“Não podemos fazer nada. Lisboa já
não é nossa.”
LUÍSA PINHEIRO·SUNDAY, APRIL 15, 2018
Com esta história da bolha imobiliária, surgiu o bullying
imobiliário. Quem vive em Lisboa, como é o meu caso, num curto espaço de tempo
vê a sua vida alterar-se de um momento para o outro. Convém frisar que não sou
saudosista da Lisboa insegura e deserta e nada tenho contra os turistas. Lisboa
passou a estar na moda. Fomos e somos “invadidos” diariamente por turistas.
Arrendar ou comprar casa em Lisboa tornou-se uma tarefa praticamente inglória.
Basta passear por Lisboa e perceber que as obras de reabilitação decorrem a
todo o vapor, mas estas casas não são para nós. Chineses, russos, franceses e
afins compram quase ruas inteiras para reabilitar. Nem vou falar dos preços
pornográficos.
Na minha rua são poucos os prédios que agora têm residentes
de longa duração. Além do constante barulho, aumento da sujidade, aumento dos
preços e constantes faltas de civismo. Abrir a janela e mandar calar turistas que vêm para cá fazer festas com
álcool non stop, com música aos altos berros, em apartamentos onde enfiam 8 ou
10 pessoas é o meu dia a dia. Turistas ébrios que mijam de um terceiro andar
para a tua rua, como se aqui não tivessem que respeitar regras, que certamente
nos países deles são bases de uma civilização moderna, é revoltante e nojento.
Em breve não restarão lisboetas, as juntas de freguesias não terão fregueses e
a câmara munícipes, as tradições e identidade de uma cidade serão parte de um
passado que não tem futuro. Assim sendo, todos os serviços de apoio aos
residentes de Lisboa terão igualmente que encerrar. As juntas e a câmara já não
serão precisas. Criem apenas um orgão de apoio aos turistas, os residentes de
curta duração. As despesas com o governo local ficariam certamente mais magras.
Sugiro que como primeiro gesto de mudança que os Santos e as
Marchas, uma tradição tão tipicamente lisboeta seja este ano levada a cabo
pelos turistas. Já que os residentes dos principais bairros das marchas são os
lisboetas que estão a ser expulsos sem dó e misericórdia das suas casas,
antigamente casas do povo, agora casas para gente que nunca vai saber o que é
assar uma sardinha numa rua. Matem já a galinha de ovos ouro, encham-se de
dinheiro, lambuzem-se de diamantes e negócios milionários.
Toda a gente me diz que é impossível dar a volta a esta
situação, que já aconteceu noutros países, que é a gentrificação, o capitalismo
selvagem, que é assim mesmo, as pessoas querem é fazer dinheiro. Não se podem
ver as pessoas como seres humanos, são números a abater, que qualquer pessoa
como proprietário neste momento faria o mesmo.
Ah, e ainda dizem que vai ser pior. Cada vez pior.
Pois eu não sou o tipo de pessoa que acha que devemos ficar
quietinhos perante injustiças e machadadas à dignidade humana.
Contaram-me recentemente que uma senhora que já morava há
mais de 50 anos num prédio de uma zona histórica foi convidada a sair e recebeu
de indemnização 2.500 euros. Uma senhora sem família nem outras referências
territoriais. Decorrem burlas, ilegalidades, ameaças e outras coisas que gritam
violação de direitos humanos.
E não pensem que são as pessoas mais velhas ou
economicamente mais desfavorecidas que são as únicas prejudicadas na questão do
acesso à habitação a Lisboa.
Portugal é o país da UE com o salário mínimo (557 euros)
mais próximo do salário médio (650 euros). Pessoas a ganhar acima dos mil euros
que muita gente acha que é sinónimo de riqueza é uma miragem. Sempre fomos
pobres e continuamos pobres.
Mas pedem-nos rendas acima de 1000 euros, uma cave, buracos
com ratos e baratas, locais insalubres, espaços onde os proprietários nunca
colocariam os seus mais queridos a viver.
Mas continuam-me a dizer: “é normal e vai piorar, temos que
nos adaptar”.
Se todos assumíssemos uma posição de passividade perante as
injustiças do mundo, continuaríamos, por exemplo, a viver na era da
escravatura, Portugal continuaria num regime ditatorial, as mulheres não tinham
direitos, a pobreza e o pé descalço eram verdades incontornáveis, etc. etc.
As desigualdades económicas e sociais à medida que as
civilizações avançam deveriam supostamente esbater-se. Mas neste momento
acontece o oposto. A riqueza total do mundo está concentrada numa percentagem
mínima de privados e organizações corporativas.
O mundo caminha para uma desigualdade e injustiça gritante.
Voltando a Portugal, tenho duas propostas, moradores dos
bairros típicos de Lisboa, que num momento são lixo humano e noutro são
tradição, conforme os interesses de quem tem poder, boicotem as marchas de
2018.
A minha segunda proposta e instinto é que vai decorrer um
êxodo ao contrário. Sempre assistimos à migração interna, ou seja, eram os
provincianos que vinham para a capital, Lisboa, procurar uma vida melhor. Agora
com a sobrelotação da cidade, com o aumento do custo de vida, com o
congelamento dos salários, tornou-se muito difícil vingar nesta cidade.
Sim, Lisboa é linda e única. Mas Portugal não é só Lisboa.
Conheço vilas, aldeias e cidades, de norte a sul de Portugal, que igualam a
singularidade da capital. E afinal de contas, os sítios são feitos de pessoas e
se estas levarem o que de melhor têm para outros locais, agora despovoados,
podem fazer renascer o capital humano, social, económico e cultural de uma
região.
O direito de todos termos uma vida digna, onde a justiça social e a humanidade, não
sejam conceitos abstractos, é uma luta de todos, é uma luta por um bem comum.
Agora não me venham dizer que tudo isto é normal e que vai
piorar.
Se assim for, Lisboa perde a sua luz e o seu encanto.
Declaração de óbito: ganância.
Luísa Pinheiro, 40 anos, natural da beira alta e lisboeta de
coração há mais de 20 anos.
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