CML fez pagamentos ilegais de 96 mil euros a histórico do PS
Fernando Medina e Manuel Salgado poderão ser obrigados a
repor nos cofres municipais os montantes que a Câmara de Lisboa pagou a Joaquim
Morão. Além disso, parte da responsabilidade pela devolução das pensões
indevidamente recebidas pelo ex-autarca poderá ser atribuída aos dois autarcas
de Lisboa.
JOSÉ ANTÓNIO CEREJO
12 de Abril de 2018, 7:07
Como se não bastasse o facto de ter simulado consultas ao
mercado para contratar o ex-autarca de Castelo Branco, a Câmara Municipal de
Lisboa (CML) ignorou duas normas legais que a impediam de o fazer: não obteve a
indispensável autorização do Governo para o contratar, pelo facto de o
interessado estar aposentado; e passou por cima das regras que impediam a sua
contratação por ocupar o lugar de primeiro-secretário executivo da Comunidade
Intermunicipal da Beira Baixa (CIMBB) - cargo esse que era desempenhado, por
imperativo legal, em regime de exclusividade.
Os expedientes e ilegalidades sucederam-se num processo em
que a CML violou o Estatuto da Aposentação e o estatuto dos membros dos
secretariados executivos das comunidades intermunicipais para contratar Joaquim
Morão, um ex-autarca modelo do PS e membro da sua Comissão Política Nacional,
aposentado há cerca de vinte anos.
Como o PÚBLICO revelou a 31 de Março, os artifícios
destinados a contornar os impedimentos regulamentares e legais para recrutar
Morão, em 2015 e 2016, começaram com a simulação de convites a mais duas
entidades prestadoras de serviços – consulta essa que, nestas circunstâncias, é
imposta pela Norma de Controlo Interno aprovada pela autarquia em 2011.
Além da sociedade unipessoal então acabada de criar pelo
ex-autarca, a JLD, as empresas convidadas naqueles dois anos a apresentarem
propostas de preços para acompanhar a execução de várias obras municipais são
detidas por um amigo e colaborador de Morão. Este, sem qualquer experiência
naquela área, nem sequer respondeu aos convites. Na altura em que foi
consultado pela CML, estava a ser julgado num processo em que foi condenado a
quatro anos e meio de prisão efectiva pelos crimes de burla e falsificação.
CML diz que não é nada com ela
Resolvida assim a questão da obrigatoriedade de consulta a
três entidades, a CML ignorou o preceituado no n.º 1 do art. 78 do DL 498/72
(Estatuto da Aposentação), na redacção em vigor em 2015 e 2016. De acordo com
essa norma, os aposentados e reformados “não podem exercer actividade
profissional remunerada para quaisquer serviços da administração central,
regional e autárquica (…), excepto quando haja lei especial que o permita ou
quando, por razões de interesse público excepcional, sejam autorizados pelos
membros do Governo responsáveis pelas áreas da Finanças e da Administração
Pública”.
Sucede que neste caso não há qualquer “lei especial”, nem o
vereador Manuel Salgado, que determinou e assinou a contratação, nem o próprio
Joaquim Morão obtiveram a indispensável autorização governamental.
Questionada sobre este tema, a Câmara de Lisboa respondeu
que a existência ou não de tal autorização não é objecto de “verificação no
âmbito de um procedimento de contratação pública, não se inscrevendo nos
impedimentos que devem ser conhecidos na fase de habilitação do concorrente”. A
esta explicação, a autarquia acrescentou: “Por outro lado, informou-nos o
próprio [Joaquim Morão] que tem um documento oficial da Secretaria de Estado da
Administração Local segundo o qual não carece de autorização do Governo para
exercer as funções que desempenhou.”
