Alcântara: um bairro ainda preso à
memória fabril, mas de olhos postos no futuro
Sofia Cristino
Texto
6 Junho, 2018
Debruçada sobre o rio Tejo, Alcântara, uma antiga zona
industrial de Lisboa, é hoje um bairro de contrastes. Parte da freguesia tem
vindo a modernizar-se com a construção de condomínios residenciais, novos
restaurantes e a criação do Lx Factory, um pólo de empresas criativas, cujos
comerciantes elogiam a “diversidade etária e cultural” de quem por lá passa. “É
uma pequena cidade dentro de uma grande cidade”, diz uma lojista. Pelas
principais ruas de Alcântara, porém, há pouco movimento, lojas em risco de
fechar, prédios com andares vazios e património em muito mau estado. “Esta zona
é de passagem, as pessoas só páram ou correm para o autocarro. Está um
bocadinho apagada”, explica uma comerciante. A junta de freguesia recebe
diariamente contactos de moradores que estão a ser forçados a saírem de casa,
levando a que o bairro esteja a perder habitantes. A ineficácia dos transportes
públicos é outro dos problemas contra o qual o presidente da junta se tem vindo
a debater.
“Antigamente, as
pessoas torciam o nariz quando ouviam falar de Alcântara, agora já não o fazem
porque a qualidade de vida mudou muito. O comércio foi renovado e há muitos
prédios de elite”, diz Ana Gomes, moradora nesta freguesia “há muitos anos”.
Apesar de ainda existirem resquícios da vida fabril ali prevalecente até meados
do século XX, esta parte da cidade, outrora ocupada por fábricas, sofreu uma
profunda transformação. Hoje, é constituída também por novas zonas
residenciais, diversos espaços de restauração e um pólo de lazer irreverente, o
Lx Factory. A proximidade com o rio Tejo, juntamente com estas características,
tem levado alguns jovens a escolherem Alcântara para viver.
Cláudia Silva, 28 anos, mudou-se para a freguesia com o
namorado recentemente porque encontrou uma casa à venda por um preço mais
acessível. A recente moradora diz gostar muito de viver ali porque, “no meio de
todo o movimento, acaba por ser uma zona calma”. “Tem boas acessibilidades,
apesar de não ter metro, em poucos minutos ponho-me na Baixa. Só reabilitava os
edifícios que estão a cair, colocava mais espaços verdes e reformulava a zona
de entrada na ponte que gera imenso trânsito”, explica. Ana Gomes, na casa dos
50 anos, partilha a mesma opinião de Cláudia. “Estamos resguardados da confusão
do centro e, ao mesmo tempo, estamos perto da Baixa. Ainda tenho o privilégio
de acordar com os passarinhos a cantar”, conta.
Com 14.000 habitantes, maioritariamente idosos, ainda se
ouve o carteiro a anunciar a sua chegada e uma voz vinda de dentro do prédio a
confirmar que há gente lá dentro. Os mais velhos vão espreitando para a rua e
trocam palavras com os vizinhos pela janela. É comum, também, ver alguns
sentados à varanda, a observar a dinâmica do bairro. As ruas principais,
contudo, não têm muito movimento. Só uma ou outra pessoa que vai surgindo nos
quiosques, no café ou na mercearia, comprova que, afinal, Alcântara tem vida.
Ao chegar ao Lx Factory, uma antiga área industrial recuperada, é que o cenário
muda radicalmente.
Neste pólo de
empresas criativas não faltam lojas de roupa alternativas e restaurantes
instalados em velhas fábricas. Mas também há lugar para outro tipo de empresas,
tendo sido aqui que surgiu o primeiro espaço de trabalho partilhado da cidade,
o Cowork Lisboa. No Lx Factory, há grupos de estudantes universitários a
almoçar e jovens no início da carreira profissional que aproveitam este sítio
para passear, como é o caso de Raquel Santos, 24 anos. “Venho cá com as minhas
amigas pelo menos uma vez por semana, é uma maneira de aproveitarmos a hora de
almoço de uma forma mais descontraída. Cheguei a viver aqui, quando estudava,
mas as rendas subiram muito e tive de sair”, explica.
