Há cada vez mais gente a sentir-se empurrada da Madragoa
para dar lugar a turistas
Samuel Alemão
Texto
7 Junho, 2018
Vítima da sua atractividade, o bairro típico tem vindo a ser
alvo de enorme procura por parte dos que ali vislumbram boas oportunidades
imobiliárias. A cada esquina, multiplicam-se as estórias de alguém forçado a
sair da sua casa ou de ressentimento contra os “hósteis”. A reabilitação de
imóveis, visível em muitas ruas, não chega para abafar as vozes de revolta dos
que se sentem expulsos do bairro ou conhecem alguém nessa situação. Um
abaixo-assinado pede o realojamento em edifícios municipais desocupados. O
mesmo defende o PCP, que nesta quarta-feira (6 de Junho) esteve na Madragoa a
denunciar a “especulação imobiliária”. O presidente da Junta da Estrela, Luís
Newton (PSD), também acha que a câmara pode fazer mais e melhor. E até a acusa
de “enorme incoerência”, por, alegadamente, licenciar residências para fins
turísticos em rés-do-chão onde funcionavam velhas mercearias.
A vida de Zulmira Estrela, 73 anos, tem sido um tormento,
desde que ficou a saber que teria de abandonar a pequena fracção, com o número
22, onde vive “há cinquenta e tal anos” na Vila Alegre, na Travessa do
Pé-de-Ferro, na Madragoa. “Isto está-me a tirar anos de vida. Tenho problemas
de coração, ando a ser tratada em Santa Marta. Com os nervos, nem consigo
dormir”, diz, numa voz sumida a prenunciar um choro reprimido. Há cerca de dois
anos, ela a restante dezena de ocupantes que ainda se mantinham neste muito
degradado imóvel foram notificados pelos novos senhorios de que teriam de sair,
para dar lugar a um novo projecto imobiliário. A empresa ofereceu-lhe a
possibilidade de receber uma indemnização, mas Zulmira considerou-o
insuficiente – “dava para cinco anos e, depois, ia dormir para baixo da ponte”
-. Por isso, preferiu a alternativa de lhe arranjarem novo tecto pela mesma renda
– 140 euros, que paga com uma reforma de 350. “Disseram que iam pôr os olhos em
qualquer coisa. Mas não disseram nada”, queixa-se.
Estórias como a de Zulmira começam a fazer-se ouvir com cada
vez mais frequência pela ruas e pelos estabelecimentos tradicionais do
tradicional bairro da Madragoa. Tanto que, nos últimos meses, e em paralelo ao
reconhecido movimento de renovação do edificado, do comércio e da demografia
deste território – de que O Corvo deu conta numa reportagem publicada em 4 de
Dezembro do ano passado – , os rumores de descontentamento dos que se sentem
acossados pela pressão imobiliária têm-se feito ouvir com uma crescente
insistência. “O turismo está a tomar conta disto”, diz-se à boca cheia em cada
recanto, onde se converteu em moeda corrente a narrativa de que alguém
conhecido teve de abandonar a casa onde há muito vivia “porque o senhorio quer
fazer um alojamento local” ou alugar casa a estudantes estrangeiros. “Andam
aqui a pedir mil e tal euros por cubículos”, conta Maria Antónia Honrado, 60
anos, residente no bairro há uma década, onde chegou vinda de Alenquer. “Isto
começou a sentir-se, sobretudo, nos últimos três anos”, diz, referindo-se à
pressão imobiliária.
Sintomática do desconforto causado por tal dinâmica, uma
petição intitulada “Salvaguardar as pessoas para salvaguardar a vida e a
história da Madragoa”, recolhendo 350 assinaturas de cidadãos, foi entregue a
22 de Maio na Assembleia Municipal de Lisboa (AML). Nela se denuncia o que se
considera ser a enorme pressão para dar lugar a outros, com mais posses. “Neste
momento, vivemos o sentimento de que estamos a ser despojados das pessoas que
sempre cá estiveram por não conseguirem pagar as rendas praticadas no bairro e
que são desajustadas aos seus salários”, escreve-se no documento, no qual se
pede às entidades públicas que encontrem soluções de habitação para essas
pessoas. E a solicitação tem dois destinatários concretos: Junta de Freguesia
da Estrela e Câmara Municipal de Lisboa (CML). O abaixo-assinado quer ver a
junta a pressionar a câmara para que esta realoje no seu parque habitacional
“os indivíduos que estão a ser postos fora do bairro pelos privados por não
terem capacidade económica” para fazerem face às rendas hoje praticadas.