O que a CML não diz é que o documento em questão, que Morão
também fez chegar ao PÚBLICO e que é assinado por uma antiga directora-geral
das Autarquias Locais, com data de Fevereiro de 2014, tem a ver com a
contratação de um aposentado para o lugar de primeiro-secretário executivo de
uma Comunidade Intermunicipal e não com a contratação de um aposentado para
prestar serviços a uma câmara municipal. Embora perfilhando uma controversa
interpretação da lei, até porque remete para legislação que nada tem a ver com
a questão, o ofício invocado pela CML sustenta apenas que os aposentados podem
exercer “o mandato de membro do secretariado executivo intermunicipal das
comunidades intermunicipais” sem autorização governamental, mas nada diz sobre
a sua contratação por uma autarquia.
TdC contraria CML
Quanto às responsabilidade que incumbem aos autarcas por
contratarem aposentados sem aquela autorização, o Tribunal de Contas (TdC) tem
um entendimento bem diferente do da CML. A propósito de um caso muito
semelhante, em que condenaram um antigo presidente e um antigo vice-presidente
da Câmara de Borba a devolverem ao município local o montante de 69.344 euros,
acrescidos de juros de mora, por terem contratado uma aposentada sem permissão
governamental, os juízes conselheiros da 3.ª secção do TdC escreveram no
Acórdão 29/2015: “Apesar de se provar a convicção dos demandados [os dois
autarcas] na legalidade do contrato de aquisição de prestação de serviços
celebrado (…), tal convicção é-lhes censurável. É que, sendo estes os
responsáveis máximos por tal município, com especiais responsabilidades de velar
pelo interesse público e pela legalidade, não podiam desconhecer a proibição de
contratar aposentados [sem autorização governamental, ou lei que especial que o
permita], nem ignorar a ilicitude do expediente que consistia em interpor uma
sociedade unipessoal (constituída para o efeito menos de um mês antes)” entre a
autarquia e a aposentada a contratar. Este “expediente”, realça o acórdão,
“visava eludir a proibição legal de contratar aposentados sem autorização
superior”. Isto porque, sem essa autorização, “a referida senhora não podia ser
contratada, nem directamente nem a coberto de uma sociedade (…) por si
constituída, através da qual, como única sócia, gerente e executora do
trabalho, percebeu remuneração que não podia cumular com a pensão de aposentação.”
Exactamente o que sucedeu na CML com a contratação do ex-autarca de Castelo
Branco e Idanha-a-Nova.
Por outro lado, a CML e Joaquim Morão fizeram letra morta do
estatuto dos membros dos secretariados executivos das comunidades
intermunicipais (Lei 75/2013), cujo art. 97.º afirma no n.º 6 que “os membros
do secretariado executivo intermunicipal remunerados exercem funções em regime
de exclusividade”. Tratando-se de membros remunerados, poder-se-ia perguntar se
esse era o caso do ex-autarca.
A resposta é lapidar e está no n.º 4 da mesmo preceito
legal: “O cargo de primeiro-secretário é remunerado”. O n.º 1 determina mesmo
que o valor mensal do seu vencimento “é igual a 45% da remuneração base do
Presidente da República”, ou seja, cerca de 3250 euros, a que acrescem, diz o
n.º 3, despesas de representação no valor de 30% dessa remuneração (cerca de
980 euros).
Como Joaquim Morão ocupava, e ocupa, o lugar de
primeiro-secretário executivo da CIMBB, ele é obrigatoriamente remunerado e,
por isso, trabalha em exclusividade naquela entidade, não podendo desenvolver
quaisquer outras actividades remuneradas.
“Câmara de Lisboa simula consultas ao mercado para contratar
histórico do PS”, publicado a 30 de Março 2018
Solicitada a pronunciar-se sobre esta matéria, a CML nada
respondeu.
CML esqueceu-se da lei
Ignoradas a incompatibilidade da função para a qual
contratou Morão com o seu estatuto de aposentado e a impossibilidade de o
contratar devido ao regime de exclusividade em que se encontrava na Beira
Baixa, a CML incorreu numa outra falta. Violando o n.º 4 do art. 79 do Estatuto
da Aposentação, não comunicou à Caixa Geral de Aposentações (CGA), nos dez dias
seguintes, e nunca o fez até ao fim do segundo contrato (em Setembro de 2017),
o facto de que tinha contratado o ex-autarca, por forma a que, nos termos da
lei, a sua pensão fosse suspensa.
