quinta-feira, 12 de abril de 2018

A História não recomenda escaladas



A História não recomenda escaladas

Trump e Macron tiveram o cuidado de distinguir entre o Presidente sírio e o Presidente russo. Resta saber se Putin levará em consideração a mensagem.

Teresa de Sousa
12 de Abril de 2018, 6:22

1. Os caças-bombardeiros franceses já estavam na pista, prontos a descolar para a Síria, quando François Hollande recebeu um telefonema de Obama, dizendo-lhe que não era para avançar. O Presidente americano acabava de negociar com Vladimir Putin uma forma de pôr termo ao risco de utilização das armas químicas pelo regime de Assad. Obama foi o primeiro a traçar uma “linha vermelha” a Damasco: a utilização de armas químicas levaria à intervenção americana. Estávamos no Verão de 2013. O Presidente tinha a forte convicção de que os EUA não deviam abrir mais uma frente de combate no Médio Oriente. As guerras que herdou de George W. Bush arrastavam-se penosamente, sem fim à vista, com um custo que não merecia o resultado. Hoje, a crítica mais severa à sua política externa incide sobre esta decisão, que permitiu a Moscovo entrar no jogo político e militar do Médio Oriente no qual, até então, a Rússia não tinha papel relevante.

Dizem vários analistas americanos que a estratégia de Donald Trump, ou a ausência de estratégia, é exactamente a mesma. Assinou por baixo da “linha vermelha” de Obama e não tinha a menor intenção de se envolver na Síria. Em Abril do ano passado, quando o regime de Assad, fortalecido pelo apoio russo, ultrapassou de novo a “linha vermelha”, a resposta do Presidente americano foi simbólica: uma salva de Tomahawks, disparados dos navios americanos no Mediterrâneo. Não teve qualquer efeito sobre o agravamento de um conflito que se transformou na mais séria ameaça à segurança internacional. Desta vez, já anunciou que, mais tarde ou mais cedo, os mísseis vão ser disparados. Mas, em Washington, há a convicção de que uma resposta contra o mais bárbaro dos líderes mundiais não pode ser apenas a repetição da anterior, porque voltaria a não ter o efeito dissuasor pretendido. James Mattis, o chefe do Pentágono, é contra. Com um argumento poderoso: não vale a pena correr o risco de um bombardeamento, enquanto não houver uma estratégia.

2. O problema é que o mundo está perante uma escalada de ameaças e contra-ameaças verbais que envolve todos os actores da tragédia síria, das grandes potências aos países intermédios, de dimensões raramente vistas desde o fim da Guerra Fria. Ainda não está à vista uma estratégia ocidental que tire o dedo do gatilho e abra uma porta à diplomacia. É cada vez mais urgente. Não estamos à beira de uma guerra mundial. Putin dificilmente se atreverá a bombardear um navio de guerra americano de onde partam os Tomahawks. A sua estratégia não mudou: forçar a mão a americanos e europeus sem chegar a partir o braço. A sua política agressiva na Europa não tem tido o sucesso pretendido. Os EUA acabam de aplicar sanções duríssimas onde mais doem: aos oligarcas que o rodeiam. Mas as escaladas são perigosas. “A História ensina-nos que as guerras — desde a Grande Guerra à Coreia, passando pela Guerra dos Seis Dias e as Falkland — são desencadeadas por falhas na mensagem e na sua interpretação”, escreve Peter Beaumont no britânico Guardian. “Olhando para o Médio Oriente, nunca este risco foi sentido de maneira tão intensa, e nunca houve um stock tão limitado de cabeças frias.”

3. Para a Europa, o desafio não é menor. Há uma “linha vermelha” que não pode ser ignorada, diz o Presidente francês. O conflito generalizado no Médio Oriente é um desafio para a segurança europeia, que a Europa deixou de poder ignorar. Acabou o tempo em que os EUA se encarregavam desta parte do mundo em permanente ebulição —tal como já passou o tempo em que parecia possível confiar em Putin. A Europa aprendeu da pior maneira, com a ocupação da Crimeia, a tensão militar no Leste da Ucrânia, a intromissão nas eleições ou a ameaça velada de ataques contra as infra-estruturas indispensáveis. O ataque químico de Salisbury foi apenas o último episódio. Resta uma pequeníssima esperança: Trump e Macron tiveram o cuidado de distinguir entre o Presidente sírio e o Presidente russo. O primeiro diz que Putin não pode apoiar um líder bárbaro, “um animal”, como Assad. Macron vai mais longe: qualquer intervenção militar visará apenas as estruturas sírias relacionadas com o depósito de armas químicas. Resta saber se Putin levará em consideração a mensagem. E há sempre a esperança que os telefones estejam a funcionar.

4. Num ensaio sobre a política externa do Presidente francês, no site do European Council on Foreign Relations, Manuel Lafond Rapnouil sublinha o dilema francês no palco do Médio Oriente e do Norte de África (MENA), onde a França mantém um dispositivo militar significativo e aplica uma política de “garantia” de segurança aos seus aliados. O título do ensaio resume o problema: “Sozinha no deserto?” A França não abdica desse papel, que faz parte da sua estratégia de “média potência” com capacidade de agir à escala mundial, mas a sua política só terá plena eficácia se for partilhada pelos seus principais aliados europeus como uma política europeia. Macron, “o europeísta”, diz o investigador, deveria perceber isso melhor do que ninguém. Com a escalada na Síria, o Presidente francês tem de recorrer aos velhos aliados como o Reino Unido e os EUA para desencadear uma operação militar contida, mas que considera inevitável. A França e o Reino Unido, as duas únicas potências militares europeias, também não estão em condições de dispensar o apoio americano. No mínimo, para lhes garantir a retaguarda. Continua a faltar, até agora, um apoio claro da Alemanha e um consenso mais alargado entre os países da União. Devia haver. Quanto mais não seja porque a barbárie de Damasco questiona a Europa nos seus valores fundamentais.

5. A multiplicação de actores mundiais e regionais torna a situação na Síria ainda mais imprevisível. O que fará a Turquia, membro da NATO, que bombardeia as forças curdas que o Ocidente apoia? O que fará Israel, que vê qualquer reforço da posição iraniana como uma ameaça existencial? O que fará o Irão, depois do acordo nuclear com os EUA e a Europa, que Trump só quer um pretexto para pôr em causa? Demasiadas incógnitas e demasiadas incertezas para fazer pairar sobre a segurança mundial o sentimento de que o pior dos cenários não está completamente afastado.

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