Lisboa terá três “salas de chuto” até ao fim do ano: no
Lumiar, em Alcântara e outra móvel
Sofia Cristino
Texto
20 Abril, 2018
A vontade de abrir uma sala de consumo assistido de drogas,
em Lisboa, sugerida por vários executivos camarários, vai finalmente
concretizar-se. As salas fixas vão ser instaladas no Lumiar, perto do Bairro da
Cruz Vermelha, e em Alcântara, nas traseiras da estação de tratamento de águas
residuais na Avenida de Ceuta. Vai ser criada, ainda, uma unidade móvel, que
procurará dar resposta aos consumos espalhados pelas zonas oriental e histórica
da cidade. Mais do que dar um “espaço limpo” aos toxicodependentes para
consumirem de forma mais segura, estes equipamentos irão proporcionar apoio
médico e psicológico, acesso a complementos alimentares, vestuário, serviços de
higiene, respostas de habitação e empregabilidade. Convidar os moradores destas
freguesias a conhecerem as salas, de forma a quebrar estigmas e preconceitos, é
outro dos objectivos das entidades por trás deste projecto. “Temos de deixar de
considerar o consumidor como criminoso, mas como um ser humano com
dificuldades, que não consegue resolvê-las sozinho”, diz Fernando Medina.
Até ao final deste ano, as freguesias do Lumiar e de
Alcântara vão ter duas salas de consumo assistido de estupefacientes. Está,
ainda, prevista uma unidade móvel, que dará resposta aos consumidores dispersos
nas zonas oriental e histórica da cidade e que poderá avançar mais rapidamente
por não exigir obras. As medidas foram anunciadas pelo vereador dos Direitos
Sociais, Ricardo Robles, durante a apresentação do diagnóstico sobre consumos
de substâncias psicoactivas na cidade de Lisboa, na tarde desta quinta-feira,
19 de Abril. “Continuam a existir consumidores de alto risco, em Lisboa, e os
avanços sociais não serão completos se deixarmos pessoas à margem. A abordagem
aos consumidores tem de se afastar de uma abordagem agressiva e ser feita numa
perspectiva de prevenção e reinserção social, reconhecendo que não há respostas
únicas”, diz o autarca. Envolver a população no combate ao estigma, convidando
também os moradores a conhecerem estes espaços, é outro dos principais
objectivos da Câmara Municipal de Lisboa (CML).
O presidente da
Câmara de Lisboa, Fernando Medina, diz que a constituição de programas de
consumo vigiado mostram que existe “uma vontade de ligar o toxicodependente ao
tecido familiar e social, nomeadamente à saúde, estruturas sem as quais não se
consegue libertar desta dependência”. E explica: “Há pessoas que revelam um
deslaçamento da realidade familiar e social enorme e é no entendimento desta
realidade onde se encontra o passo central da resposta. O trabalho feito no
terreno reforça a confiança das comunidades, que passam a preocupar-se com a
melhoria da envolvente em zonas problemáticas”. “Temos de deixar de considerar
o consumidor como criminoso, mas como um ser humano com dificuldades, que não
consegue resolvê-las sozinho”, diz Medina.
A vontade de abrir uma sala de consumo assistido de drogas
em Lisboa já foi, por diversas vezes, sugerida pelos executivos camarários,
desde a alteração legislativa de 2001, que descriminalizou o consumo, mas nunca
chegou a ser concretizada. “Apesar da ideia ser apoiada da Esquerda à Direita,
tiveram de ser os profissionais que andam na rua a pressionarem para que se
desse esse passo. A resposta já vem com dezassete anos de atraso, mas,
finalmente, chegou”, diz, ainda, Ricardo Robles.
Mais do que dar um
“espaço limpo” aos toxicodependentes para consumirem as drogas de forma mais
segura e afastados de zonas abandonadas convidativas a esta prática, estes
equipamentos irão proporcionar, ainda, aos utentes, apoio médico e psicológico,
acesso a complementos alimentares, vestuário e serviços de higiene e a
respostas de empregabilidade e de habitação. Haverá, também, ofertas de
tratamento, esperando-se, assim, reduzir o número de mortes por overdose e a
transmissão de infecções. Uma vez que grande parte destes consumidores não têm
a sua documentação em dia, terão a possibilidade de fazer ou actualizar o
cartão de cidadão. “São pessoas muito fragilizadas, que precisam de respostas
de primeira linha e de condições de supervisão de profissionais especializados
e de restituir os seus direitos de cidadania”.
Elsa Belo, da Associação Ares do Pinhal, reforça que estas
salas de consumo têm de ser, acima de tudo, “dignas”. “O facto de ser um espaço
de conforto e de relações interpessoais é o que vai atrai-los a virem. Até pode
não vir para consumir, mas só tomar uma refeição. É muito mais do que uma sala
onde se vai ‘chutar’, é uma sala onde se acolhe. Queremos realizar actividades
lúdicas, ensiná-los a navegar na internet e a fazerem outro tipo de coisas que
não estão habituados. Muitos só vêm a Lisboa buscar estas substâncias e depois
acabam por ficar cá, sem nada e sem ninguém. Gostávamos que voltassem à terra
de origem, por exemplo”, avança.
O horário de
funcionamento destas salas, diz ainda, será adaptado às necessidades dos
consumidores. “Eles vão permanecer durante o tempo que precisarem. Não vão
estar abertas das 9h às 5h. Gostávamos, também, de convidar os moradores a
entrarem e a explicar-lhes o que são estas salas, não pode ser um espaço que vem
criar medos”, explica.
