Já fecharam 120 lojas históricas de
Lisboa
Mafalda Gomes
MARTA F. REIS
23/04/2018 13:11
Nos próximos dois
meses, a Rua Augusta, no coração da Baixa lisboeta, vai perder duas das suas
lojas de referência: a Casa Frazão, de tecidos, e a Camisaria Pitta. Lojistas
mais antigos admitem preocupação com o futuro, numa altura em que várias vozes
começam a pedir mais proteção. Nos últimos tempos terão encerrado 120 lojas com
algum interesse histórico. Segundo um levantamento da União de Associações do
Comércio, as lojas de souvenirs baratos aumentaram 6,5 vezes. Hotéis e
alojamento local multiplicam-se.
A azáfama é grande ao balcão da Casa Frazão, no n.o 259 da
Rua Augusta. É assim desde que anunciaram o encerramento, previsto para junho.
As vitrinas gritam “liquidação até 70%”. “Há pessoas que vêm para se despedir,
algumas foram apanhadas de surpresa”, diz um dos cerca de 30 sócios,
funcionários a quem o fundador deixou a casa em testamento. “Se não fosse isso,
não havia este movimento.”
A Casa Frazão foi fundada em 1933 e é uma das referências
dos tecidos na Baixa de Lisboa | FOTO: Mafalda Gomes
Como pano de fundo do vaivém de perguntas e pedidos, mais
tecidos, paninhos e lenços, tudo em promoção, a parede central mantém o
medalhão com o perfil de Manuel Alves Frazão, que abriu a casa de tecidos em
1933. Em baixo, as placas comemorativas das últimas décadas. Em 1958 celebraram
as bodas de prata, em 1983 as bodas de ouro e, em 2008, as bodas de diamante. A
contagem do tempo vai ficar por aqui. Em 2017 foram reconhecidos como “Loja com
História” no programa lançado pela Câmara Municipal de Lisboa, título que
durante cinco anos os iria proteger do novo regime de arrendamento urbano e
adiar um previsível aumento da renda, em última instância até aos preços de mercado,
isto se o contrato fosse renegociado. Os sócios optaram por aceitar uma
proposta do senhorio para saírem já e não tencionam abrir noutro lugar. “Pagar
rendas de 7 mil, 10 mil euros a vender tecidos?”, atira um dos responsáveis.
Poderia ser caso isolado, mas basta descer a Rua Augusta
para encontrar várias vozes de desalento entre os lojistas num trajeto de 550
metros onde os turistas são muitos, as esplanadas estão cheias, mas os
clientes, dentro dos estabelecimentos mais antigos, não abundam.
Na parede, um medalhão lembra o fundador, Manuel Alves
Frazão, que deixou o negócio aos funcionários. Quem tivesse mais de dez anos de
casa passava a ser sócio | FOTO: Mafalda Gomes
A Casa Frazão não é sequer a única em vias de fechar. A
Camisaria Pitta, com uma fachada pitoresca em madeira, também anuncia
liquidação total. Fecha no final de maio. No local estão apenas os
funcionários, sem ordem para comentar o encerramento anunciado já nas redes
sociais pelo gerente, com quem não foi possível chegar à fala. Também têm o
título de Loja com História e uma história a condizer. O negócio nasceu em 1887
na Rua de São Julião e mudou-se depois para o número 195 da Rua Augusta.
Segundo a resenha histórica no site do programa da CML, forneceram a casa real
e o corpo da presidência. E um dos pontos altos terá sido quando, em 1943,
davam que falar numa das cenas da comédia “O Costa do Castelo”, em que eram
elogiadas as belíssimas camisas Pitta. “‘Pita’…? Isto é seda!” “Não! Pitta
Camiseiro...! Quinhentos escudos!”, ficou quase como slogan.
A confirmação do encerramento da Casa Frazão aumentou nos
últimos dias o movimento. As clientes são sobretudo portuguesas, antigas e
novas | FOTO: Mafalda Gomes
Se o fecho de duas lojas históricas no espaço de poucas
semanas poderá ser coincidência temporal, o cenário desenha-se com alguns
números. Cristina Figueiredo, coordenadora do gabinete jurídico da União de
Associações do Comércio e Serviços (UACS), lembra que de acordo com um recente
voto de protesto aprovado por maioria na Assembleia Municipal de Lisboa, em
fevereiro, estima-se que já tenham fechado mais de 120 lojas do núcleo de 300
pré-selecionadas pela autarquia para o programa “Lojas com História”, que
resulta de uma ponderação de diferentes critérios que incluem espaços com mais
de 25 anos ou que preservem ofícios antigos.
Em 2016, a UACS fez um levantamento exaustivo que apontou
para o fecho de 108 estabelecimentos comerciais, cerca de três quartos como
consequência direta ou indireta da lei do arrendamento. Mais de metade tinham
25 ou mais anos de antiguidade ou eram representativos do comércio tradicional,
diz Cristina Figueiredo, que deixa ainda outro indicador: “Das primeiras 63
lojas já classificadas pela CML [como Lojas com História], cerca de metade têm
contrato de arrendamento a prazo, já ao abrigo da Nova Lei do Arrendamento
Urbano.”
