terça-feira, 24 de abril de 2018

Museu do Terramoto: negócio entre Câmara de Lisboa e empresa desconhecida cheio de interrogações



Museu do Terramoto: negócio entre Câmara de Lisboa e empresa desconhecida cheio de interrogações

Samuel Alemão
Texto
24 Abril, 2018

A criação, por uma empresa privada, do Museu do Terramoto, num terreno municipal na Rua da Junqueira, perto do Museu dos Coches, está a levantar muitas dúvidas. A firma, constituída há pouco mais de um ano com este propósito, pagará dois mil euros de renda mensal por uma parcela de 600 metros quadrados. Durante 50 anos, mas poderá ser até um século. O negócio, que deverá ser aprovado na Assembleia Municipal de Lisboa, nesta terça-feira (24 de Abril), foi garantido através de um contacto directo entre a Turcultur e a Câmara de Lisboa. PSD e PCP falam num processo eivado de “falta de transparência”. Por isso, votaram contra o mesmo em reunião de câmara, tal como o Bloco de Esquerda. A CML vê o projecto como uma mais-valia para a cidade. A Turcultur diz que tudo está ser feito com transparência e pagará o valor ditado pela fórmula de cálculo oficial. A empresa assegura ser seu o risco maior do projecto, não da câmara.

São 600 metros quadrados de terreno numa das zonas mais desejadas da capital. A Câmara Municipal de Lisboa (CML) prepara-se para ceder o direito de superfície de uma parcela do seu património, por um período de 50 anos, a troco de 925 mil euros – 24.409,16 euros por ano -, mas que poderá ir até ao dobro do tempo, a uma empresa privada que nele se propõe construir e explorar o futuro Museu do Terramoto (Quake- Lisbon Earthquake Center). Uma iniciativa de cariz empresarial que pretende tirar partido da evocação da memória de um dos acontecimentos mais marcantes da história da cidade. Mas há quem tenha muitas dúvidas sobre o negócio, que deverá ser aprovado na sessão desta terça-feira (24 de Abril) da Assembleia Municipal de Lisboa (AML). Apesar de serem cada vez mais as vozes a dizerem que existe muita coisa por esclarecer, a Câmara de Lisboa garante, nos considerandos da proposta agora em vias de validação, que todas as regras são cumpridas. A empresa também.

Em causa está a atribuição directa, sem concurso público, de uma tão vasta área, por uma renda mensal de cerca de dois mil euros, uma empresa formada há pouco mais de um ano e da qual se desconhece qualquer actividade nesta ou outra área. A CML justifica o negócio com o facto de que “a localização da parcela de terreno a ceder, enquadrada no quarteirão do novo Museu dos Coches, em Belém, será sem dúvida uma mais-valia para o desenvolvimento do projecto e mais um pólo de atracção turística de Lisboa e de promoção histórica da capital”. Além de que, alega a edilidade, o mesmo já recebeu parecer positivo por parte da empresa municipal Lisboa Ocidente – Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU). Argumentos que estão longe de convencer muita gente e que estão a ser contestados por, pelo menos, PSD, PCP, Bloco de Esquerda e PPM. Crítica comum a quase todos, a suposta falta de transparência do projecto.

 “Estamos aqui perante um caso de evidente falta de transparência da Câmara de Lisboa, problema, aliás, que é recorrente. Há aqui, claramente, um tratamento excepcional, para o qual não encontramos razão”, diz a O Corvo o vereador do PSD João Pedro Costa, referindo-se ao acordo que a autarquia está em vias de firmar com a Turcultur – Turismo e Cultura De Portugal, Lda. “Porquê esta empresa e não outra? E atribuir assim, directamente, a uma firma da qual não se conhece o trabalho? Não compreendo o procedimento adoptado”, critica o autarca, que votou contra a proposta de acordo, tal como a sua colega de bancada Teresa Leal Coelho, quando a mesma foi levada a reunião de executivo camarário, a 15 de Março. Os social-democratas não estiveram, aliás, sozinhos nesta oposição ao negócio, tendo também o PCP e o Bloco de Esquerda dado parecer negativo a tal acordo entre a CML e uma empresa da qual quase nada se sabe. PS e CDS-PP votaram favoravelmente.

