"Vivo em
Alfama há 60 anos, onde nasceu a minha mulher. Só saímos mortos"
São moradores dos bairros históricos de Lisboa,
expulsos das casas. Estão em "resistência" com o apoio do presidente
da junta
06 DE ABRIL DE
2018
Rute Coelho
"Tenho 79
anos. Nasci na casa onde sempre vivi, em Alfama. Foi preciso vir uma miúda com
vinte e tal anos para me expulsar. Pois eu dali só saio morta!" Chama-se
Felicidade Silva mas o seu rosto idoso e cansado não mostra o estado de alma do
nome. Recebeu uma saraivada de palmas depois do seu testemunho, a atestar bem a
solidariedade que une os moradores nos cinco bairros históricos da junta de
freguesia Santa Maria Maior (Alfama, Baixa, Chiado, Castelo e Mouraria), em
Lisboa, reunidos ontem em assembleia no Palácio da Independência para a
iniciativa "Os Rostos do Despejo".
Despejados, com
data marcada para deixarem a casa onde alguns nasceram e criaram os filhos,
esses rostos têm nome, são "gente de carne e osso", como disse o
presidente da junta, o socialista Miguel Coelho, autor desta campanha contra o
esvaziamento do coração histórico da cidade em nome dos interesses imobiliários
e turísticos.
O despejo e o
desprezo não escolhem idade. Inês Andrade é um dos rostos novos na lista, já
bem conhecida dos lisboetas pelo seu papel à frente da associação Renovar a
Mouraria. Foi uma das pessoas que se levantou para dar o seu testemunho:
"Vivi na Mouraria desde 1999 até ao final do ano passado, altura em que o
senhorio decidiu aumentar-me a renda de 500 para mil euros. Procurei casa mas
está impossível." Na Renovar Mouraria Inês tem recebido "todos os
dias dezenas de pessoas que estão a receber ordens de despejo".
"Estamos no
abismo", clamou o presidente da junta para a multidão revoltada contra os
"hostéis" uma das expressões que mais se ouviu ali. O abismo tem
números a sustentá-lo: existem 1676 unidades de alojamento local (UAL) na
freguesia de Santa Maria Maior, ou seja, 47,21% do total de UAL em Lisboa(
6073).
A junta de
freguesia colocou três advogados ao serviço (gratuito) dos moradores que estão
a ser despejados numa "estratégia de resistência" como a definiu
Miguel Coelho. Os advogados "aconselham estas pessoas a ir a tribunal.
Ninguém tem de aceitar, só com ordem do juiz", sublinha o autarca.
O caso de Eduardo
Correia, 82 anos, que também se levantou para falar na assembleia de freguesia,
mereceu aplausos entusiásticos. "Represento a Natália Correia, minha
mulher, que nasceu há 82 anos na casa onde vivemos, em Alfama. Eu estou ali há
60 anos. Recebi uma ordem de despejo para abandonar a casa até ao dia 1 de
agosto de 2018. Mas não abandono a casa nem a minha mulher. Dali só saímos
mortos".
O antigo
serralheiro mecânico contou ao DN que a renda da casa no Beco das Cruzes,
nnº11, 1ª esquerdo, começou por ser de 150 escudos (75 cêntimos) passou para
700 escudos (3,5 euros ) e depois já na época do euro para 30 e poucos euros e,
por último, para 70 euros. Em agosto de 2017, o casal recebeu uma carta a
fechar o contrato do arrendamento alegando que a inquilina, Natália não
respondeu no prazo de 30 dias a um aviso escrito sobre a atualização da renda
para 70 euros em 2013. "Em agosto de 2013 o marido da senhoria avisou que
íamos receber essa carta mas disse para ignorarmos. Fomos enganados." A
última proposta da senhoria foi estender mais um ano de arrendamento para o
casal mas a pagar 450 euros de renda. "Os advogados da junta, que nos
estão a ajudar, nem responderam. Vamos esperar."
"Fui
enganada", desabafa Felicidade Silva, 79 anos, residente com o marido no
Pátio do Prior, 11, r/c em Alfama. "Nasci naquela casa". Pagava agora
105 euros de renda. "A senhoria mandou-me uma carta em setembro de 2017
para deixar a casa em fevereiro deste ano." Mas Felicidade e o marido não
arredaram pé. "Aquela miúda está a dar cabo de mim, nem aparece para falar
connosco e mandou-me a renda para trás", desabafa, referindo-se à jovem
senhoria. Aconselhados pelos advogados da junta, Felicidade e o marido têm
depositado sempre o valor da renda na conta da senhoria, para a falta de
pagamento não ser argumento quando for a altura.
Levantou-se na
assembleia para falar mas rapidamente se sentou e calou, tomada pelas lágrimas.
Conseguiu mais tarde fazer a sua intervenção. Ao DN, Elisa Vicente, de 76 anos,
conta que mora com o marido em Arco Escuro, Alfama, há cinco anos mas viveu
mais de 40 anos naquele bairro. "Recebi carta do senhorio em como não me
renovava o contrato porque vendeu o prédio a uma firma. Tenho que arranjar casa
até 30 de abril de 2019 mas o meu marido está acamado, não fala nem anda. Vamos
para onde?". A renda que o casal paga é de 450 euros. O marido tem uma
reforma de 800 euros de funcionário dos seguros e Elisa aufere 400 euros.
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