No dia em que O Corvo
visitou o Lx Factory, estava a decorrer a 20ª edição do Open Day, um dia em que
as lojas ficam abertas até mais tarde e há vários eventos a ocorrer em
simultâneo, acabando por atrair mais pessoas. Mas, nos outros dias da semana,
diz quem visita o espaço com frequência, o número de visitantes não se altera
muito. “Hoje é um dia de semana e há muito movimento, mas é sempre assim. Foi
um espaço muito bem aproveitado, numa situação normal estaria abandonado”, diz
Emily Roberne, 27 anos, a passear com um amigo.
Um casal holandês, à semelhança de outros turistas, diz
estar a explorar a cidade e que foi até ali porque gostou da ideia de existir
um ambiente “meio hippie” no meio da capital. “Estamos a gostar muito de estar
aqui, é um sítio relaxante, com uma boa vibe”, diz Jay Bouman. Jorge Santos, 23
anos, a viver há seis meses em Lisboa, concorda. “Venho cá sempre que posso
pelo ambiente único e descontraído. É difícil encontrar lugares assim no resto
da cidade”, explica. Há, também, quem por ali passe só para visitar ex-colegas
de trabalho. Pedro Gonçalves, 47 anos, está de passagem, mas chegou a ter ali
uma loja. “Gosto do conceito, das pessoas e do aspecto meio industrial, é um
espaço único. Vim cá vê-los hoje”, diz.
Desde os primeiros
inquilinos do Lx Factory aos que inauguraram as suas lojas apenas há um ano, os
comerciantes dizem apreciar a diversidade etária e cultural e o “espírito de
proximidade” ali presente. “O que gosto mais é de poder vir trabalhar de
chinelos, está-se à vontade, é um ambiente sem preconceitos”, diz Marinela
Lourenço, vendedora num quiosque logo à entrada há cinco anos. Graça Cordovil,
a primeira lojista do Lx Factory, sítio que apelida de “aldeia urbana debaixo
da ponte”, diz que além do ambiente “descontraído”, gosta de ter de fazer um
percurso de carro, para entrar na freguesia, que a obriga a passar pelo parque
florestal de Monsanto.
“Quando vim para cá,
aos sábados, era só eu e os seguranças e, de repente, transformou-se tudo”,
conta. A loja de roupa recebe clientes dos 20 aos 80 anos, sendo alguns já
fidelizados. “Além da variedade de clientes, gosto de não ter de estar como nas
lojas tradicionais, sempre com uma postura muito certa. É mais genuíno, somos
mais humanos”, explica, ainda. Rita Caldeira, proprietária de uma loja de roupa
produzida na Tailândia, apenas há um ano no Lx Factory, elogia as mesmas
características. “É uma pequena cidade dentro de uma grande cidade”, diz.
Mais para dentro de
Alcântara, o bairro é mais vivido por quem o conhece de cor. No Largo do
Calvário, recentemente requalificado, Celeste Almeida, 80 anos, está a beber
água no fontanário quando é abordada por O Corvo. “Além da água fresquinha,
aqui respira-se. É amplo e estamos perto do rio”, diz, após um suspiro
profundo. “Gosto do comércio tradicional e sinto-me segura com a polícia. Um
dia avisaram-me para não andar com a mala do lado dos carros, foram muito
simpáticos”, conta, apontando para a esquadra localizada ali ao lado, no
coração da freguesia. Mora nos Olivais, mas diz conhecer melhor Alcântara, onde
tinha um irmão. “Agora, venho ver a minha cunhada, que ficou viúva. Venho
muitas vezes, gosto mais de estar aqui”, explica.
Alfredo Santos vive em Alcântara há 60 anos e não a trocaria
por nenhuma outra freguesia da cidade. “É mais residencial, é muito sossegada.
A população é mais envelhecida e já desapareceu aquela proximidade que existia,
mas já se começa a ver gente jovem e ganharam-se outras coisas. Os arruamentos
estão mais arranjados e o Jardim do Alto de Santo Amaro já é habitável”, conta
o morador, que também trabalha numa papelaria na Travessa da Tapada.
