quarta-feira, 18 de abril de 2018

Última mercearia do Castelo vai fechar depois de luta judicial entre proprietário e inquilino



Última mercearia do Castelo vai fechar depois de luta judicial entre proprietário e inquilino
Sofia Cristino
Texto
17 Abril, 2018

A mercearia Estrela do Castelo é a sexta mercearia a fechar no espaço de cinco anos naquela parte da cidade, situada na freguesia de Santa Maria Maior. Os moradores, maioritariamente idosos, ficam assim sem nenhuma mercearia tradicional perto de casa. “A maior parte das pessoas da minha idade não consegue andar. Como vão fazer? Vamos ser nós que vamos comprar a comida para os vizinhos?”, questiona uma cliente septuagenária.  A mercearia ainda não encerrou porque o seu proprietário travou uma batalha com a justiça durante cerca de três anos. Quando o prédio foi colocado à venda, o dono da mercearia predispôs-se logo a comprá-lo. Mas, veio a saber depois, o imóvel foi vendido duas vezes no mesmo dia, no espaço de uma hora. “O meu pai teria comprado o prédio e dever-lhe-iam ter facilitado a compra, porque o inquilino tem direito de preferência”, critica o filho do proprietário.

 “Não me faça chorar, estou condenado. Em Setembro, faz 49 anos que estou aqui, mas devo fechar antes”, desabafa, emocionado, Hermínio Sousa, 73 anos, dono da última mercearia do bairro do Castelo de São Jorge, na freguesia de Santa Maria Maior, quando questionado sobre a possibilidade da sua loja vir a encerrar portas. Nos últimos cinco anos, deixaram de existir cinco mercearias naquela zona e, com o iminente cessar de actividade desta, os habitantes, maioritariamente idosos, deixam de ter uma loja de produtos alimentares perto de casa.

“Se a mercearia fechar, temos de passar a fazer compras à Baixa. Eu ainda me sinto bem, mas a maior parte das pessoas da minha idade não consegue andar. O senhor Hermínio até leva as compras a casa de muitos moradores. Como vão fazer sem ele? Vamos ser nós que vamos comprar a comida para os vizinhos?”, questiona Aida Ferreira, 79 anos, que nasceu e sempre viveu ali. “Se isto fecha, é uma desgraça para todos, a mercearia faz muita falta. Compramos tudo aqui, menos o peixe”, confirma a vizinha, Maria Augusto Veríssimo, 70 anos, enquanto procura legumes para fazer uma sopa para o almoço.

Com o boom turístico e a subida da procura de casa, em Lisboa, principalmente por estrangeiros, várias lojas têm fechado um pouco por toda a cidade. As razões dos encerramentos prendem-se, também, com insolvências – muitos negócios não conseguem sobreviver porque se tornam insustentáveis – e com a incapacidade de suportar o valor das rendas mensais, que têm aumentado.  Mas Hermínio Sousa não só não tem prejuízo com o seu negócio, como estava disposto a comprar o prédio onde está a mercearia. “A minha luta tem sido um bocadinho diferente”, diz a O Corvo, enquanto vai contando a sua história.

 Em 2012, o imóvel onde se encontra a mercearia Estrela do Castelo, no Beco do Recolhimento, foi colocado à venda, conta o comerciante. Hermínio soube oito dias antes que o prédio ia ser colocado à venda, por cerca de 450 mil euros, e predispôs-se logo a comprá-lo. O sistema de justiça, contudo, trocou-lhe as voltas. A 10 de Abril de 2015, mostra Hermínio num documento a que teve acesso por via judicia, o imóvel foi vendido duas vezes no espaço de uma hora. No mesmo dia, foi vendido primeiro por 460 mil euros e, depois, por 800 mil euros.

O prédio pertence a um bloco de duas partes, com mais de uma dezena de fracções, tem dois Impostos Municipais sobre Imóveis (IMI) e dois registos prediais. A juíza que acompanhou este processo informou Hermínio que, se quisesse adquiri-lo, tinha de comprar as duas partes do prédio, porque o registo predial não está em propriedade horizontal. “Ou comprava tudo ou não comprava nada. Foi aí que começou a minha disputa, quando propus comprar apenas uma parte do prédio”, explica. Hermínio travou uma luta com a justiça, durante quase três anos, para manter as portas abertas. “O meu filho nasceu neste prédio, tem um valor muito sentimental para mim e sinto-me com muita energia para trabalhar”, confessa.