O que substitui o comércio tradicional? De acordo com o
levantamento da UACS no verão de 2016, as lojas de recordações/souvenirs de
baixo preço tinham passado de 14 em 2012 para cerca de 90 – um aumento de 6,5
vezes em quatro anos. O artesanato português – típico ou de autor – tinha
reduzido de 24 estabelecimentos para 17. Só ourivesarias, joalharias e
relojoarias na Baixa tinham fechado 21 em seis anos. “Diminuíram as livrarias,
casas de fotografia, as casas de ferragens, as ortopedias, as casas de
sementes, o têxtil lar e atoalhados, as retrosarias, quer pela crise económica
e diminuição do poder de compra, quer por mudanças de consumos”, resume a
responsável, que admite que a reforma do arrendamento urbano em 2012
“empobreceu a identidade e atração turística da cidade”.
Ao mesmo tempo multiplicam-se os hotéis e o alojamento
local. De acordo com um estudo recente da Cushman & Wakefield, nos próximos
três a cinco anos preveem-se 50 novas unidades hoteleiras, a maioria na
capital, tendo hoje a Área Metropolitana de Lisboa mais de 360 estabelecimentos
hoteleiros.
É a crítica a algum desequilíbrio que se ouve porta a porta
nos estabelecimentos mais antigos da Rua Augusta. José Quadros, há 32 anos à
frente da Londres Salão – que com o fecho da Casa Frazão passará a ser a maior
loja de tecidos da Baixa –, diz que a situação não pode ser vista apenas como
preto ou branco. “A lei das rendas tem coisas boas: é inegável que a Baixa
estava a ruir. Tínhamos um escritório na Rua da Prata num prédio de 12
herdeiros que recebiam rendas de 30 euros – é natural que nunca tenha havido
obras.”
José Quadros, à frente da Londres Salão, espera que o
investimento que fizeram nos últimos anos dê frutos, mas pede uma maior
proteção dos negócios antigos que se mostrem economicamente viáveis FOTO:
Mafalda Gomes
O problema é ter-se ido longe demais, não garantindo uma
proteção mais forte do comércio tradicional face ao que descambou em
especulação imobiliária, diz o empresário. “Neste momento estão a descaracterizar
a Baixa. Se um ET aterrasse aqui, não ia conseguir dizer se estava na Baixa de
Milão ou de Bruxelas. Abrem sobretudo hotéis, alojamento local e grandes
insígnias. Quando o rés-do-chão deixa de estar dedicado ao comércio, perde--se
ritmo, dinamismo”, diz o empresário, que herdou o negócio do avô.
A casa surge em 1918, inspirada pelas alfaiatarias de
Piccadilly, em Londres, e passa por trespasse para a família Quadros nos anos
50. José, irmão do humorista João Quadros, admite alguma preocupação com o futuro,
mas o facto de estarem num prédio que pertence à Santa Casa da Misericórdia de
Lisboa e de desde cedo terem percebido que tinham de adaptar o negócio aos
novos tempos dá--lhe alguma serenidade. “Há um ano fomos chamados pela Santa
Casa. Deram-nos seis meses para sair e nem queriam conversar. Entretanto
ganhámos a classificação de Loja com História e acabaram por recuar.” Compraram
tempo na negociação da renda e também a garantia de que, mesmo que o prédio
sofra obras e tenha outro fim, não podem roubar espaço à loja. José admite que
poderia até pagar mais de renda, mas não os 7 mil euros ou mais de que se ouve
falar na rua. Hoje paga uma renda abaixo de 1000.
Maior proteção
Como resistir? Para José Quadros, tem de haver uma maior
salvaguarda dos negócios que forem “economicamente viáveis”, uma limitação das
rendas dos estabelecimentos protegidos, mesmo que isso implicasse alguns
benefícios aos senhorios, para garantir que ganhavam algum dinheiro, mesmo que
não fosse tanto.
A mesma ideia foi expressa nos últimos dias pela responsável
pelo programa Lojas com História da CML. “Ao fim de cinco ou dez anos, ninguém
sabe o que vai acontecer. Foi muito bom já ter havido esta lei mas, se
pensarmos a médio prazo, não sabemos o que vai acontecer”, disse à Lusa Sofia
Pereira.
Lourdes Fonseca, presidente da União de Associações de
Comércio e Serviços, diz ao i que irão iniciar reuniões para perceber o que se
pode fazer. “Estamos convictos de que se não existisse este programa das Lojas
com História, a situação ainda seria pior.” Ponto assente é que é preciso
travar a descaracterização. “De uma forma geral, o que traz as pessoas a Lisboa
é a especificidade da cidade. As Lojas com História, como outro comércio mais
tradicional, são aquilo que nos diferencia do resto das cidades da Europa.”