Durante o dia, o
movimento de Alcântara é protagonizado, essencialmente, por quem lá trabalha ou
estuda e por quem vai visitar um familiar ou um amigo. Ao final da tarde, as
ruas vão ficando mais vazias. “Esta zona é de passagem, as pessoas só páram ou
correm para o autocarro. Alcântara está um bocadinho apagada, grande parte dos
edifícios podiam ser remodelados, enchia-se logo de gente”, sugere Leonilde
Alves, dona da sapataria Noralve, que deve fechar em breve por falta de
clientes. Na Rua de Alcântara, já encerraram várias lojas no último ano e, para
Leonilde, há uma explicação “simples”. “As rendas subiram muito e há pessoas
que vêm para aqui iludidas que vão fazer negócio. A falta de estacionamento
também dificulta muito o comércio”, assegura.
Neste que é um dos
maiores arruamentos do bairro ainda há, porém, lojistas que resistem ao passar
dos anos. José Santos, proprietário do último estúdio fotográfico da Rua de
Alcântara, onde já chegaram a existir sete, trabalha ali há 63 anos. Na montra,
vêem-se molduras com mais de quarenta anos e muitos retratos a preto e branco a
assinalar a antiguidade da loja. “Parecem tiradas ontem, não é? A qualidade do
papel fotográfico e a forma como se imprimia era melhor, por isso duravam mais.
Perdeu-se muita coisa”, lamenta.
O fotógrafo
profissional considera que a “decadência do bairro” começou em 1962, com a
construção da Ponte 25 de Abril, altura em que foram demolidas várias casas e
Alcântara perdeu uma grande parte da sua população, deixando de ser uma das
freguesias mais populosas de Lisboa. “Quando construíram a ponte, muitas
pessoas foram forçadas a sair. Desde aí, a freguesia não evoluiu muito.
Alcântara era um grande bairro fabril, com muito comércio. Só as fábricas
empregavam muita gente. Foi pena que ficasse parado tantos anos, porque tem
potencial”, observa, acrescentando que grande parte dos moradores antigos já
saíram. Grande parte destas pessoas viriam depois a ser realojadas em Almada e
no bairro da Encarnação, nos Olivais, não vendo na altura grandes hipóteses de
regressar à freguesia onde nasceram.
Maria Suzete, há
trinta anos a vender jornais no quiosque mais antigo de Alcântara, concorda que
o bairro perdeu algumas valências, mas tem vindo a melhorar noutros aspectos.
“Há mais sossego e segurança, os edifícios têm melhor aparência, há restaurantes
novos e mais turismo. Apesar disso, há menos pessoas a trabalhar cá, muitos
prédios com andares vazios e as rendas das casas são altíssimas, não atraindo
os mais novos a viverem no bairro, é pena”, explica.
O Mercado Rosa
Agulhas, localizado por baixo do tabuleiro da Ponte 25 de Abril, também já
conheceu melhores dias. No complexo comercial, inaugurado em 1987, o número de
pessoas que por lá passa, cerca de meia dúzia, é igual à quantidade de bancas e
vendedores. Gilda Marques, florista há 30 anos no mercado, é a única que ainda
vai tendo clientes. “Há uns anos, era uma balbúrdia, havia muita gente. Eu vim
de uma florista, no Saldanha, onde se tratava as mulheres por madame, eram
outros tempos. Tive de adaptar-me e adaptei-me bem, ainda tenho muitos clientes
antigos. Há pouco tempo, veio cá uma menina francesa cá do bairro pedir uma
flor para oferecer à mãe, mas já vão sendo exceções”, explica.
Na manhã em que O Corvo esteve no mercado, apenas duas
mulheres faziam compras no mercado. “Já compro fruta aqui há mais de vinte anos
porque é muito melhor e já sei de onde vem”, diz Maria de Lurdes, 54 anos,
enquanto vai mostrando as escolhas para o almoço. Maria Filomena, 73 anos,
também não quer perder o hábito de adquirir produtos frescos no mercado da
freguesia, onde reside há muitos anos. “Venho cá quase todos os dias. Sinto
que, nos últimos 40 anos, Alcântara melhorou, mas perdeu muitas pessoas antigas
que foram expulsas de casa para se fazerem hostels, isso não concordo nada”,
comenta.
A poucos metros da estação de comboio Alcântara-Terra, uma
loja com apenas três meses de existência já tem papéis na montra a informar que
procura inquilinos novos, um restaurante encontra-se fechado para obras e há
quem acredite que não vai voltar a abrir. As lojistas mais novas não vêem
sinais de melhoria. “Há dias em que ninguém entra e, quando entram,
perguntam-me se vendemos calças de fazenda. O nosso público-alvo é mais jovem.
