quarta-feira, 25 de abril de 2018

O Mercado do Bolhão e o desprezo oficial pelo património / Velas ou luz eléctrica?




O Mercado do Bolhão e o desprezo oficial pelo património

Temos ainda poucos dias para ver o que resta de um património único da cidade que a câmara se prepara para destruir.

ALEXANDRE GAMELAS
24 de Abril de 2018, 6:13

Quem passa pelo Bolhão este mês vê as lojas exteriores praticamente vazias e no interior uma série de caixotes de plástico empilhados cuidadosamente com os dizeres "mercado temporário do Bolhão". Parece assim que se torna finalmente real a obra planeada durante décadas. Dizem-nos que é para Maio. Temos então ainda poucos dias para ver o que resta de um património único da cidade que a câmara se prepara para destruir, ao mesmo tempo que publicita a sua reabilitação.

O interior do mercado do Bolhão no Porto é constituído por pequenos pavilhões de venda, desenhados de raiz na década de 1910 e atribuídos a Teixeira Lopes, um dos mais importantes arquitectos da sua geração. Foram baptizados de "barracas" mas o nome peca por excesso de modéstia. As "barracas" existem em quatro tipologias e tamanhos diferentes, e dispõem-se de forma cuidadosamente planeada no terrado do mercado. A sua linguagem arquitectónica é, à sua escala, comparável em erudição à do próprio exterior do mercado. Conjuga pormenores da arquitectura tradicional portuguesa, como os beirados e os azulejos, com os telhados de ardósia de inspiração francesa; caixilharias de guilhotina, tipicamente inglesas ou holandesas, dispostas de modo fortemente original e por vezes de configuração neo-gótica; colunatas e arcos que, especialmente nos pavilhões abertos, adquirem uma monumentalidade clássica pouco comum, e comparável por exemplo ao mercado de Covent Garden, em Londres.

Aparte a análise académica, os pavilhões do Bolhão são também especiais porque criam ruas bem definidas dentro do próprio mercado, com uma pequena praça interior coberta pelo passadiço de 1940 (que também será demolido). A experiência de ir ao Bolhão é única também por isso: um misto de bazaar oriental e arquitectura ecléctica Beaux-Arts. Os arcos apontados das janelas encerram potes com especiarias, mas a venda é feita na rua, que na verdade é um cenário cuidadosamente desenhado e planeado.

Tudo isto foi desprezado pela câmara, responsável pelo projecto, que foi incapaz de ver nos magníficos pavilhões mais do que o abandono a que gerações sucessivas de poder local os deixou. O projecto que apresentam como "conservador" vai destruir tudo isto e substituí-lo por uma estrutura nova em aço e vidro, que poderia estar em qualquer lugar. Houve uma petição para o impedir. Em reunião de câmara, há dois ou três anos, apresentámo-la e foi-nos dito pelos responsáveis que os pavilhões eram "palheiros" e que "se todos pensassem desta forma nunca se tinha construído a ponte D. Luís".

Esta forma de raciocínio primário está explicada clarissimamente no texto recente de Bárbara Reis no PÚBLICO, "Velas ou Luz eléctrica". É a falácia do progresso. Como exemplo, outro dos argumentos oficiais para a demolição dos pavilhões é a sua suposta inadequação aos padrões higiénicos actuais. É fácil dizer isto: os pavilhões estão degradados, e é difícil imaginá-los em boas condições. Mas obviamente reabilitar o património não implica viver como há cem anos atrás. Os actuais toldos de plástico podem ser substituídos por uma solução permanente e digna; os pavilhões podem receber infra-estruturas novas, bancas uniformizadas, climatização interior; todos os bastidores de câmaras frigoríficas e armazéns podem ser igualmente construídos. Não são as Barracas do Bolhão que impedem que o mercado funcione em pleno, antes dão-lhe a graça e originalidade que o tornam numa obra única.

Como no Bolhão, é este o status quo actual da grande reabilitação urbana no Porto: edifícios e até quarteirões emblemáticos da cidade são esventrados com a fachada deixada porque tem de ser, e acabados com janelas de plástico e mansardas em zinco para acrescentar um ou dois pisos. É efectivamente obra nova por cima da cidade histórica, sem apelo nem agravo. A reabilitação urbana está assim efectivamente confinada às obras de pequenos privados com alguma consciência e sensibilidade.

Há cinco anos, o Porto ainda era uma cidade rica em património – os anos de rendas controladas e da crise tiveram o efeito menos mau de nos deixar uma cidade histórica preservada de forma autêntica, raridade na Europa Ocidental. O controlo estrito sobre a construção na Baixa e centro histórico poderia ter conjugado facilmente soluções de conforto actual com a preservação da cidade tradicional. Infelizmente, esse controlo estrito ou nunca aconteceu ou desapareceu e hoje em dia a autenticidade do Porto está-se a destruir a um ritmo exponencial.

