As migrações em massa, o retrocesso
da democracia liberal e a desintegração europeia
No caso das migrações em massa, a União Europeia anda à deriva no meio
de dois populismos. Um, o mais óbvio e agressivo, é um populismo xenófobo. O
outro, menos evidente mas também nocivo, é um populismo humanitário.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
14 de Junho de 2018, 23:23
1. Se uma potência externa inimiga quisesse encontrar uma
forma de descredibilizar as democracias liberais e fracturar a União Europeia
dificilmente encontraria algo melhor do que projectar migrações em massa sobre
esta. Mais do que qualquer outro problema que a União enfrenta hoje, e são
muitos e difíceis, este tem o potencial de provocar danos de tal envergadura
que podem comprometer seriamente — ou levar a mesmo a reverter — o processo de
integração europeia tal como o conhecemos. A saída britânica da União Europeia,
onde as questões migratórias tiverem um peso decisivo, foi um aviso do que pode
acontecer. O recente caso do navio Aquarius, usado por duas Organizações Não
Governamentais (ONG) — a Médicos Sem Fronteiras e SOS Mediterrâneo — para
resgatar migrantes no Mediterrâneo é agora a mais ponta visível deste problema
extraordinariamente complexo. Permanece insolúvel há longos anos, provocando um
mal-estar profundo em vários Estados-membros e um crescente ressentimento
contra a União Europeia, paradoxalmente por razões antagónicas — uns acham que
vai longe de mais nas obrigações de acolhimento que quer impor, outros que fica
muito aquém do que devia fazer. Ultimamente colocou vários dos Estados do Sul
da Europa (a Itália, Malta, França e Espanha), os mais expostos à vaga
migratória, em conflito directo entre si. Na Alemanha, ameaça partir a
coligação de governo colocando o Ministro do Interior, Horst Seehofer, o líder
dos democratas cristãos da Baviera (CSU),Anchor em conflito com Angela Merkel.
Vale a pena olhar melhor para as suas múltiplas facetas e a engrenagem que o
alimenta.
2. Previamente, há uma questão importante de terminologia a
esclarecer. A palavra migrante, um termo neutro, é a mais adequada para este
debate onde se misturam, de forma inconsciente, ou deliberada, realidades
distintas — refugiados e migrantes económicos — e muita linguagem emotiva que
tende a confundir mais do que a esclarecer. Convém clarificá-las adequadamente.
Um refugiado é alguém foge de países devastados pela guerra, ou de perseguições
políticas, religiosas ou étnicas, as quais ameaçam a sua vida e integridade
física. O refugiado está abrangido pela Convenção das Nações Unidas de 1951 e
pelo seu Protocolo adicional de 1967, completado pela legislação da União
Europeia e dos Estados-membros sobre esta matéria. Quanto ao migrante
económico, é uma pessoa que está à procura de uma vida melhor, saindo de um
país onde não tem perspectivas de vida, tipicamente devido à pobreza e ao
subdesenvolvimento. Mas ao contrário do caso dos refugiados, não existe uma
obrigação legal internacional de acolher migrantes económicos. No campo dos
princípios, é fácil perceber que estes dois casos são diferentes e podem — ou
até devem — ter tratamentos diferentes pelos Estados que são confrontados com
vagas migratórias. Na prática, o primeiro grande problema é efectuar essa
separação de forma correcta e conseguir actuar politicamente em consonância.
3. O caso do navio Aquarius — que ficou no meio de um
dramático jogo do empurra entre Itália e Malta e de uma troca de acusações
entre e a Itália e a França —, mostra a extrema delicadeza humanitária e a
enorme dificuldade política destas situações. Entre as mais de 600 pessoas
recolhidas pelo Aquarius, por estarem em risco naufrágio ou de se afogarem no
Mediterrâneo, quantas são migrantes económicos e quantas são refugiados?
Provavelmente, tendo em conta a partida das costas da Líbia e a origem africana
da generalidade destes, serão na grande maioria migrantes económicos. Mas
ninguém sabe responder com rigor nesta altura. Só após o seu desembarque e
acolhimento num Estado da União Europeia é possível fazer essa triagem. Neste
caso, será a Espanha, onde o novo governo, entretanto, se prontificou para os
acolher em Valência. (Para além do louvável gesto humanitário, resta saber, em
termos mais políticos, que impacto secundário isso terá no tráfico de migrantes
e se Espanha não será percebida, de futuro, como o novo destino a rumar, pelas
facilidades de entrada.) Quanto à triagem entre refugiados (susceptíveis de
asilo), e migrantes económicos (passíveis de deportação para os países de
origem), na prática, essa é uma tarefa cheia de dificuldades. A mais óbvia é a
de identificar aqueles que não estão documentados, seja pelas peripécias da
viagem, seja porque já estão instruídos para irem assim pelas redes de tráfico
ilegal. (Estas têm um negócio imensamente lucrativo nas travessias do
Mediterrâneo, em muitos casos abandonos). Para além disso, o processo pode
durar largos meses, ou anos. Daí decorre um problema político e humanitário
crítico quando estamos perante fluxos de massa. Se, por hipótese, mais à frente
se vier a verificar que a grande maioria são migrantes económicos — ou seja,
que não há qualquer obrigação legal internacional de os acolher — a realidade é
que estes já estão em território europeu. Acabam, na maioria dos casos, por
engrossar as fileiras da migração ilegal. É isto que explica que nos países
mais directamente expostos às vagas migratórias, como a Itália, que em
relativamente pouco tempo surjam dezenas ou centenas de milhar de migrantes
ilegais.