Segundo os dados recolhidos pelo Grupo de Activistas em
Tratamentos (GAT), pelas associações Crescer na Maior, Ares do Pinhal e a
Associação de Médicos do Mundo – Lisboa, existem cerca de 1400 consumidores em
situação de maior risco e “mais descrentes”, maioritariamente de nacionalidade
portuguesa, sendo 80% homens, com uma média de idades superior a 40 anos. Vivem
em instituições de acolhimento ou em condições habitacionais muito precárias, e
35% encontram-se em situação de sem-abrigo. As principais drogas consumidas são
a cocaína e a heroína, sendo 30% do consumo injectado e 70% fumado.
A freguesia que apresenta um maior número de potenciais utilizadores
das salas de consumo assistido é a de Arroios (325), seguindo-se do Beato
(320), Campo de Ourique (303), Lumiar (270), Santa Maria Maior (250) e Penha de
França (175). No Lumiar, das 270 pessoas identificadas como toxicodependentes,
70% consome cocaína e 75% heroína, sendo que 40% se encontram em situação de
sem-abrigo. “A realidade de hoje não é comparável à que se verificava há 20
anos atrás”, diz Américo Nave, da Associação Crescer, salientando que o
trabalho realizado de apoio a esta população foi eficaz para muitos, mas não
para todos. “Pensamos que estas salas possam ser a resposta para complementar o
trabalho que falta”, afirmou o responsável, que esteve a apresentar os
resultados deste estudo.
Joaquim Fonseca, coordenador Divisão de Intervenção nos
Comportamentos Aditivos e nas Dependências (DICAD) da Administração Regional de
Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, salienta que o consumo a “céu aberto” é uma
constante nestes diagnósticos, assim como o desemprego e o afastamento de
estruturas sociais, familiares e de saúde que estas pessoas apresentam.
“Queremos encontrar outras estratégias de aproximação às pessoas e o trabalho
que é feito ao nível das freguesias é muito importante. Na Mouraria,
encontramos muitas pessoas a injectar heroína, na rua, e estas são as que têm
mais dificuldade em aderir a programas de tratamento mais estruturados”, diz.
Estas práticas ocorrem junto a complexos escolares,
principalmente nas traseiras de jardins de infância e escolas básicas, parques
infantis e zonas de lazer, alerta Pedro Delgado Alves (PS), presidente da Junta
de Freguesia do Lumiar. “Encontramos a população mais fragilizada junto às
escolas básicas, por isso, um dos nossos grandes objectivos é criar zonas de
protecção junto a estes equipamentos, apostando numa estratégia de não abandono
do espaço público ou sítios que possam ser convidativos ao consumo, pelo estado
de abandono em que se encontram”, explica.
Ao contrário da ideia
criada de que estes espaços incentivarão o consumo, o maior desafio, diz Delgado
Alves, vai ser mesmo conseguir levar as pessoas a irem para uma sala vigiada.
“As salas só vão ser instaladas em sítios onde o problema já existe, o mais
difícil vai ser mesmo trazer as pessoas”, afirma. Além disso, “e não menos
importante”, reforça, será necessário fazer um trabalho pedagógico que envolva
os moradores. “Há pessoas que têm receio, mas é porque ainda não conviveram de
perto com o problema. Já antes do processo de requalificação da Alta Lisboa,
associava-se esta parte da cidade ao tráfico de droga, que ainda continua a
pesar, apesar de já não ocorrer desta forma. A mudança do tipo de residentes
torna as repostas mais exigentes e vamos explicar-lhes o que pretendemos. Para
o projecto ser bem-sucedido, temos de comunicar com a população tanto ou mais
do que com os utilizadores” explica.
“Muitas pessoas perguntam-nos porque vamos fazer isto agora.
Apesar de não existir um aumento do consumo, também não há uma diminuição, o
problema está estático, o que evidencia que é necessário outro tipo de
resposta. Isto não é um improviso de loucos radicais, esta ideia foi estudada,
ao longo de muitos anos, e já está implementada em vários países. Este passo é
histórico”, diz, ainda, o presidente da junta do Lumiar.
João Goulão, director
geral do serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências
(SICAD), lembrou que Portugal foi pioneiro na descriminalização do consumo de
drogas e que temos uma estratégia nacional de luta contra a droga desde 1989. E
elogia a continuação deste trabalho. “As equipas de rua chegam às franjas mais
desorganizadas do grupo dos toxicodependentes, ajudando-os a ter uma melhor
qualidade e esperança de vida. Uma das medidas estruturantes do último plano
estratégico foi a introdução do diagnóstico, que nos traz mais ‘pixéis’ sobre
esta realidade. É fundamental termos a informação de quem lida com eles todos
os dias no terreno. De outra forma, não conseguiríamos”, sublinha.
Luís Pisco,
presidente do conselho directivo da Administração Regional de Lisboa e Vale do
Tejo (ARS-LVT) alerta, por sua vez, para a importância da construção destas
salas como garantia de uma melhor qualidade da saúde pública. “Nunca é de mais
construir espaços de edificação do futuro. Trata-se de uma questão de saúde
pública que a todos diz respeito”, frisa.
Fernando Araújo,
secretário de Estado Adjunto e da Saúde, lembra que, neste momento, temos das
taxas mais baixas de mortalidade por overdose na Europa, sendo o “grande
objectivo”, agora, “captar os consumidores mais descrentes para o Serviço
Nacional de Saúde, procurando dar lhes um projeto de vida, e lutar contra o
estigma, para que não desistam das pessoas”.
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