Por essa omissão, estabelece o n.º 5 do mesmo artigo, “o
dirigente máximo do serviço, entidade ou empresa” torna-se “pessoal e
solidariamente responsável, juntamente com o aposentado, pelo reembolso à CGA
das importâncias que esta venha a abonar indevidamente em consequência daquela
omissão”. Ou seja, também por esta via, Fernando Medina e/ou Manuel Salgado
arriscam-se a ter de devolver à CGA, juntamente com Joaquim Morão, as pensões
que este recebeu ao longo dos 23 meses em que a CML lhe pagou cerca de 96 mil
euros e que deverão ter um valor da mesma ordem de grandeza.
Câmara de Lisboa simula consultas ao mercado para contratar
histórico do PS
Câmara de Lisboa simula consultas ao mercado para contratar
histórico do PS
Acerca deste assunto, a CML respondeu o mesmo que respondeu
sobre a impossibilidade de contratar um aposentado sem autorização do Governo.
“As questões levantadas não são objecto de verificação por parte da entidade
adjudicante [neste caso a CML] no âmbito de um procedimento de contratação
pública.”
CIMBB nega exclusividade
Já a CIMBB, falando em nome de Joaquim Morão, sustenta que
este não violou o regime de exclusividade porque “não é remunerado pelo
exercício do cargo (…) e, não sendo remunerado, não exerce funções em
exclusividade”. O problema é que a lei diz expressamente que o cargo em questão
“é remunerado” e é exercido em regime de exclusividade.
A CIMBB é uma associação de municípios formada pela câmaras
de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Oleiros, Penamacor, Proença-a-Nova e Vila
Velha de Ródão, todas elas governadas pelo PS, à excepção da de Oleiros (PSD).
Logo após a sua constituição formal, no final de 2013, os seus órgãos
escolheram Joaquim Morão, que em Setembro terminara o mandato de presidente de
Castelo Branco, para o cargo de primeiro-secretário executivo.
De acordo com os esclarecimentos prestados ao PÚBLICO, este
comunicou ao conselho intermunicipal, formado pelos presidentes dos seis
municípios da CIMBB, que optava pela manutenção da sua pensão da CGA.
Por via desta opção, afirma a CIMBB, em resposta às
perguntas que o PÚBLICO endereçou a Joaquim Morão, este “prescindiu” do
vencimento do cargo, ficando a receber da comunidade intermunicipal apenas as
despesas de representação. Em consequência dessa “opção”, defende Morão e o
presidente do conselho ntermunicipal, seu sucessor na Câmara de Castelo Branco,
o ex-autarca nunca exerceu o cargo em regime de exclusividade.
Sendo certo que em 6 de Fevereiro de 2014, quando Morão
comunicou que optava pela pensão, o Estatuto da Aposentação permitia essa possibilidade,
a verdade é que o estatuto dos membros dos secretariados executivos das CIM não
admitia tal opção. E logo no mês seguinte, a 6 de Março, o Estatuto da
Aposentação passou igualmente a determinar que os aposentados “não recebem
pensão” enquanto desempenharem funções públicas.
Em resposta a um pedido de esclarecimento do PÚBLICO acerca
de um recente parecer que emitiu sobre remunerações dos executivos das CIM, a
Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região Norte (CCDRN) clarificou
também as questões da exclusividade e da opção pela pensão. Ressalvando que os
seus pareceres jurídicos não têm carácter vinculativo e “sem prejuízo da
autonomia do poder local”, a CCDRN esclareceu que “o exercício de quaisquer
funções públicas remuneradas para quaisquer serviços da administração
autárquica, por aposentado ou pensionista, determina a suspensão obrigatória do
pagamento da pensão durante todo o período em que durar aquele exercício de
funções”. Assim, conclui, “não está legalmente consagrada a faculdade de optar
entre a remuneração e a pensão de aposentação sendo que os membros do
secretariado executivo intermunicipal exercem sempre as funções em regime de
exclusividade”.
Sem comentários:
Enviar um comentário