 A proposta de parceria entre o município de Lisboa e a Turcultur foi, pela primeira vez, colocada na ordem de trabalhos da reunião do executivo camarário a 18 de Janeiro, mas as críticas e as dúvidas levantadas por alguns dos vereadores da oposição obrigaram a que fosse retirada. Por isso, foram pedidos pela CML esclarecimentos adicionais à empresa, os quais chegaram através de uma carta, no dia 31 do mesmo mês. E nela se fica a perceber, segundo os factos relatados pelos responsáveis da firma, que a iniciativa de indicar o terreno em questão, o prédio sito nos números 309-311-A da Rua da Junqueira, foi da própria câmara, depois de contactada pela empresa. “Procurando espaços adequados para o projecto, a Turcultur dirigiu-se a vários proprietários de imóveis, entre os quais o Município de Lisboa, para averiguar da existência de espaços que pudessem ser arrendados para esse efeito”, lê-se na carta.

 Nela, os dois sócios, Maria João Cruz Marques e Ricardo José Estêvão Clemente, explicam que constituíram a empresa após terem sido “consultados vários especialistas neste género de equipamentos, feita uma profunda prospecção do mercado, analisados os indicadores de crescimento do turismo e reunidas as condições financeiras para o investimento necessário”. “A Turcultur nasce para levar a cabo este projecto, ideia original dos seus sócios, e encontra-se já em funcionamento e numa fase avançada de investimentos destinados à concretização do projecto”, garantem os empresários que se propõem, com este Museu do Terramoto, criar um equipamento “capaz de oferecer aos seus visitantes uma experiência imersiva, com conteúdos de ciência, história e entretenimento, permitindo ainda a realização de actividades pedagógicas, de sensibilização e formação, em especial na área da protecção civil, relativa a este tipo de fenómenos naturais”.

Ora, a falta de currículo de uma empresa surgida apenas em Novembro de 2016, com o propósito explícito de explorar este equipamento, constitui fonte das maiores reservas para muita gente. Tanto que os argumentos para as colocar são similares. “A origem da empresa gera dúvidas, não sabemos quem eles são, nem que currículo têm nesta matéria. Porquê esta entidade e não outra? Tudo isto tem muito pouca transparência”, considera o vereador João Ferreira, do PCP, que, tal como o seu colega de partido Carlos Moura, votou contra o contrato entre autarquia e empresa. “Se há interesse em criar um museu alusivo ao terramoto de 1755, as coisas podiam ter sido feitas de outra forma. Este não será o caminho mais natural, pois existem entidades públicas e universidades com trabalho feito na matéria, certamente”, argumenta o vereador comunista a O Corvo.

 Além disso, salienta João Ferreira, “se o objectivo era entregar a realização deste projecto a uma entidade privada, poderia e deveria ter sido feito um concurso. Infelizmente, não foi esse o caminho escolhido”. Razão pela qual o autarca considera que o processo “deixa muitas dúvidas”. Tais dúvidas são, aliás, transversais a muitos observadores do negócio. Entre elas está também o facto de caber à CML arcar com os custos, ainda não quantificados, da desocupação do terreno em causa, onde, neste momento, existem “cinco ocupações não habitacionais, de natureza precária, que terão de ser cessadas para que seja possível concretizar o projecto”, de acordo com a proposta a sujeitar a votação na AML, nesta terça-feira. O Corvo sabe que a deputada municipal Aline Hall Beuvink (PPM) colocará a questão na reunião, mas evidenciará sobretudo o que considera ser a “incompreensível” cedência de património municipal para um projecto “meramente comercial”.

 Também Ricardo Robles, do Bloco de Esquerda, manifesta discordância com a forma escolhida pela Câmara de Lisboa para promover a criação de um equipamento cultural com tamanho potencial simbólico. Por isso, votou contra. “Valorizamos um equipamento cultural que faça uma alusão histórica ao terramoto. Isso nós compreendemos, dada a sua importância histórica. Tanto assim é que achamos que um tal projecto seria sempre susceptível de ser realizado com recurso a um investimento público. Não podemos concordar é com a sua entrega directa a um privado, ainda por cima que não conhecemos”, afirma o vereador com os pelouros da Educação e dos Direitos Sociais e que faz parte da solução de governo da câmara, através do acordo pós-eleitoral estabelecido com o PS.

 Apesar das dúvidas, que persistiram junto de PSD, PCP e BE mesmo após a missiva com explicações dadas pela Turcultur, o certo é que o projecto acabou mesmo por ser aprovado na tal reunião de vereação de 15 de Março, com os votos favoráveis do PS e do CDS-PP. Nela, todos os vereadores ficaram então a saber, através da carta enviada pela gerência da empresa e apensa ao projecto, como terá sido aparentemente fácil convencer a câmara a ceder um terreno desta dimensão numa zona nobre da capital, junto ao Museu dos Coches.