De resto, a rua está morta, fecharam muitos espaços comerciais”, diz Matilde
Pessanha, 24 anos, funcionária de uma loja de roupa feminina. Enquanto
moradora, contudo, vê com bons olhos as mudanças na sua freguesia. “O jardim de
Santo Amaro está muito melhor. Antes tinha medo de ir para lá, por causa das
pessoas que o frequentavam. À noite, é uma paz de alma e ainda ouço os pássaros
de manhã”, conta Matilde, a residir na Rua da Indústria.
Já a proprietária da
Mercearia Saloia acredita que o comércio de rua ainda vai crescer. “A rua já
foi muito mais movimentada, muitas lojas já fecharam. Acredito, apesar disso,
que pode melhorar, porque estão a surgir novos negócios e, pelo que sei, muitos
prédios já foram comprados. Se não forem para comércio, serão para habitação, o
que também já traz mais vida à rua”, observa Gualdina Pereira, enquanto mostra
os edifícios devolutos recentemente adquirido.
O presidente da Junta de Freguesia de Alcântara, Davide
Amado (PS), em depoimento escrito a O Corvo, diz que a freguesia tem assistido
a “um ligeiro decréscimo da população”, uma realidade que acredita que se venha
a “atenuar”. “Existiu um envelhecimento da população, situação que está a mudar
pela escolha de muitos casais jovens para residir aqui. A esta alteração não
será alheia a aposta que foi feita na reabilitação de espaços de lazer, parques
infantis e condições de mobilidade e segurança”, explica. Além da construção de
novos condomínios, há prédios que foram renovados exclusivamente para venda ou
aluguer, atraindo até antigos moradores. “Não sendo uma freguesia com muita
área disponível para construção nova, prevê-se que continue o investimento na reabilitação
urbana como forma de criação de habitação”, garante.
O autarca admite,
porém, que continua a existir “muito património disperso em mau estado, na sua
maioria privado”. “Ainda falta, em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa
(CML), encontrarmos espaços que permitam a construção de edifícios para
arrendamento a custos controlados. Diariamente somos contactados por pessoas
que residem aqui há décadas e viram os seus contratos rescindidos apenas para
que as rendas pagas pelos imóveis possam mais do que duplicar”, explica. “É
importante que sejam criadas condições para estas pessoas continuarem a viver
no sítio onde nasceram e têm as suas raízes”, acrescenta.
Tem-se verificado,
também, um aumento “muito significativo” da circulação de pessoas na freguesia,
com a dinamização de novos espaços turísticos que trazem, diariamente, milhares
de visitantes a Alcântara. Entre eles estão o Lx Factory, o espaço de cowork
Village Underground ou o miradouro Pilar 7. Uma dinâmica que poderá crescer com
as obras de requalificação previstas para o Pavilhão da Ajuda, a Piscina
Municipal do Alvito, a Capela de Santo Amaro e o Mercado Rosa Agulhas, que será
completamente requalificado, “adaptando-o e modernizando-o, seguindo os novos
conceitos de utilização destes espaços”. A Junta de Freguesia lembra ainda que
criou, recentemente, o Cartão Alcântara como estímulo à dinamização do comércio
local, que já tem mais de 2000 pessoas inscritas.
Uma das principais preocupações de Davide Amado é mesmo a
melhoria das condições de mobilidade. “Tem de haver um reforço muito grande das
carreiras da Carris, principalmente para depois das 19h00. A Empresa de
Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL) podia instalar bicicletas,
reforçando a mobilidade numa zona junto ao rio”, propõe. Mas, o que resolveria
“grande parte do problema” seria mesmo a ligação de comboio de Cascais ao
Oriente, “uma obra que não demoraria mais de seis anos e não ficaria tão
dispendiosa como o prolongamento da linha vermelha do metro”, salienta. Amado
sugere ainda que o passe mensal dos utentes do comboio da ponte seja
comparticipado de alguma forma pelo Estado. “As pessoas pagam mais para andar
neste comboio do que em portagens, acabando por compensar levarem o carro. Se
este problema fosse resolvido, também diminuiria a circulação de veículos e o
congestionamento naquela parte da cidade”, conclui.
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