento: "A primeira liberalização ocorreu em 1990 [era PM Cavaco],
quando pela primeira vez desde 1910 foi possível fazer contratos de
arrendamento a prazo: até aí eram vitalícios, sempre. As pessoas passaram a
poder optar e a fazer contratos com o prazo mínimo de cinco anos, que podiam
ser denunciados pelo senhorio com um ano de antecedência."
Só vigorando para contratos habitacionais, essa alteração,
que partiu o mercado de arrendamento em dois - o dos contratos
"antigos", vitalícios, e o dos novos, a prazo -- passa a valer também
para os comerciais a partir de 1995. Em 2006, na nova reforma do arrendamento
efetuada pelo governo Sócrates, o prazo mínimo mantém-se e Passos, em 2012,
acaba com ele. "O fim do prazo mínimo para os contratos novos é a grande
marca dessa lei, e não é mau em si", comenta a magistrada. "Não teve
um efeito negativo imediato; só agora se nota. E os espanhóis ainda têm um
prazo mínimo de três anos e estão com o mesmo problema que Portugal. Mexer nos
prazos não o resolve."
O problema, claro, é o do aumento brutal do valor das
rendas, sobretudo em Lisboa e Porto, tornando muito difícil encontrar casas
para arrendar a preços compatíveis com os salários nacionais e determinando uma
epidemia de não renovação de contratos. Como reação, PS, BE, PCP e Verdes
aprovaram uma moratória "contra todos os despejos" que impede os
senhorios de despejarem os inquilinos cujos contratos terminaram, ou mesmo
quando, no caso de despejo para obras, houve lugar ao pagamento de
indemnização.
A moratória vigorará até que sejam aprovadas novas
alterações ao regime de arrendamento urbano, entre as quais, anuncia-se, está o
restabelecimento de um prazo mínimo (fala-se de cinco anos) e a transformação
de contratos a prazo em vitalícios quando os inquilinos tenham 65 ou mais anos
ou grau de deficiência superior a 60%, e habitem no locado há pelo menos 15
anos.
"É um retrocesso muito grande"
Uma proposta que o advogado José Miguel Ramos de Andrade
qualifica, na senda de constitucionalistas como Paulo Otero e Bacelar Gouveia,
como "uma afronta direta aos princípios da proporcionalidade e da
confiança: é inconstitucional impor um contrato de arrendamento vitalício a não
ser que sejam consideradas exceções". Vê também nisso "um regresso ao
regime vinculístico, que é o da tradição portuguesa [ver texto nestas páginas],
contrariada com o Novo Regime de Arrendamento Urbano, de 2006".
Apresentado pelo então ministro da Administração Interna,
hoje PM, como constituindo "a resolução de uma questão que tem seis
décadas e que é responsável pela degradação do património imobiliário das
cidades portuguesas, pelo abandono de imóveis e pelo clima de suspeita e desconfiança
entre inquilinos e proprietários", o NRAU visaria "três objetivos
centrais: dinamizar o mercado de arrendamento assente na liberdade contratual;
garantir uma transição suave e justa para os 400 mil arrendamentos antigos;
renovação dos centros urbanos". 12 anos depois, as almejadas
"liberdade contratual" e "dinamização" passaram a ser o
diabo.
"Temos tido avanços e retrocessos sucessivos",
comenta Ramos de Andrade. "Estas propostas que agora surgem são a
repristinação de opções antigas. O regresso para o prazo mínimo de cinco anos,
por exemplo, parece-me um retrocesso muito grande. O mercado liberalizado, tal
como está, está a ter um efeito pernicioso, mas as formas de intervir que me
parecem eficazes nenhum governo vai querer usar." Opinando, tal como Maria
Olinda Garcia, no sentido de que a questão fundamental está no preço das casas
e não na duração dos contratos, o jurista crê que uma medida baseada no modelo
alemão, no qual há restrições ao valor da renda -- seja na renovação de um
contrato ou num novo, só pode ser de mais 20% que a anterior -- "seria
estruturante e não cosmética, porque pode ter efeitos a longo prazo."
O mercado liberalizado, tal como está, está a ter um efeito
pernicioso, mas as formas de intervir que me parecem eficazes nenhum governo
vai querer usar.
Isto porque para o causídico as medidas anunciadas como
adequadas a fazer baixar o valor das rendas, nomeadamente a da redução da taxa
liberatória de 28% quando os contratos sejam mais longos, "são muito
insuficientes; qual é o proprietário que face a um benefício fiscal como o
anunciado, de 10 ou 14%, vai deixar de celebrar um novo contrato e pedir uma
renda mais alta? Não compensa. Para mais, quem garante aos senhorios que as
taxas agora propostas se vão manter?" Quanto a outras ideias que surgiram,
como a da obrigatoriedade de arrendamento e requisição de prédios devolutos -
mencionada numa proposta de lei de bases do arrendamento que circulou como
tendo origem na esfera da deputada Helena Roseta, "já existiu noutros
regimes", refere. "Inclusive, totalitários."