No abaixo-assinado
refere-se que “uma cidade não vive só de modernização, mas também de
reabilitação das sua propriedades”. As quais poderiam ser arrendadas aos
moradores de longa data, sugere o documento. “A Madragoa, tão cantada, está a
perder os seus habitantes não por opção deles, mas por serem obrigados a
procurar outros locais longe do seu bairro”, diz o texto, relembrando o papel
essencial dos residentes de longa data na definição da especificidade bairrista
tão procurada pelos de fora. “Cabe à junta de freguesia defender os seus
habitantes e pedir à CML que reabilite as suas propriedades e integre os
residentes nesses mesmos prédios”, preconiza a petição lançada por Vanda Lúcia
Bettencourt, 40 anos, moradora no rés-do-chão de um prédio situado do outro
lado da Travessa do Pé-de-Ferro, de frente para a Vila Alegre
Esta mãe de três crianças, auxiliar educativa na Escola
Básica Ressano Garcia, situada nas traseiras do Conselho de Ministros, tem
liderado a luta contra as desocupações forçadas de imóveis na Madragoa. E não é
difícil perceber porquê. Basta olhar a fachada do seu andar, onde afixou uma
improvisada tarja na qual se lê “Não saio daqui”. Vanda é uma filha do bairro,
onde sempre viveu, mas reside naquela casa desde 2010. Em Outubro passado,
recebeu uma carta do senhorio a avisar que teria de sair até ao limite de um
ano, pois o contrato não seria renovado. “Já tinha noção do que se estava a
passar um pouco por todo o lado e aqui na zona, mas é óbvio que isto foi um
choque para mim”, confessa a inquilina, que paga 350 euros de renda e diz não
ter capacidade para despender mais. Ela e o marido ganham o ordenado mínimo e é
com ambas as maquias que têm se sustentar e às três crianças. “É muito
apertado, claro”, admite, sentada à mesa da cozinha do apartamento de onde
agora se sente empurrada.
Mal recebeu a carta,
Vanda dirigiu-se aos serviços de auxílio jurídico da Junta de Freguesia da
Estrela. Diz que, naquele momento, até foi bem recebida, mas isso de pouco ou
nada lhe valeu, pois o seu caso não parece ter uma resposta em perspectiva. A
situação em que está não terá sido analisada como devia, queixa-se. Encaminhada
para o pelouro da habitação social da câmara, tem-se debatido com a constatação
de que a pontuação (77,3) que lhe é atribuída pelos serviços não lhe permite
acalentar a esperança de ser alojada num imóvel camarário. À sua frente na
lista estarão casos considerados bem mais prioritários, entre os quais se
incluem pessoas em situação de desemprego ou invalidez. “Uma funcionária da
câmara disse-me que, com esta pontuação, só com um milagre!”, recorda, mostrando
desalento com a aparente ausência de respostas institucionais a casos como o
seu. Com o que ela e o marido ganham, não faz ideia onde possa encontrar um
tecto a preços decentes.
Daí, e da observação do que se tem vindo a passar em redor,
germinou o sentimento de frustração que alimentou o sentido de necessidade de
fazer algo e resistir. O que explica o lançamento da petição. Vanda Bettencourt
sabe que existe muito património municipal desocupado que podia dar resposta a
situações como a sua e dos que têm vindo a ser desalojados da Madragoa. E nessa
matéria a junta podia ter feito muito mais em defesa dos fregueses daquele
bairro, considera a residente. “Infelizmente, temos um presidente da junta que
não zela pelos interesses dos seus fregueses. Não tiveram uma iniciativa que
fosse para nos defender nesta situação”, lamenta, em crítica visando
directamente o autarca Luís Newton (PSD). Devido ao aparente beco sem-saída em
que se encontra, a moradora convertida em activista promete tomar medidas radicais,
acaso não consiga arrendar uma habitação para a sua família. “Faço como no
tempo do 25 de Abril, ocupo uma casa”.
