Santa Maria
Maior quer travar despejos e alojamento local por estarem a “matar a alma” do
centro histórico de Lisboa
Samuel Alemão
Texto
“O meu nome é
Felicidade Silva, tenho 79 anos e sempre vivi em Alfama. Agora, com esta idade,
querem-me pôr na rua, porque o andar onde vivo foi comprado por uma miúda de
vinte e tal anos. Imaginem, depois de uma vida inteira a trabalhar, vou ser
colocada na rua por esta miúda. Mas eu vos digo que não saio de lá, nem
morta!”. À declaração emocionada da mulher, sentada numa cadeira no topo da
sala, junto a outros como ela, segue-se uma ovação ruidosa, pautada por
aplausos e gritos de apoio. Antes e depois da residente acossada, ouviram-se
depoimentos de cerca de uma vintena de moradores da freguesia de Santa Maria
Maior a quem, cerceados por ordens de despejo ou aumentos de renda que se lhes
equivalem, não restou alternativa senão sair da habitação de uma vida ou se
encontra nessa iminência. Algo que serviu na perfeição os propósitos da junta
de freguesia. Tanto quanto um momento de catarse comunitária, a sessão “Os
rostos do despejo- Pelo direito a habitar no centro histórico”, realizada no
Palácio da Independência, ali mesmo ao lado do Rossio, foi um acto político
muito bem encenado.
Isso mesmo
assumiu Miguel Coelho (PS), presidente da autarquia que congrega cinco bairros
históricos (Alfama, Mouraria, Castelo, Baixa e Chiado) a braços com uma crise
humanitária resultante das alterações legislativas ao arrendamento, mas também
do sucesso turístico da capital portuguesa, vivido nos últimos cinco anos.
“Quando discutimos no executivo da junta sobre a melhor maneira de tratar este
problema, e se devíamos lidar com ele de uma forma mais agressiva, reflectimos
muito. E chegámos à conclusão de que sim, era necessário chocar e alertar,
antes de mais a comunicação social, mas também quem tem responsabilidades nesta
matéria”, afirmou o presidente da junta, no início de uma intervenção quase tão
emotiva quanto os testemunhos dos moradores – e que, em muitos momentos, se
assemelhou a um comício eleitoral. “As pessoas ameaçadas pelos despejos existem
mesmo. As que aqui estão são uma pequena amostra das pessoas de carne e osso
que se encontram a passar por este drama. Não estamos apenas a falar de
estatísticas”, disse.
Lembrando que
quem ali estava a dar a cara era gente com carreiras contributivas – “que muito
deu ao país” e, por isso, não merece ser destratada -, Miguel Coelho salientou
que “de repente, estão todos directamente ameaçados num dos mais elementares
direitos constitucionais, que é o da habitação”. Fenómeno que, garante o
autarca, está a assumir contornos dramáticos pela dimensão. “Estamos a falar de
um impacto trágico para as nossas famílias, é algo insustentável para o
território. Isto vai tornar o centro histórico num lugar desinteressante e sem
alma, porque são estas pessoas que a conferem”, afirmou. Numa sala repleta,
onde, para além dos moradores da zona e dos jornalistas, se contavam também os
vereadores da Habitação, Paula Marques (PS), e dos Direitos Sociais, Ricardo
Robles (Bloco de Esquerda), o presidente da junta não se coibiu de fazer um
forte ataque ao seu partido e aos partidos de esquerda , PCP e Bloco, que
apoiam o governo por, acusa, demostrarem “falta de determinação em enfrentar
este problema”.
“Os bancos e os
fundos imobiliários especulativos compraram ruas inteiras, utilizando os
truques permitidos pela lei criada por Assunção Cristas e por Passos Coelho.
Mas tenho de vos dizer que tenho mágoa de que, no meu partido, não se perceba
que isto é um assunto essencial e já devia ter sido resolvido”, afirmou, ante
forte aplauso. Logo de seguida, porém,
redefiniu a mira do seu ataque. “Mas também tenho mágoa que os outros dois
partidos que fazem parte da solução governamental, o PCP e o Bloco de Esquerda,
não tenham colocado esta questão fulcral como uma das essenciais para o acordo
estabelecido, uma daquelas de sim ou sopas”, disse Coelho, antes de sublinhar
que “esta é que é a questão central”. E até atirou com uma possível explicação
para o que entende ser a reacção algo tímida de ambos os partidos à esquerda do
PS: “Estas pessoas não podem fazer greve e, por isso, não lhes dão a devida
atenção”. Dos “outros, da direita”, disse o autarca, “já se sabe que não
podemos esperar grande preocupação com este problema”.
A sessão foi um
misto de revelação de testemunhos e comício político.
Estas apreciações
surgiram logo após o autarca ter avançado com uma série de dados estatísticos
que, antecedidos dos depoimentos das principais vítimas do problema dos
despejos ou dos aumentos brutais de renda, sustentavam o quadro negro ali
retratado. O presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior lembrou que
a sua circunscrição territorial tem cerca de 13.000 habitantes, mas recebe
diariamente 250 mil vistas, o que causa um “impacto terrível” naquela parte da
cidade. Mas o pior, diz, é que a onda turística está a ser acompanhada por uma
hemorragia demográfica, fruto dos despejos. Nos últimos quatro anos e meio, a
freguesia perdeu 2.059 eleitores, tendo agora 10.411. Só o bairro de Alfama
viu, nesse período contado entre Outubro de 2013 e a presente data, serem
riscados dos seus cadernos eleitorais 930 pessoas. Na Mouraria foram 651 e até
no Chiado deixaram de contar 274 possíveis votantes. Em contraponto, em toda a freguesia, o
registo de unidades de alojamento local passou de um total de 43 em 2013 para o
significativo número de 1.676 neste momento.
Por tudo isto,
Miguel Coelho faz um conjunto de propostas, assumindo-se uma delas com carácter
de urgência: uma moratória sobre o licenciamento do alojamento local até à
saída de nova legislação que regulamentará o sector. Ao anunciá-la, a sala,
mais uma vez, irrompeu num frenesi de aplausos e palavras emocionadas. Mas o
presidente da junta tem uma ideia muito precisa das medidas que quer ver
inscritas, com carácter definitivo, no novo pacote legislativo que deverá
colocar um travão na “Lei Cristas/Passos” sobre o arrendamento. Entre elas, à
cabeça, pede a proibição dos despejos para quem tenha mais de 65 anos. Além
disso, defende também o prolongar do prazo de 15 anos para adaptação ao Novo
Regime do Arrendamento Urbano (NRAU); a proibição de rescisão de contratos de
arrendamento com a justificação de obras profundas; a proibição de rescisão dos
contratos por ruína dos imóveis, caso se prove que o proprietário não fez obras
de conservação; ou ainda a proibição da alteração das condições contratuais
justificadas pela não resposta dos inquilinos às notificações.
No final da
sessão, e questionada por O Corvo sobre se concorda com a proposta de Miguel
Coelho de se estabelecer uma moratória sobre novos licenciamentos de alojamento
local enquanto o novo quadro legal do sector não estiver em vigor, a vereadora
da Habitação optou pela cautela. “É uma medida interessante, mas não está nas
mãos da Câmara de Lisboa fazê-lo, como sabe”, disse Paula Marques, deixando
implícita a inevitabilidade de a questão ter de passar pela Assembleia da
República.
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