 “A Câmara Municipal de Lisboa identificou um prédio sito na Rua da Junqueira que, por estar integrado no domínio privado do município, poderia ser destinado a este projecto, já que o domínio privado corresponde ao património imobiliário privado municipal e não ao património intrinsecamente destinado a fins de interesse público”, explica-se no documento, para logo de seguida se dizer que tal é permitido ao abrigo do Regulamento do Património Municipal, levando a que “esse património privado possa ser cedido a terceiros, nomeadamente mediante a constituição de um direito de superfície”.

E logo de seguida, a carta da Turcultur justifica os motivos de tão consensual casamento: “O interesse dos promotores na realização do projecto naquele espaço, conjugado com a receptividade que obteve junto da Câmara Municipal de Lisboa (dado o estado de degradação, o subaproveitamento e o potencial do prédio em questão), levou à preparação, por parte dos serviços da Câmara, de uma proposta de constituição do direito de superfície, com o pagamento de um renda superficiária fixa, calculada de acordo com o valor de mercado do bem, sob condições que permitem o seu retorno em caso de incumprimento das respectivas condições”. Uma solução que agradou à empresa. Até porque, faz notar a citada carta, o projecto já recebeu a luz verde tanto da Direcção-Geral do Património Cultural bem como da Lisboa Ocidental Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU), empresa municipal criada em 2004 para promover a reabilitação urbana nas freguesias de Santa Maria de Belém, Ajuda e Alcântara. O parecer positivo da SRU foi dado a 23 de Junho de 2017.

Ou seja, sete meses depois da criação da empresa, a 21 de Novembro de 2016, tendo por objecto o “desenvolvimento de actividades de animação turística e exploração de equipamentos culturais” e “actividades do sector educacional e promoção de cursos e acções específicas de formação no domínio da animação turística e do património cultural”. Com um capital social de 200 mil euros, dividido em partes iguais entre os seus dois sócios, Maria João Cruz Marques e Ricardo José Estêvão Clemente, a Turcultur está sediada no Largo do Casal Vistoso, nº 5 A, 1º B, no Areeiro. A mesma morada da Made4trade – Comércio e Serviços, S.A., firma fundada em 1995 e que, de acordo com a informação disponível no Portal da Justiça, até Maio de 2011, se chamava Lusounu – Comércio Internacional, Formação e Serviços de Gestão S.A. Da sua administração fazem parte Maria João Cruz Marques (Turcultur), bem como Luís Manuel Reis Caria.

 Ainda de acordo com a informação disponível no Portal da Justiça, fica-se a saber que a Made4trade- S.A. teve como membro da sua administração, até 1 de Janeiro de 2014, Ivo Cruz Marques. Ora, tanto Ivo Cruz Marques como Luís Manuel Reis Caria aparecem referenciados na base de dados do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (CIJI) para o caso “Panáma Papers” como tendo sido accionistas, por pouco mais de um mês – entre 15 de Dezembro de 2010 e 19 de Janeiro de 2011 -, da Wfs- Worldwide Food Suppliers Limited, empresa a operar a partir de Tanger (Marrocos), mas com registo feito nas ilhas Seychelles. A mesma empresa, que recorreu naquela altura aos serviços do escritório de advogados Mossack Fonseca, terá como principal objectivo a comercialização de produtos e serviços de diversa origem com destino a Angola. País onde Maria João Cruz Marques tinha residência registada, concretamente em Luanda, aquando da criação da Turcultur.

 A curiosidade quanto à origem e às actividades da Turcultur foi suscitada junto dos vereadores críticos deste negócio, logo aquando da apresentação da proposta de acordo, feita na reunião de executivo camarário de 18 de Janeiro. As questões sobre a desconhecida firma levaram mesmo os vereadores do PSD a deslocarem-se à morada apontada como sede. “Quisemos saber de que empresa se tratava. Fomos lá e batemos com o nariz na porta. O que ali existe é uma empresa de import-export. Nada mais se sabe”, diz João Pedro Costa, manifestando-se preocupado com os contornos desta improvável transacção – além de ser ainda crítico da escolha da zona de Belém para a instalação de um espaço alusivo ao Terramoto de 1755, preferindo vê-lo, “obviamente”, situado na Baixa.