Do outro lado da rua, bem menos entusiasta de acções
enérgicas, Lino Fontainha, 80 anos, ocupante de outras das fracções da Vila
Alegre, espera por uma solução para o seu problema. O antigo estucador, natural
de Viana do Castelo, mora no apartamento com o número 26 desde 1972. Naquela
altura, pagava 400 escudos – cerca de dois euros – ao mês. O que, para a época,
não era assim tão pouco dinheiro. Hoje, desembolsa 26,41 euros. Lino lembra-se
bem do tempo em que todo o prédio fervilhava de actividade. “Chegou a viver
aqui muita gente. Cada casinha aqui era uma família”, recorda. No momento em
que os novos donos do imóvel lhe comunicaram que teria de sair, optou, tal como
Zulmira, do 22, por recusar a indemnização proposta. Prefere ir viver para uma
casa em condições. “Falaram-me numa ali para a Rua dos Ferreiros, na Estrela,
mas nunca mais me disseram nada”, queixa-se.
Diferente opção fez Maria da Conceição, 74 anos, que vê
aproximar-se o fim de um período de 49 anos na mesma casa – onde agora estava a
pagar 116 euros de renda. Sairá a 30 de Junho do mesmo prédio onde, no mesmo
dia, também deixará de morar a Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul. O
imóvel situado na esquina da Rua da Esperança com a Avenida Dom Carlos I deverá
ser sujeito a profundas obras para ver nascer um alojamento turístico. “Não
tenho razão de queixa do senhoria. Preferi aceitar a indemnização, se não saía
com uma mão atrás e outra à frente”, diz, explicando que vai morar num
apartamento na Amora, na margem Sul, “onde as casas são mais baratas e
melhores”. “Aqui em Lisboa era impossível”, explica, antes de a comoção lhe
começar a sabotar o esforço para manter uma certa máscara de sábia resignação.
“Custa muito. Os velhos, hoje, não têm valor nenhum”, desabafa.Os sinais de
desagrado para com o apertar do garrote imobiliário, associado quase sempre à
vontade dos senhorios em tirarem proveito da demanda turística, estão, porém,
longe de se cingir aos mais velhos. “O melhor é acabar com os hósteis, era
parti-los todos!”, gritava um rapaz de óculos de sol, encostado à parede, na
esquina da Rua Vicente de Borga com a Calçada Castelo Picão, na tarde desta
quarta-feira (6 de Junho), durante uma acção de contacto com a população do
bairro dos vereadores comunistas João Ferreira e Carlos Moura. Quando diziam ao
que vinham, explicando a necessidade de alterar a legislação e as políticas de
habitação, os autarcas do PCP receberam quase sempre a concordância dos
populares interpelados. “Todas as famílias estão a levar com isto. Não pode
continuar assim”, indignava-se Ana Abrantes, dona do café Mascote da Madragoa.
Então e o turismo não trouxe mais movimento e, por conseguinte, mais riqueza?
“Pouco. Eles saem de manhã e vêm à noite”, diz Ana. Ao lado, encostado ao
balcão, Luís Tavares, 51 anos, garante que o “bairro está a acabar”. A sua mãe,
falecida em Fevereiro, também foi forçada a sair da Vila Alegre.
