Última mercearia do Castelo vai
fechar depois de luta judicial entre proprietário e inquilino
Sofia Cristino
Texto
17 Abril, 2018
A mercearia Estrela do Castelo é a sexta mercearia a fechar
no espaço de cinco anos naquela parte da cidade, situada na freguesia de Santa
Maria Maior. Os moradores, maioritariamente idosos, ficam assim sem nenhuma
mercearia tradicional perto de casa. “A maior parte das pessoas da minha idade
não consegue andar. Como vão fazer? Vamos ser nós que vamos comprar a comida
para os vizinhos?”, questiona uma cliente septuagenária. A mercearia ainda não encerrou porque o seu
proprietário travou uma batalha com a justiça durante cerca de três anos.
Quando o prédio foi colocado à venda, o dono da mercearia predispôs-se logo a
comprá-lo. Mas, veio a saber depois, o imóvel foi vendido duas vezes no mesmo
dia, no espaço de uma hora. “O meu pai teria comprado o prédio e dever-lhe-iam
ter facilitado a compra, porque o inquilino tem direito de preferência”,
critica o filho do proprietário.
“Não me faça chorar,
estou condenado. Em Setembro, faz 49 anos que estou aqui, mas devo fechar
antes”, desabafa, emocionado, Hermínio Sousa, 73 anos, dono da última mercearia
do bairro do Castelo de São Jorge, na freguesia de Santa Maria Maior, quando
questionado sobre a possibilidade da sua loja vir a encerrar portas. Nos
últimos cinco anos, deixaram de existir cinco mercearias naquela zona e, com o
iminente cessar de actividade desta, os habitantes, maioritariamente idosos,
deixam de ter uma loja de produtos alimentares perto de casa.
“Se a mercearia fechar, temos de passar a fazer compras à
Baixa. Eu ainda me sinto bem, mas a maior parte das pessoas da minha idade não
consegue andar. O senhor Hermínio até leva as compras a casa de muitos
moradores. Como vão fazer sem ele? Vamos ser nós que vamos comprar a comida
para os vizinhos?”, questiona Aida Ferreira, 79 anos, que nasceu e sempre viveu
ali. “Se isto fecha, é uma desgraça para todos, a mercearia faz muita falta.
Compramos tudo aqui, menos o peixe”, confirma a vizinha, Maria Augusto
Veríssimo, 70 anos, enquanto procura legumes para fazer uma sopa para o almoço.
Com o boom turístico e a subida da procura de casa, em
Lisboa, principalmente por estrangeiros, várias lojas têm fechado um pouco por
toda a cidade. As razões dos encerramentos prendem-se, também, com insolvências
– muitos negócios não conseguem sobreviver porque se tornam insustentáveis – e
com a incapacidade de suportar o valor das rendas mensais, que têm
aumentado. Mas Hermínio Sousa não só não
tem prejuízo com o seu negócio, como estava disposto a comprar o prédio onde
está a mercearia. “A minha luta tem sido um bocadinho diferente”, diz a O
Corvo, enquanto vai contando a sua história.
Em 2012, o imóvel
onde se encontra a mercearia Estrela do Castelo, no Beco do Recolhimento, foi
colocado à venda, conta o comerciante. Hermínio soube oito dias antes que o
prédio ia ser colocado à venda, por cerca de 450 mil euros, e predispôs-se logo
a comprá-lo. O sistema de justiça, contudo, trocou-lhe as voltas. A 10 de Abril
de 2015, mostra Hermínio num documento a que teve acesso por via judicia, o
imóvel foi vendido duas vezes no espaço de uma hora. No mesmo dia, foi vendido
primeiro por 460 mil euros e, depois, por 800 mil euros.
O prédio pertence a um bloco de duas partes, com mais de uma
dezena de fracções, tem dois Impostos Municipais sobre Imóveis (IMI) e dois
registos prediais. A juíza que acompanhou este processo informou Hermínio que,
se quisesse adquiri-lo, tinha de comprar as duas partes do prédio, porque o
registo predial não está em propriedade horizontal. “Ou comprava tudo ou não
comprava nada. Foi aí que começou a minha disputa, quando propus comprar apenas
uma parte do prédio”, explica. Hermínio travou uma luta com a justiça, durante
quase três anos, para manter as portas abertas. “O meu filho nasceu neste
prédio, tem um valor muito sentimental para mim e sinto-me com muita energia
para trabalhar”, confessa.
