Língua portuguesa, do lirismo ao
desastre
Os panegíricos em torno
da expansão da língua portuguesa equivalem a um banquete de bombeiros no
interior de uma casa em chamas. Um absurdo.
(...) "A este
quadro, poderíamos juntar uma notícia inquietante desse mesmo dia 6: Angola vai
pedir adesão à Commonwealth (comunidade com 53 países de língua inglesa) e à
Francofonia (57 países), no que, aliás, não está isolada, já que Moçambique
pertence também à Commonwealth, pertencendo Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe,
ambos, à Organização Internacional da Francofonia. Talvez em “troca”, França,
Itália, Andorra, Luxemburgo, Argentina e Sérvia pedem agora adesão à CPLP, como
observadores."
Nuno Pacheco
14 de Junho de 2018, 7:30
Inflada pelo 5 de Maio, Dia Internacional da Língua
Portuguesa, e o 10 de Junho, Dia de Camões e das Comunidades Portuguesas, anda
por aí a euforia do costume em torno da nossa língua. “A quinta mais falada no
mundo, a terceira mais falada no hemisfério ocidental e a mais falada no
hemisfério sul”, diz a propaganda, e os políticos rejubilam. “Trabalho bem
feito, hã? Valeu o esforço, ora se valeu!” Há como que uma espécie de
embriaguez que nos tolda os sentidos e nos impede de ver o que se esconde por
detrás dos desejos, da retórica, das frases encomiásticas, das estatísticas que
anunciam, sem pejo, que a língua portuguesa, se é falada hoje (garantem) por
mais de 260 milhões de seres, sê-lo-á por 400 milhões até 2050 e por nada menos
do que 600 milhões até ao final do século. É obra, senhores, é obra!
Mas é obra, sobretudo, da imaginação. Quem preza a língua
portuguesa desconfia de tal abundância. Para que isso fosse verdade, era
preciso haver um trabalho sério de difusão da língua à escala global (e
difundi-la é fazê-la ouvir e ser utilizada no mundo, não é trocá-la pelo inglês
à mínima oportunidade, como é hábito nosso), era não confundir língua com
ortografia (e o malfadado “acordo” nasce desse equívoco espúrio), era olhar
primeiro para a nossa própria casa, que tão desarrumada está, e só depois para o
horizonte em torno dela.
O debate que a Fundação Francisco Manuel dos Santos promoveu
no mais recente programa Fronteiras XXI, que a RTP3 transmitiu em directo no
dia 6 de Junho, foi bem elucidativo dos equívocos que persistem. Ouvimos
Onésimo Teotónio de Almeida, escritor radicado há 46 anos nos Estados Unidos,
dizer que o “movimento de crescimento” do português está ali a ter uma curva
descendente desde 2015; ouvimos, numa reportagem, dizer que em cada dez
crianças que chegam à escola em Moçambique, só uma fala português, e que,
segundo o último censo moçambicano, só metade da população fala minimamente o
português (só um em cada dez moçambicanos considera o português língua materna,
disse-se também); ouvimos Germano Almeida, escritor cabo-verdiano recém-distinguido
com o Prémio Camões, dizer que “Cabo Verde não é um país bilingue, é um país
que tem uma língua que é o crioulo” e que “talvez 10% da população fale
português” em Cabo Verde, sendo que “mais de 50%” entende a língua portuguesa
(os restantes, conclui-se, nem sequer a entenderão). A este quadro, poderíamos
juntar uma notícia inquietante desse mesmo dia 6: Angola vai pedir adesão à
Commonwealth (comunidade com 53 países de língua inglesa) e à Francofonia (57
países), no que, aliás, não está isolada, já que Moçambique pertence também à
Commonwealth, pertencendo Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, ambos, à
Organização Internacional da Francofonia. Talvez em “troca”, França, Itália,
Andorra, Luxemburgo, Argentina e Sérvia pedem agora adesão à CPLP, como
observadores.
Perante tal quadro, que reacções houve? Preocupação?
Insistência num trabalho mais firme e profícuo? Não, muito pelo contrário.
Ouvimos, espantados, dizer que “o português nunca esteve tão bem”, que
“continua firme”, que “está muito bem e recomenda-se”. E ouvimos Luís Antero
Reto (um dos autores do panegírico Novo Atlas da Língua Portuguesa) dizer que
“o facto mais significativo da língua portuguesa é o seu potencial de
crescimento neste século”, garantindo que o português “é a língua que mais
cresce a seguir ao árabe” por estar em mais continentes. Estar, está; mas de
que modo? Disso os “promotores” da língua não querem saber. Há escolas a
ensinar português na China, e isso basta-lhes, é sinal de “crescimento” (e logo
na China, caramba!), mas ignoram que mesmo debaixo dos seus olhos Moçambique
está como está; Angola afasta-se; o Brasil está numa tremenda crise (também em
matéria educativa); Cabo Verde, São Tomé e Guiné privilegiam,
compreensivelmente, os respectivos crioulos; e a língua portuguesa, em todo
este enorme universo, corre o risco de minguar em lugar de expandir-se.
Ouvir os arautos desta mirífica expansão é como assistir a
um banquete de bombeiros no interior de uma casa em chamas: um absurdo. Nos
anos 1970, o PPD tinha um curioso slogan: “Hoje somos muitos, amanhã seremos
milhões”. Os anarquistas, cáusticos, acrescentaram-lhe um comentário: “Tomem a
pílula”. Pois na língua portuguesa não precisamos: já tomámos a pílula da
inconsciência, do lirismo e do desvario. A continuar assim, nenhum discurso nos
valerá. A menos que abramos os olhos.
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