Nos Anjos há uma mercearia portuguesa que sobrevive à
gentrificação
Sofia Cristino
Texto
10 Abril, 2018
Numa altura em que Lisboa assiste ao encerramento de várias
lojas centenárias, há uma mercearia tradicional portuguesa que resiste à
pressão imobiliária e ao boom turístico. Instalado na Rua de Timor, nos Anjos,
desde 1948, João Carreiro, dono da loja, diz que só continua pela “boa
vontade”. Trabalha ali desde os 12 anos, quando veio viver para a capital, e
tem saudades de uma rua “repleta de movimentação”. A mulher, Georgete Carreiro,
também está desiludida com as transformações do bairro. “O turismo é que deu
cabo de nós, porque tirou-nos os moradores e trouxe os estrangeiros, que não
compram praticamente nada. Trabalhamos das 9h às 20h30 para receber uma
esmola”, explica Georgete. É de sorriso no rosto, contudo, que recebem os já
escassos clientes. Afinal, é a única forma de subsistência que conheceram toda
a vida e gostam do que fazem.
“Aquele prédio só tem
um inquilino. Naquele, lá em cima, vivem duas pessoas. E, este, em frente, já
só tem dois moradores. Um já tem ordem de despejo”, conta João Carreiro, 83
anos, proprietário da mercearia mais antiga do bairro dos Anjos, enquanto
aponta para a rua vazia, outrora repleta de vida.
“Esta rua era muito movimentada, era um centro comercial.
Havia uma charcutaria, uma padaria, uma retrosaria, um sapateiro, um alfaiate e
duas mercearias. Agora, somos só nós, mas chegamos a ser quatro”, diz, enquanto
olha para a mulher, Georgete Carreiro.
A Frutas e Bebidas, situada no início da Rua de Timor, é das
poucas mercearias tradicionais portuguesas que resiste à pressão dos senhorios
para os inquilinos fecharem os espaços comerciais onde, muitos vezes,
trabalharam toda a vida. Mas há uma explicação. “Acabei por comprar esta casa,
se não de certeza que já não estava aqui, como os outros”, explica. O que o faz
continuar a trabalhar, de manhã à noite, diz, é mesmo a “boa vontade”.
Por ali passaram ex-ministros, advogados e médicos, cantores
conhecidos, como o Marco Paulo e o Rui Mascarenhas, e a fadista Anita
Guerreiro. “Tenho saudades desses tempos. De há dez anos para cá, piorou
bastante, isto está reduzido a nada. Éramos uma família, conhecíamos toda a
gente. O que mais nos custou foi perder essa componente familiar. E vamos
perder mais pessoas, porque muitos receberam ordem para saírem na véspera do Natal,
o que também não se faz, é desumano”, critica o dono da mercearia, que trabalha
ali desde os doze anos.
A viverem há 60 anos
nesta parte da cidade, o casal mais acarinhado do bairro sente-se desiludido
com as transformações que têm vindo a acontecer em Lisboa, fruto da pressão
imobiliária e do boom turístico. “O turismo é que deu cabo de nós porque, por
um lado, tirou-nos os moradores e, por outro, trouxe os estrangeiros, que não
compram praticamente nada. Vêm cá buscar uma laranja ou uma banana e, às vezes,
uma bebida. Trabalhamos das 9h às 20h30, para receber uma esmola”, explica
Georgete.
Apesar do negócio já dar mais despesa do que lucro, garantem
que não está nos planos fecharem. “Estão-nos a cercar de uma maneira que, um
dia, talvez, encerramos mesmo. Mas, para já, não vamos fechar. O meu marido não
gosta de ir para o jardim jogar às cartas e eu gosto de estar aqui também. A
nossa reforma é baixinha e, aqui, sempre nos entretemos”, diz, ainda.
Natural de Castro de
Aire, João Carreiro mudou-se para Lisboa em 1947, altura em que começou a
trabalhar num quiosque, na que é hoje a freguesia do Parque das Nações. Um ano
depois, a mercearia abria portas e Carreiro iniciava aquela que viria a ser a
sua profissão até hoje. “Entrava às 5h e saía às 22h30, tínhamos sempre muito
trabalho. De manhã, sentia-se um cheirinho tão bom a café, que os clientes
espreitavam só para ver o que era. Vendíamos café moído”, recorda, nostálgico,
enquanto olha para a antiga máquina de moagem, em cima do frigorifico onde
guarda alguns congelados. “Muitos turistas perguntam-me se a vendo, mas com
esta não têm sorte. Quero ficar com ela”, diz, entre risos.
Tal como esta máquina
centenária, guardam, ainda, uma balança romana, um medidor de azeite e vinagre,
uma pá de trigo, entre outros utensílios que foram caindo em desuso. Chegaram a
vender feijão avulso, bacalhau demolhado e outros produtos frescos. Acumulam
vários artigos enlatados, frascos e frasquinhos de especiarias, empilhados uns
por cima dos outros, mas bem arrumados, embalagens de chocolates e caixas de
bolachas, garrafas de vinho de várias partes do país e licores, alguns doces
tradicionais e fruta, à espera de um comprador.
Os resquícios do
espírito de proximidade que sempre se viveu ali ainda se vão sentindo pela
presença do carteiro, que deixa na mercearia algumas cartas dos moradores que
não estão em casa no momento da entrega. “Veja lá se não há nada para mim”,
questiona Fátima Antunes, 61 anos, moradora ali há 27 anos.
Vive no terceiro andar de um dos prédios situados em frente
à mercearia, mas não será por muito mais tempo. Recentemente, recebeu uma ordem
de despejo e, até 2020, vai ter de abandonar a casa onde viveu uma grande parte
da vida. “O que está a acontecer é um escândalo. A lei não nos protege. Ainda
ponderamos comprar o andar, mas pedem-nos um valor exorbitante. Não sei para onde
vou morar, porque na periferia os preços também já começam a aumentar”, diz
Fátima, que vive com o marido.
“As primeiras
transformações começaram com a emigração. Quando vim para aqui morar, era um
bairro de famílias. Agora, nem tenho uma vizinha a quem pedir ajuda, se
precisar de alguma coisa. O meu apartamento está todo convertido em Alojamento
Local. Quando saio de casa, só encontro espanhóis, franceses e italianos. Não
tenho nada contra eles, mas sinto falta da vizinhança. É uma angústia muito grande,
perdeu-se tudo. Já só tenho a mercearia”, lamenta.
“O governo está a
ganhar muito com a taxa turística e os impostos. Mas que raça de governação é
esta, que privilegia todos menos os portugueses que trabalharam uma vida
inteira?”, questiona Georgete Carreiro, com um olhar desiludido, mas sem perder
a esperança. “Acredito que isto vai mudar, porque um dia tudo acaba, Lisboa sai
de moda e o turismo termina”, conclui.
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