O elogiado modelo alemão, porém, também contém disposições
draconianas, como a criminalização das chamadas "rendas
especulativas" - que também existia na nossa lei de 1990. "A
Alemanha, sendo um país rico, tem um regime que defende muito os inquilinos. O
senhorio não pode pedir a renda que quiser e existem limitações em cada zona. O
arrendatário tem estabilidade e o senhorio uma renda justa", diz Maria
Olinda Garcia, que estudou, como membro do European Network of Housing
Reasearch, as legislações de todos os países da UE. "Funciona assim desde
o pós-guerra e é dos poucos países em que a percentagem de pessoas que vivem em
casa própria é menor do que a que vive em casa arrendada."
Outro fator importante para o controlo do valor das rendas é
a existência de bastante habitação social na Alemanha, "mas com um
conceito muito diferente do que existe cá. Há benefícios fiscais para a
construção que depois implicam ter de fixar rendas acessíveis. Também na Suécia
e Finlância há muito disso. São habitações para os segmentos intermédios, que é
algo que falta muito em Portugal." A magistrada, que defende a criação de
um modelo de contrato de arrendamento europeu, esclarece também que na Holanda
"existem sistemas de rendas por zona, nas áreas históricas, com limites no
valor." Isto porque "o imóvel é encarado como tendo uma função social
e histórica." Mas, adverte, "tal não pode ocorrer exclusivamente à
custa dos senhorios, têm de ser compensados."
Não temos em Portugal um regime de arrendamento mas dois: o
liberalizado e o das rendas condicionadas (respeitantes aos contratos
anteriores a 1990). E não consigo saber quantos arrendamentos anteriores a 1990
ainda existem, serão agora 175 a 200 mil.
Compensação que o modelo português nunca contemplou apesar
de, como frisa Maria Olinda Garcia, "não termos em Portugal um regime de
arrendamento mas dois: o liberalizado e o das rendas condicionadas
[respeitantes aos contratos anteriores a 1990]. E estas são condicionadas
objetivamente pelo valor do imóvel e subjetivamente pelo rendimento do
inquilino." Quantos fogos há nessa "habitação social" que as
estatísticas da dita não incluem é uma incógnita: "Não consigo saber
quantos arrendamentos anteriores a 1990 ainda existem, serão agora 175 a 200
mil." Outro lamento da juíza conselheira diz respeito à confusão
resultante da proliferação legislativa: "Advogados e juízes veem-se
aflitos para estar atualizados."
A "desproteção" dos idosos
Não admira pois, se especialistas se confundem, que o
cidadão médio e até o jornalista andem aos papéis. Exemplo: o Balcão Nacional
do Arrendamento, criado pela legislação de 2012, é acusado pela esquerda, que
defende a sua extinção, de ser responsável pelo aumento dos despejos. Maria
Olinda Garcia nega: "O BNA só funciona em situações em que o contrato está
extinto." E comenta que, para despejar um arrendatário que viola os seus
deveres, em regra é preciso pôr uma ação em tribunal, que demora um ano em
média, a qual depois subirá à Relação e no fim, se a decisão for de que o
inquilino tem de sair e ele não o fizer, o senhorio tem de pôr outra ação,
executiva, para o despejar. Um pouco diferente de "fácil".
Mas o mito mais renitente é o de que a alteração legislativa
de 2012 retirou a proteção aos idosos. Tanto mais inexplicável quando a lei de 2012
manteve para os contratos habitacionais anteriores a 1990 garantias semelhantes
às da lei de 2006. Ambos os diplomas estabelecem períodos "de
adaptação" para os inquilinos com contratos até 1990; nos dois o senhorio
tinha de enviar uma carta registada propondo uma nova renda e a transição para
o NRAU; o inquilino tinha de responder dentro de um prazo (40 dias em 2006, 30
em 2012), aceitando ou não, e podia, não aceitando, invocar ter mais de 65 anos
ou grau de deficiência superior a uma determinada percentagem, e/ou carência
económica (correspondente a um rendimento anual bruto corrigido inferior a
cinco retribuições mínimas garantidas -- 34800 euros atualmente).
