Reabilitação urbana em Alfama é quase sempre “selectiva” e
“virada para o turismo”
Samuel Alemão
Texto
19 Abril, 2018
Há prédios totalmente ocupados por moradores ou ainda em
obras que já se encontram registados pelos senhorios como sendo de alojamento
local. Um indício mais de como, num dos mais típicos bairros lisboetas, parece
não ter fim à vista ser o avassalador avanço do fenómeno. Alfama está a mudar
“muito depressa e de forma muito violenta”, diz Ana Gago, investigadora que
concluiu uma investigação no âmbito de uma tese de mestrado. Nela se garante
existir uma inequívoca relação entre o aluguer de curta duração e a
“gentrificação turística”. Além disso, a grande maioria das obras de
reabilitação deixa de fora as casas com residentes de longa duração, diz o
estudo. “Os moradores sentem que as alterações não são feitas a pensar neles”,
afirma a académica. Na área estudada, Rua dos Remédios e sua envolvente, em 945
apartamentos, 235 estavam dedicados ao alojamento local.
A esmagadora maioria das obras de reabilitação de edifícios
que estão a ser feitas em Alfama destina-se à sua conversão à actividade turística,
delas quase excluindo a totalidade dos residentes. Mais, a sua realização tem
um carácter selectivo e estará a servir para levar a cabo um processo de
desalojamento de muitos moradores, de longa data e até mais recentes, de um dos
mais típicos bairros lisboetas. A conclusão faz parte do estudo “O aluguer de
curta duração e a gentrificação turística em Alfama, Lisboa”, realizado pela
investigadora Ana Gago, 29 anos, no âmbito da sua tese de mestrado em Turismo e
Comunicação – promovido pelo Instituto de Geografia e Ordenamento do Território
(IGOT) da Universidade de Lisboa e ainda pela Faculdade de Letras da mesma
instituição e pela Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril.
“A reabilitação que está a acontecer no bairro não beneficia
os inquilinos que já lá estão, porque tem um carácter selectivo. Visa,
sobretudo, promover a transformação das casas antes ocupadas por residentes em
locais para acolher turistas”, explica a O Corvo, dando conta de um trabalho de
investigação realizado nos últimos dois anos e focado numa parcela específica
do território de Alfama, centrada na Rua dos Remédios e sua envolvente. Nessa
área delimitada, correspondente à antiga freguesia de Santo Estêvão e hoje
parte de Santa Maria Maior, de acordo com dados do final de 2016, dos 945
alojamentos existentes 235 serviam para aluguer de curta duração para turismo,
anunciados de forma intermitente em plataforma online. “A transformação está a
ser muito rápida, abrupta mesmo”, comenta a arquitecta de formação, também ela
moradora em Alfama.
Uma das conclusões do seu estudo estabelece uma “relação
estreita entre a proliferação de alojamentos turísticos, o investimento
imobiliário e a reabilitação do edificado habitacional”, partindo do
levantamento dos imóveis que mudaram de proprietário e dos foram reabilitados
entre 2015 e 2017, na área do estudo intensivo. “A compra de casas em Alfama
ora é feita por investidores imobiliários ora por investidores turísticos,
sendo que o mesmo se aplica à reabilitação do edificado. Parece haver uma
ligação de complementaridade entre estes dois tipos de investidores: os
primeiros investem no edificado para depois o revender aos segundos, numa
lógica especulativa”, lê-se na tese de Ana Gago, na qual se dá conta que, na
área de estudo intensivo, se apurou a existência de um único caso de compra e
reabilitação para habitação própria, na sequência da compra do prédio inteiro,
do desalojamento directo de dois moradores e na transformação das duas fracções
em alojamento local.
O fenómeno de “desalojamento directo” – definido nesta
investigação académica como a saída de um morador, seja por incapacidade em
suportar um “aumento abrupto” da renda ou se recusar a fazer a obras urgentes
na casa arrendada – é abordado como especial detalhe. Facilitado em grande
medida pela entrada em vigor, em 2012, do Novo Regime do Arrendamento Urbano
(NRAU), foi detectada a sua ocorrência em 27 situações concretas confirmadas
pelo levantamento realizado por Ana no território em análise – Rua dos Remédios
e sua envolvente, recorde-se. Estes desalojamento directos, que no caso
corresponderam aos despejo de 36 pessoas – das quais apenas duas terão, depois,
conseguido manter residência em Alfama -, serão apenas a face mais visível e
aguda de um fenómeno que a investigadora não tem dúvida em avaliar como bem
mais abrangente. “Estamos a falar de um fenómeno muito difícil de detectar, por
que é silencioso. Muitas vezes, sabe-se que as pessoas saem, mudam de casa, mas
não se conhecem as razões da mudança”, nota.