Quando é a própria câmara a promover essa destruição como no caso do Bolhão, as perspectivas não são optimistas. Caberá aos portuenses julgar – mas, principalmente e pior, arcar com as consequências.

Velas ou luz eléctrica?

Em vez de estar fechado à chave, o último relatório do Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios sobre o centro histórico do Porto devia ser debatido. Como é um documento interno, usa um tom directo e franco. E obriga-nos a pensar.

BÁRBARA REIS
13 de Abril de 2018, 8:41

O debate sobre a descaracterização dos centros históricos faz lembrar George Orwell e o seu Politics and the English Language, um pequeno ensaio de 1946 sobre o “declínio da língua inglesa” e os “maus hábitos” da escrita. Num exemplo clássico de como começar um bom texto, o escritor diz-nos que “todo o combate contra o abuso da linguagem” é visto como um “arcaísmo sentimental, como preferir velas à luz eléctrica”.

Em Portugal estamos na mesma. Sempre que alguém diz que os centros históricos de Lisboa e do Porto correm o risco de se tornarem cenários artificiais para “turista ver”, os “progressistas” respondem uma destas três coisas: a transformação é inevitável, a Disneylândia é melhor do que o abandono e a nostalgia não pode travar o desenvolvimento.

Já foi assim com a política para os autocarros gigantes com que as agências de viagens entupiam a Baixa de Lisboa. Estava à vista de todos que os “muros com rodas” eram grandes de mais para as curvas do centro histórico e que prejudicavam o próprio objectivo do negócio: quando chegavam à Sé Catedral, os turistas viam o monumento nacional tapado pelo “muro” que os levara até lá. Durante anos, ouvimos que esse circuito turístico era “inevitável”, que sem isso a Sé ficaria vazia, que impedir o acesso dos autocarros era defender a Lisboa “do passado”. Na pior das hipóteses, éramos jurássicos; na melhor, pouco iluminados. Em Agosto, o presidente da câmara, Fernando Medina, pôs um ponto final. Agora que passaram seis meses pode dizer-se que o bairro da Sé continua coberto de turistas de manhã à noite. Nem a chuva inclemente os inibe. E ainda bem. Ficou demonstrado que não só não era inevitável que os autocarros subissem até à Sé como a nova política não parece ter prejudicado o turismo e, seguramente, beneficiou a cidade.

Em 2017, Lisboa recebeu 4,5 milhões de turistas. É muito ou pouco? O Instituto do Planeamento e Desenvolvimento do Turismo quis “estudar o assunto de forma desapaixonada” e a conclusão foi clara: a pressão turística é enorme. Em Lisboa há nove turistas por cada residente, no Porto há oito. Em Londres há quatro e em Barcelona cinco. Perante isto, não podemos continuar a dizer “quem me dera ter os problemas das grandes cidades” como quem pergunta “querem ser pobres para sempre?!”. Esse raciocínio tem o problema de nos propor um encolher de ombros colectivo (por sermos pobres, só podemos aplaudir) e, ao mesmo tempo, defender uma ideia de cidade que essas mesmas cidades ricas já estão a tentar corrigir. Dizem-me: nos centros das grandes cidades europeias já só moram ricos (o que não é sequer verdade), porque haveríamos de ser diferentes? Há outra hipótese: fazer um exercício de lessons learned e tentar evitar a repetição de erros.

O último relatório do Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS na sigla inglesa) sobre o centro histórico do Porto — é de Fevereiro, mas continua a não ser público — expõe a gravidade da situação. Vinte e um anos depois de ter sido inscrito na lista de Património Mundial da UNESCO, não tem uma zona-tampão com protecção jurídica, nem um plano de salvaguarda.

Como é um documento interno, o tom é franco e não usa as “palavras sem significado” que tanto incomodaram Orwell. Os técnicos do ICOMOS-Portugal dizem que é “incompreensível” que as entidades públicas responsáveis pela protecção do património mundial tenham aprovado tantos projectos que “põem em perigo o valor universal” do Porto, a sua “autenticidade” e a sua “integridade”. Dão o exemplo da “praça” das Cardosas, que, cedida pela Sociedade de Reabilitação Urbana - Porto Vivo à empresa de construção Lúcios para reabilitação, passou a estar fechada à noite como se fosse um condomínio privado. Dizem que os métodos aplicados pelos promotores e pela Porto Vivo “contrariam as boas práticas”, seguem uma “lógica” que “não é de reabilitação”, mas de “renovação urbana”, e têm uma “estratégia de fachada”.

E fazem uma denúncia grave: em 2014, a Câmara Municipal do Porto enviou à UNESCO documentos “omissos” ou “falsos” sobre o centro histórico, alegando que existia uma zona-tampão especial protegida por lei quando, nessa altura, a Câmara de Vila Nova de Gaia já tinha conseguido anular o aviso legal sobre a protecção no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto dois anos antes. Temos duas opções: defender as nossas cidades ou dizer que o ICOMOS prefere velas.

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