 “No nosso partido, como é óbvio, é bem vista a iniciativa privada. Mas temos de salientar que estamos a falar de ceder 600 metros quadrados de terreno numa zona central da cidade, com alto potencial turístico, por valores destes. Ainda para mais, propõem-se fazer um projecto desta dimensão recorrendo à banca, a fundos comunitários e a terrenos do município. A iniciativa privada não é isto”, critica, lamentando ainda que “na proposta se faça referência ao Regulamento Municipal de Património, cuja aprovação tem vindo a ser adiada desde há um ano, mas afinal não se aplica neste caso”. Este aspecto encabeçou, aliás, a declaração de voto do PSD no momento da votação de 15 de Março.

 Nela se pode ler: “Apesar das múltiplas referências que a proposta faz ao futuro Regulamento do Património Municipal, que há mais de um ano foi para consulta pública depois de aprovado em reunião de Câmara, a presente proposta não respeita este Regulamento: nem no que ele estipula quanto a prazos de cedência do direito de superfície; nem relativamente às condições que permitam prescindir da hasta pública; nem ainda no cálculo de valores nela constantes para utilização do direito de superfície”.

 Algo contestado por Ricardo Estêvão Clemente, um dos sócios da Turcultur, que a O Corvo se manifesta surpreendido com as dúvidas levantadas pelos partidos da oposição. “Na discussão do projecto, em Janeiro passado, foi-nos pedida informação adicional por parte da câmara, porque alguns partidos suscitaram uma série de dúvidas. E nós respondemos a essas questões todas, entregamos tudo o que nos foi pedido, tudo e mais alguma coisa. Todos os partidos estão na posse da informação. Além disso, mostrámo-nos disponíveis para reunir com os partidos. Um deles contactou-nos, mas, ante a nossa disponibilidade, disse depois que não seria conveniente”, explica o empresário, assegurando que tanto a CML como os partidos que se preparam para discutir o projecto na AML possuem “informação exaustiva que lhes foi entregue, com os dados detalhados ao mais ínfimo pormenor”.

 Afastando o cenário de existência de um qualquer tratamento privilegiado para com a sua empresa, Estêvão Clemente diz que, pelo contrário, “se há entidade que está a arriscar, e muito, é a Turcultur”. “Não estamos a tomar conta de um qualquer edifício ou equipamento que já existe. Vamos construir de raiz um equipamento que, se algo correr mal, se isto não funcionar, volta para a câmara, fica para a comunidade. O que está em causa não é o que os partidos dizem, mas o que está no contrato e ele é altamente protector do interesse público”, assevera o responsável, garantido ser este um projecto que deixa os donos da Turcultur “entusiasmadíssimos”. “Estamos a falar de algo que vai funcionar para o benefício de todos, apostando num turismo de qualidade e não de quantidade. A ideia de um equipamento como este é fazer o turismo sustentável, tirando muitas pessoas que hoje andam na rua e levando-as para um espaço de alta qualidade”, diz.

 Por tudo isto, o empresário diz não entender as interrogações e críticas lançadas ao Museu do Terramoto. Como as relativas à não existência de uma consulta pública para escolher a entidade que explorará o espaço cultural. “Não há concurso público por uma razão simples: fomos nós a propor o projecto. A ideia foi nossa”, explica, garantindo que a falta de currículo da empresa na área museológica ou cultural está longe de ser um obstáculo à concretização da ideia. “Somos gestores, pessoas experientes, sabemos administrar negócios. Mas toda a outra parte, relativa aos conteúdos e ao funcionamento de um museu será assegurada por profissionais dessas área. Contrataremos especialistas para as realizar. Tudo isso foi explicado na documentação entregue à CML e aos partidos políticos”, assegura Estêvão Clemente, que possui um percurso profissional assente, sobretudo, nas áreas da consultoria, do marketing e da publicidade.

 Sobre o facto de a Turcultur estar sediada no mesmo edifício da Made4Trade SA, que tem como um dos administradores a sua sócia no negócio do museu, Maria João Cruz Marques, o empresário diz que tal é mera “coincidência”, nada ligando ambas as firmas. “Temos um contrato de cedência de um espaço, uma sala, no mesmo edifício. Mas isso é algo provisório, pois quando a nossa sede, no edifício do museu, estiver concluída, mudar-nos-emos para lá, como é natural”, afirma Estêvão Clemente, considerando não fazer sentido relacionar ou mencionar a existência de uma ligação entre ambas as empresas, e muito menos qualquer referência ao envolvimento de um dos administradores de uma delas no caso Panamá Papers.

 O Corvo solicitou à Câmara de Lisboa, nesta segunda-feira (23 de Abril), esclarecimentos adicionais sobre este assunto. Até ao momento da publicação deste artigo, porém, não obteve resposta.

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