Para Lourdes Fonseca, além da questão das rendas, uma medida importante poderia
ser garantir que as lojas, mesmo que fechem – até por acordo mútuo, como é o
caso da Casa Frazão –, continuam a ser lojas de rua. “A Casa Frazão poderia
tornar-se uma loja de moda ou mesmo uma nova loja de tecidos, mas manter-se
como espaço comercial.” Mas como, com as atuais rendas? A responsável reconhece
que esse é um dos problemas incontornáveis. “A expetativa, em termos
imobiliários, das pessoas que compram os edifícios é muitíssimo grande.”
Paula Lourenço, encarregada de loja da sapataria e
chapelaria Lord, sabe disso, e o facto de o edifício onde estão instalados
desde 1941 estar à venda há alguns meses não é uma situação muito animadora,
embora até ao momento não tenham tido qualquer contacto no sentido de saírem,
diz. São outra das Lojas com História da Rua Augusta e Paula diz que o legado é
muito para pensar em baixar a cabeça. As caixas de chapéus antigas que decoram
o espaço, com mais de 70 anos, são apenas um dos objetos que os recordam
diariamente disso, aponta.
Paula Lourenço, encarregada de loja da sapataria e
chapelaria Lord, admite algum desconforto com a atual situação que se vive na
Rua Augusta. Também são uma Loja com História | FOTO: Mafalda Gomes
Paula emociona-se a contar como ver a palavra “liquidação”
nas montras vizinhas dá pena. É assim para quem trabalha na Baixa há décadas.
“O turismo veio dar mais vida à cidade, mas parece que estão a querer
aproveitar ao máximo sem olhar a meios e isto, mais ano menos ano, vai acabar.
Lisboa vai ficar uma cidade igual às outras todas.”
A mesma mágoa tem Guida Pereira Conceição, neta do fundador
da casa de chás e cafés Pereira da Conceição, no número 102 da Rua Augusta.
Atrás do balcão ao lado do marido, admitem que o turismo trouxe movimento, mas
beneficia sobretudo a restauração e os hotéis.
Há quatro anos, a renda duplicou. Não foi muito e é
suportável, mas sentiu-se. Sendo uma Loja com História, estão protegidos de
novas atualizações até 2022, mas o depois é uma incógnita e a revolta tem
aumentado. “Tem sido uma autêntica cavalidade, todas as casas de referencia
desaparecem e abrem restaurantes e hotéis porta sim porta não”, resume Luís
Nunes da Silva, marido da proprietária. Reconhecem que os senhorios não têm de
ser a “caixa de previdência” dos arrendatários, mas a lei das rendas foi
demais. Quanto ao programa da Câmara Municipal de Lisboa, “começou tarde”,
quando já se via o que aí vinha – as primeiras lojas foram reconhecidas em
2017. “Também já éramos uma loja com tradição há mais de 20 anos... As casas
emblemáticas de Lisboa desapareceram e as que se mantêm estão em vias de
desaparecer. Em moda de homem na Baixa, fechando a casa Pitta, acaba tudo.”
Na casa de café e chás Pereira da Conceição, a nova Rua
Augusta não merece grande admiração. O turismo trouxe mais movimento, mas beneficia
sobretudo a restauração. E as lojas emblemáticas estão a desaparecer aos poucos
| FOTO: Mafalda Gomes
Ao longo da Rua Augusta não chegam a uma dezena os espaços
com alguma antiguidade, mesmo que nem todos sejam formalmente Lojas com
História. O prédio que alberga há 30 anos a casa de malhas Achega foi vendido,
mas a loja tem as portas abertas. Há a Casa Canadá, de malas. A loja de roupa
Clavis 2000 também sobrevive, assim como a Casa Macário, de chás e cafés. Há a
Langiarte, de roupa interior, e ainda a Ourivesaria Pimenta, no mesmo edifício
da Casa Frazão, que pertence à Torres Joalheiros.
Ao balcão da Casa Frazão é unânime que os tempos mudaram, e
para onde vai esta Lisboa ainda não é muito claro. Uma cliente, moradora na
Costa do Castelo, conta que todos os dias tem papéis das imobiliárias na caixa
do correio. Já lhe avaliaram a casa num milhão de euros, mas o marido não quer
sair. O andar de baixo foi vendido a um casal russo, “simpatiquíssimos”. Se o
de cima vai para alojamento local e “começam a fazer muito barulho”, pode ser
uma chatice. Um dia, a bolha rebenta, ouve-se. E os turistas perdem o interesse
nas pastelarias que vão servindo bolos todos feitos no mesmo sítio,
concentradas num pequeno grupo de proprietários, nas sapatarias todas da mesma
cadeia ou nos negócios que depressa se percebe que não têm assim tanta história
por trás. “O que vão fazer com estas camas todas?”, diz uma das lojistas
descontentes, que prefere não dar a cara. “A gente sabe lá dizer se isto é bom
ou mau. Para nós, nunca é bom”, remata outra trabalhadora na Rua Augusta.
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