Certo é que, em
Alfama, à saída forçada das habitações, tipificada como desalojamento directo,
se juntam ainda os fenómenos do “desalojamento por exclusão” – referente à
impossibilidade em encontrar casa condigna a preços acessíveis – e do
“desalojamento indirecto” – que se define como aquele causado pelas
transformações ocorridas no bairro, sobretudo pela subida do custo de vida. Os
três fenómenos foram ali detectados por Ana e, conjugados, contribuem para a
hemorragia de habitantes fixos do bairro. A título de exemplo, e por contraste
com os tais 235 alojamentos turísticos contabilizados no final de 2016, o
trabalho refere que, entre Fevereiro e Abril de 2017, “apurou-se a existência de
apenas seis casas com oferta de arrendamento de longa duração, todas com preços
de renda mensal superiores ao ordenado mínimo”.
Pior, e consultando o
Registo Nacional de Alojamento Local (RNAL), o estudo detectou a existência de “alguns imóveis registados
como a alojamento local que, na prática, ainda não o são, fazendo adivinhar o
crescimento desta actividade no bairro de Alfama”. Ana Gago encontrou situações
destas tanto em prédios integralmente ocupados por inquilinos de longa duração,
naquele momento, como até em edifícios totalmente desocupados e em obras. E
estas remetem, novamente para a questão da reabilitação. “Este fenómeno aponta
para uma produção de espaço que promove desigualdades sociais: em Alfama, as
casas que parecem estar em piores condições de habitabilidade são, muitas
vezes, aquelas que servem para habitação, enquanto que as que estão em melhores
condições têm servido propósitos meramente especulativos ou para alojamento
turístico”, enuncia-se nas conclusões da tese.
Por tudo isto, Ana
não tem dúvidas em apontar a existência de uma evidente relação directa entre a
profusão do aluguer de curta duração e a gentrificação turística. Fenómeno que
faz questão de diferenciar da “turistificação”. “Pode haver processos de
turistificação sem expulsão de residentes, como sucede na Nazaré ou em algumas
zonas do Algarve. O que define a gentrificação turística é, precisamente, essa
expulsão da comunidade”, explica, recordando o momento em que, envolvida na
vida da comunidade onde reside há sete anos, sentiu despertar o seu interesse
pelo tema. Em 2014, já se percebiam alguns sinais do que, gradualmente, se
viria a assumir como uma pandemia. “Comecei a ouvir nas conversas de café, num
ritmo quase diário, as pessoas a queixarem-se que o seu contrato não havia sido
renovado ou que conheciam alguém nessa situação”, lembra. Havia um efeito óbvio
do NRAU, mas também o crescimento meteórico do alojamento local. Ambos os
sintomas têm vindo a crescer e estão relacionados. Por isso, a investigadora
defende novas alterações legislativas para corrigir o que entende estar errado.
Chegados aqui, e enquanto o quadro legal não muda, e sendo
claro que a demanda turística de Lisboa continuará a ditar a dimensão do
fenómeno, Ana Gago manifesta “grande preocupação pelas consequência políticas”
do mesmo. A entrevistas que realizou no âmbito do trabalho assim o indicam.
“Isto tem que ver com o que se quer fazer com a cidade. Os moradores sentem que
as alterações não são feitas a pensar neles ou tendo sequer a preocupação de os
ouvir. Estamos a assistir à imposição de um certo modelo por grupos exteriores.
No fundo, as pessoas sentem que a cidade não é muito democrática, que a sua
opinião não conta para nada”, afirma. Não por acaso, numa das entrevistas, uma
moradora de longa data, confrontada com a inevitabilidade do despejo, desabafa:
“Sou uma parasita que aqui anda!”.
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