4. Pela engrenagem explicada, as migrações em massa tendem a
levar a um problema humanitário e político com um enorme potencial fracturante
e desestabilizador em vários Estados. Importa ter isso bem claro em qualquer
análise equilibrada e abrangente. Na União Europeia, o que torna a sua gestão
muito difícil é que, nas actuais circunstâncias políticas europeias e do mundo,
não é possível actuar na área humanitária acolhendo migrantes em massa, sem
produzir efeitos secundários (negativos) na democracia liberal e na integração.
O já referido caso do Brexit, ao qual se juntam o da ascensão da Alternativa
para a Alemanha, da Liga em Itália, ou do Partido da Liberdade da Áustria,
entre outros, não deixam dúvidas quanto a essa conexão. Quando há uma oposição
significativa, eventualmente maioritária, nas sociedades de acolhimento, o
resultado é perverso para as democracias ocidentais. A realização do ideal
humanitário, por muito nobre que este seja em termos humanistas, tem um preço
político elevado: as migrações em massa acabam por colocar em confronto a
componente democrática — a vontade da maioria —, com a componente liberal — a
liberdade de circulação, a abertura de fronteiras, os direitos das minorias,
etc. Para um crescente número de cidadãos, tornam atractivas formas de
democracia iliberal (como na Hungria e na Polónia), ou até autoritarismo como
na Rússia e na China. Acabam por ser vistas como mais eficazes para lidar com
este e outros problemas. É fácil perceber que tal percepção, instalando-se na
população, ou partes significativas desta, faz retroceder a democracia liberal
e potencia a desintegração da própria União Europeia.
5. No cerne do problema está um ponto crítico. As sociedades
europeias discordam fundamentalmente na questão das migrações. Para além das
declarações grandiosas dos Tratados e outros documentos, não há valores
europeus comuns partilhados quanto a isso. Essa discordância fundamental tem
uma importante consequência política: torna praticamente impossível construir
qualquer abordagem migratória eficaz e com a qual a generalidade dos Estados e
populações europeias se identifiquem. Há razões profundas para isso. Na Europa
Ocidental tende a prevalecer um sentimento de culpa pós-colonial e há uma
crítica constante aos excessos do nacionalismo. Ao contrário, no Centro e Leste
europeu, não há sentimentos de culpa pós-colonial (não houve passado
colonizador), nem uma percepção generalizada de excessos de nacionalismo (são
Estados-Nação recentes e sentem-se vítimas de domínio no passado por outros
Estados/impérios). Isto leva a visões muito diferentes sobre o modelo ideal de
sociedade: a sociedade multicultural idolatrada a Ocidente — onde a aceitação
de migrantes de outras partes do mundo é uma componente fundamental — é pouco
ou nada atractiva no Centro Leste europeu, ancorado em valores clássicos de
nação. Para além disso, mesmo nas sociedades ocidentais, há um ponto a partir
do qual os fenómenos migratórios de massa geram uma reacção política
antiliberal forte, ou fortíssima — a Itália, após a França a Holanda e o Reino
Unido é apenas o caso mais recente. Normalmente isso ocorre quando os migrantes
são vistos, correcta ou incorrectamente, como competidores no mercado de
trabalho e nos benefícios sociais, pela classe média e baixa da população.
Ocorre também quando há choques culturais profundos sobre valores estruturantes
da sociedade. Tudo isso já está a acontecer.
6. Após o referendo britânico de 2016 que levou ao Brexit,
muitos receavam que o ano de 2017 fosse o ano o annus horribilis da União
Europeia. Com a vitória de Emmanuel Macron nas presidenciais francesas,
afastando Marine Le Pen, a tendência foi suspirar de alívio. A vaga populista
foi vista como contida e a percepção dominante foi que a construção europeia
seria relançada, como nos bons velhos tempos do passado, pelo eixo
franco-alemão. Os que pensam assim ainda não perceberam que tal União Europeia
já não existe, nem tem condições para voltar a existir. E que o ano de 2018
pode ser muito mais problemático e transformador, nos vários sentidos da
palavra. A conjugação da saída britânica com a contestação do Grupo de
Visegrado (Polónia, República Checa, Eslováquia e Hungria) na política
migratória e outras áreas, a aproximação a estes da Áustria e da Itália, a
guerra comercial desencadeada por Donald Trump, são problemas extremamente
sérios. Paradoxalmente, no caso das migrações em massa, a União Europeia anda à
deriva no meio de dois populismos. Um, o mais óbvio e agressivo, é um populismo
xenófobo — daqueles que recusam qualquer acolhimento de migrantes exteriores à
Europa, mesmo em doses mínimas. O outro, que é menos evidente, mas também
nocivo, é um populismo humanitário — daqueles que, auto elevando-se a
consciência moral da humanidade, pressionam social e politicamente para acolher
(quase) toda a desgraça do mundo exterior. Estas duas forças simétricas, que
prosperam atacando-se entre si, fazem mal à democracia liberal e desgastam a
União Europeia. O resultado de tudo isto é uma política migratória europeia
falhada com custos ainda maiores do que a inexistência desta teria.
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