João Ferreira e
Carlos Moura, acompanhados pela comitiva e pelos jornalistas, ouviam as queixas
e aludiam às acções desenvolvidas pelo partido para tentar resolver casos como
estes e dar resposta à aguda crise de habitação na capital. Entre eles
encontra-se o Programa Arrendamento a Custos Acessíveis (PACA), apresentado
pelo partido, em Fevereiro, em reunião de executivo municipal e aprovado pela
maioria da vereação. O PACA prevê a selecção de terrenos e de imóveis
municipais para com eles construir uma oferta de fogos a custos acessíveis para
a generalidade da população. E João Ferreira não deixou de assinalar a
existência de “diverso imóveis património municipal” na Madragoa, que poderão
vir a fazer parte dessa bolsa. Para tal, explica, há que completar o trabalho
de inventariação do património disperso pronto a ser reabilitado. Tarefa que,
estima, poderá estar terminada no último trimestre deste ano.
O últimos dados disponíveis revelam a existência, em toda a
cidade, de cerca de quatro mil fogos que são património da CML e não têm
ocupantes. “Os imóveis estão em estados muito diferentes de conservação. A
partir deste património disperso, seria criada uma bolsa de fogos, que depois
seriam devidamente reabilitados para serem arrendados a preço acessível,
definido em função do rendimento das famílias”, explicou o vereador, garantindo
existir património municipal disperso pelas 24 freguesias da cidade. Um facto
de relevo porque, nota o autarca, os efeitos da pressão causada pelo turismo,
combinado com a chamada Lei Cristas, alastraram ao resto da cidade, “mesmo para
as freguesias periféricas”. Daí a necessidade de, para além das mudanças à
legislação, preconiza o PCP, ser necessário o município assumir um papel mais
interventivo. Os comunistas defendem também, e tal como o presidente da CML,
Fernando Medina (PS), a imposição de quotas ao alojamento local.
Algo também pedido
por Luís Newton (PSD), presidente da Junta de Freguesia da Estrela, que não
deixa de admitir a necessidade “correcções à Lei Cristas”, na qual vê “aspectos
menos felizes, imperfeições que causaram grandes injustiças e que até podem ser
vistas como atentados”. Mudanças que devem acontecer, sublinha, no que se
refere aos efeitos de denúncia de contratos de arrendamento de “alguns
inquilinos que, não estando devidamente informados, não fizeram a obrigatória
prova de vida”. E, como não a fizeram por não saberem de tal obrigatoriedade,
sujeitaram-se a serem despejados. Situações dessas aconteceram também na
Madragoa, diz Newton, garantindo a O Corvo ter a junta por si presidida
“sinalizado à CML dezenas de casos” de famílias em situação de despejo iminente.
“O problema é que, muitas vezes, a câmara diz que esses casos não cumprem os
critérios para garantir um realojamento”. O presidente da Junta da Estrela faz,
porém, questão de salientar que o “caso da Vanda Bettencourt nada tem quer com
a Lei Cristas”, mas sim com as características específicas do contrato de
arrendamento assinado por aquela munícipe.
“Não temos
competências específicas na área da habitação, mas não deixamos de fazer o que
é possível fazer, sinalizando as situações e dando apoio social. Tem existido
da nossa parte uma preocupação muito grande relativamente à profunda injustiça
da não renovação dos contratos de longa duração”, garante a O Corvo o
presidente da junta, antes de criticar o governo socialista por “não ter
corrigido os aspectos da lei que teriam se revistos”. “Nada foi feito nesse
campo”, critica, antes de censurar também o que considera ser a “enorme
incoerência” da Câmara de Lisboa na forma como lida com o licenciamento das
actividades turísticas. “A câmara não pode vir dizer que está muito preocupada
com os efeitos do alojamento local, quando, por exemplo, aqui na Madragoa, licencia
a abertura de residências para esse fim em rés-do-chão onde antes funcionavam
mercearias e pequenos comércios, matando o tecido económico local”. Newton
assegura ainda que “muito poucos desses alojamentos turísticos estão legais”. O
que, diz, denota uma evidente falta de fiscalização.
O Corvo questionou,
ao princípio da tarde desta quarta-feira (6 de Junho), a empresa responsável
pela promoção do empreendimento imobiliário na Vila Alegre, na Travessa do
Pé-de-Ferro, sobre a situação dos último ocupantes de edifício. Não foi,
contudo, recebida resposta até ao momento da publicação deste artigo.
Sem comentários:
Enviar um comentário