Instaurou uma acção judicial de processo comum contra vinte
e duas pessoas, os proprietários do prédio, a contestar os seus direitos
enquanto inquilino. Começou pelo Tribunal de Pequena Instância, seguiu para o
Tribunal da Relação de Lisboa e só não terminou no Supremo Tribunal de Justiça
por opção. “O tribunal deu-me uma sentença negativa e, agora, tenho de sair até
ao fim do verão. Podia ter ido mais longe, mas estou cansado e já gastei muito
dinheiro”, admite. Até agora, já despendeu 429 mil euros em custas judiciais,
quase o valor pelo qual o prédio foi colocado à venda pela primeira vez.
Natural da Covilhã,
veio para Lisboa em 1945 e começou a trabalhar com 12 anos, noutro
estabelecimento comercial. Está na mercearia Estrela do Castelo, situada no Beco
do Recolhimento, desde os 24 anos. Nunca conheceu outra forma de vida e diz
gostar muito do que faz, principalmente pelo contacto com os seus clientes, aos
quais gosta de se referir como família.
“As minhas velhinhas
vão ter muitas saudades do ‘Hermínio do Castelo’, sei que precisam muito de
mim. Gosto muito de trabalhar, de falar com elas, tenho pão quente três vezes
ao dia e há pessoas que ficam à espera para levar uma carcaça quentinha”, diz.
Explica, ainda, que gosta de acordar cedo para ir comprar produtos frescos ao
mercado e, se esgotar algum artigo, no próprio dia vai comprá-lo. Entrega
muitas encomendas em casa dos mais idosos e deixa os clientes pagarem mais
tarde.
“Quando chega o fim
do mês as clientes, com reformas baixas, recebem as facturas e ficam aflitas.
Ninguém sai daqui sem levar o que precisa por falta de dinheiro, pagam-me no
fim do mês. Foi sempre assim. Como vão fazer agora?”, pergunta. E as clientes confirmam-no. “Além das
saudades que vamos sentir, vão fazer muita falta porque, quando nos vemos
atrapalhadas, vamos ter com eles, já sabemos que nos ajudam”, diz Aida
Ferreira, que ainda se lembra quando o espaço não era uma mercearia.
“Este pequeno
comércio faz falta a muita gente. A cidade está a morrer, mais de metade das
pessoas que viviam aqui foram embora. A pior lei de sempre foi a lei da
Cristas, pôs os velhos mais perto da morte. As pessoas vêm a Lisboa ver os
lisboetas, não é ver os turistas”, acrescenta Natavidade Pacheco, 69 anos,
mulher de Hermínio, que acha que o prédio foi vendido para ser construído um
hotel.
Nuno Nascimento, 43
anos, também é um cliente assíduo. “Vai fazer muita falta, a mercearia fornece
o castelo todo. Eu também morava em Alfama e recebi uma carta para sair. Agora,
moro no Alto de São João”, comenta, enquanto procura por um melão. “O meu pai é
que sabe qual é o melhor melão”, diz Luís Sousa, 45 anos, filho de Hermínio,
emigrado na Holanda e, de momento, a gozar férias em Portugal.
“Venho cá duas ou
três vezes por ano e já não conheço metade das pessoas. É muito triste o que
está a acontecer. Não há um único prédio que não tenha Alojamento Local (AL)
aqui no Castelo. Concordo com o AL, mas da forma como está a ser feito em
Portugal não. Estamos a perder mesmo muitas pessoas, está a perder-se a
essência de Lisboa”, lamenta.
Luís está a viver em Amesterdão e tem uma casa a meia dúzia
de metros da mercearia do pai, onde fica quando vem ao país de origem. “Até a
mim, quase todas as semanas, me oferecem dinheiro pela casa, mas não a quero
vender. O meu pai teria comprado o prédio e dever-lhe-iam ter facilitado a
compra, porque o inquilino tem direito de preferência”, diz Luís, sem deixar de
denotar estranheza por o prédio ter sido vendido, “duas vezes no mesmo dia”.
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