No caso dos inquilinos idosos ou deficientes, a transição
para o novo regime só ocorria com a sua concordância (que podia exprimir-se
pela não resposta - e aí reside uma parte considerável da alegada
"desproteção"; houve quem não respondesse às cartas e o contrato
passou a ter prazo); em caso contrário, ficavam com uma renda condicionada
vitalícia. Explica José Miguel Ramos de Andrade: "No final do período
transitório fixado pela lei de 2012, que era de cinco anos - em 2017 foi
prolongado por mais cinco, totalizando 10 --, a renda dos inquilinos idosos ou
com grau de incapacidade de 60% ou mais não pode ultrapassar 1/15 do valor
patrimonial do locado, a não ser que as partes acordem na mudança de regime. E
caso tenham também invocado carência económica, podem pedir subsídio ao Estado
para pagar a renda." Como o prazo do período transitório foi prorrogado
por cinco anos, o Estado poupou outros tantos de subsídios, transferindo esse
custo para os proprietários.
Já no caso dos inquilinos (não idosos) que invocarem apenas
insuficiência económica, a interpretação do jurista é de que, "após o
período transitório, que agora é de oito anos, o senhorio pode voltar a propor
a transição para o NRAU." Aí o inquilino já não pode voltar a invocar os
seus rendimentos e caso não haja acordo entre as partes considera-se que o
contrato é celebrado pelo prazo de cinco anos, findos os quais, e de acordo com
a atual versão da lei, o contrato pode ser ou não renovado e a renda alterada
sem limite - ou seja, passa ao regime liberalizado. Se este se mantiver. Claro.
118 anos de rendas congeladas
Foi a Primeira República que iniciou o condicionamento do
valor das rendas contratadas por senhorios privados que dura até hoje. As leis
incluíram a obrigatoriedade de arrendar imóveis devolutos e a proibição de
despejos, mesmo quando o senhorio precisava da casa para si.
O primeiro congelamento de rendas ocorreu logo após a
proclamação da República, em novembro de 1910: as rendas foram congeladas por
um ano, e o prazo fixado pelo Código Civil de 1867 para o aviso da denúncia do
contrato pelo senhorio aumentado. Quatro anos depois, deflagra a Primeira
Guerra e todas as rendas, de contratos novos e antigos, são congeladas,
excecionando-se apenas "as de montante elevado". Os proprietários de
imóveis são obrigados a arrendá-los se devolutos. Em 1917, invocando de novo o
"estado de guerra", volta a modificar-se a lei, desta feita proibindo
expressamente "aos senhorios ou sublocadores [...] intentarem ações de
despejo que se fundem em não convir-lhes a continuação do arrendamento, seja
qual for o quantitativo das rendas."
Em 1918 e 1919 a legislação é de novo mexida; sê-lo-á
subsequentemente mais de 100 vezes, mantendo-se o congelamento. Em 1922, em
atenção à grande desvalorização da moeda, permite-se aumentar as rendas em
relação com o valor matricial do locado. Mas a maioria das matrizes está muito
desatualizada; faz pouca diferença. Em 1924 mantêm-se restrições nos despejos
mas possibilitam-se atualizações dos valores matriciais e das rendas. Esta
atualização também não surtirá grande efeito, já que em março de 1928
institui-se uma nova fórmula com base no valor matricial, decretando-se que as
rendas de locados que vaguem são livremente decididas (o que até então não
sucedia: o valor tinha de ser igual ao do contrato que expirara), assim como as
de arrendatários com outra habitação e que subaproveitassem o local; os
respetivos contratos podem ser cessados por conveniência do senhorio. Em 1948
descongelam-se as rendas fora de Lisboa e Porto, permitindo-se atualização,
escalonadamente, até ao duodécimo do valor matricial. O congelamento nas duas
cidades mantém-se no novo Código Civil de 1966, que restringe a denúncia
"por conveniência do senhorio" mas permite-lhe fixar livremente a
renda de início ou num novo contrato.
Chega o 25 de Abril e ocorre nova vaga de congelamento: é
alargada a todo o país, logo em 1974, a suspensão de avaliações fiscais para
atualização do valor matricial, que só vigorava em Lisboa e Porto. Sob pena de
crime, são fixados valores máximos para rendas de prédios antigos; volta o
dever de arrendar. Seguem-se muitos outros decretos, que mudam pouco esta
situação, até que em 1985 se permite, de acordo com coeficientes baseados no
estado do locado e na data da última atualização, a correção extraordinária de
rendas fixadas até 1980, com subsídios para inquilinos sem capacidade. Mas as
correções incidem em bases muito baixas e as rendas sobem pouco. 10 anos
depois, com a justificação de tornar mais atrativo o arrendamento, o governo
Cavaco acaba com a obrigatoriedade de contratos vitalícios, liberalizando o
mercado - mas só para os novos arrendamentos. Os anteriores a 1990 mantêm-se
com rendas congeladas - até hoje.
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