Instaurou uma acção judicial de processo comum contra vinte e duas pessoas, os proprietários do prédio, a contestar os seus direitos enquanto inquilino. Começou pelo Tribunal de Pequena Instância, seguiu para o Tribunal da Relação de Lisboa e só não terminou no Supremo Tribunal de Justiça por opção. “O tribunal deu-me uma sentença negativa e, agora, tenho de sair até ao fim do verão. Podia ter ido mais longe, mas estou cansado e já gastei muito dinheiro”, admite. Até agora, já despendeu 429 mil euros em custas judiciais, quase o valor pelo qual o prédio foi colocado à venda pela primeira vez.

 Natural da Covilhã, veio para Lisboa em 1945 e começou a trabalhar com 12 anos, noutro estabelecimento comercial. Está na mercearia Estrela do Castelo, situada no Beco do Recolhimento, desde os 24 anos. Nunca conheceu outra forma de vida e diz gostar muito do que faz, principalmente pelo contacto com os seus clientes, aos quais gosta de se referir como família.

 “As minhas velhinhas vão ter muitas saudades do ‘Hermínio do Castelo’, sei que precisam muito de mim. Gosto muito de trabalhar, de falar com elas, tenho pão quente três vezes ao dia e há pessoas que ficam à espera para levar uma carcaça quentinha”, diz. Explica, ainda, que gosta de acordar cedo para ir comprar produtos frescos ao mercado e, se esgotar algum artigo, no próprio dia vai comprá-lo. Entrega muitas encomendas em casa dos mais idosos e deixa os clientes pagarem mais tarde.

 “Quando chega o fim do mês as clientes, com reformas baixas, recebem as facturas e ficam aflitas. Ninguém sai daqui sem levar o que precisa por falta de dinheiro, pagam-me no fim do mês. Foi sempre assim. Como vão fazer agora?”, pergunta.  E as clientes confirmam-no. “Além das saudades que vamos sentir, vão fazer muita falta porque, quando nos vemos atrapalhadas, vamos ter com eles, já sabemos que nos ajudam”, diz Aida Ferreira, que ainda se lembra quando o espaço não era uma mercearia.

 “Este pequeno comércio faz falta a muita gente. A cidade está a morrer, mais de metade das pessoas que viviam aqui foram embora. A pior lei de sempre foi a lei da Cristas, pôs os velhos mais perto da morte. As pessoas vêm a Lisboa ver os lisboetas, não é ver os turistas”, acrescenta Natavidade Pacheco, 69 anos, mulher de Hermínio, que acha que o prédio foi vendido para ser construído um hotel.

 Nuno Nascimento, 43 anos, também é um cliente assíduo. “Vai fazer muita falta, a mercearia fornece o castelo todo. Eu também morava em Alfama e recebi uma carta para sair. Agora, moro no Alto de São João”, comenta, enquanto procura por um melão. “O meu pai é que sabe qual é o melhor melão”, diz Luís Sousa, 45 anos, filho de Hermínio, emigrado na Holanda e, de momento, a gozar férias em Portugal.

 “Venho cá duas ou três vezes por ano e já não conheço metade das pessoas. É muito triste o que está a acontecer. Não há um único prédio que não tenha Alojamento Local (AL) aqui no Castelo. Concordo com o AL, mas da forma como está a ser feito em Portugal não. Estamos a perder mesmo muitas pessoas, está a perder-se a essência de Lisboa”, lamenta.

Luís está a viver em Amesterdão e tem uma casa a meia dúzia de metros da mercearia do pai, onde fica quando vem ao país de origem. “Até a mim, quase todas as semanas, me oferecem dinheiro pela casa, mas não a quero vender. O meu pai teria comprado o prédio e dever-lhe-iam ter facilitado a compra, porque o inquilino tem direito de preferência”, diz Luís, sem deixar de denotar estranheza por o prédio ter sido vendido, “duas vezes no mesmo dia”.

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