segunda-feira, 16 de abril de 2018

“Não podemos fazer nada. Lisboa já não é nossa.”



“Não podemos fazer nada. Lisboa já não é nossa.”

LUÍSA PINHEIRO·SUNDAY, APRIL 15, 2018

Com esta história da bolha imobiliária, surgiu o bullying imobiliário. Quem vive em Lisboa, como é o meu caso, num curto espaço de tempo vê a sua vida alterar-se de um momento para o outro. Convém frisar que não sou saudosista da Lisboa insegura e deserta e nada tenho contra os turistas. Lisboa passou a estar na moda. Fomos e somos “invadidos” diariamente por turistas. Arrendar ou comprar casa em Lisboa tornou-se uma tarefa praticamente inglória. Basta passear por Lisboa e perceber que as obras de reabilitação decorrem a todo o vapor, mas estas casas não são para nós. Chineses, russos, franceses e afins compram quase ruas inteiras para reabilitar. Nem vou falar dos preços pornográficos.
Na minha rua são poucos os prédios que agora têm residentes de longa duração. Além do constante barulho, aumento da sujidade, aumento dos preços e constantes faltas de civismo. Abrir a janela e mandar calar  turistas que vêm para cá fazer festas com álcool non stop, com música aos altos berros, em apartamentos onde enfiam 8 ou 10 pessoas é o meu dia a dia. Turistas ébrios que mijam de um terceiro andar para a tua rua, como se aqui não tivessem que respeitar regras, que certamente nos países deles são bases de uma civilização moderna, é revoltante e nojento.
Em breve não restarão lisboetas,  as juntas de freguesias não terão fregueses e a câmara munícipes, as tradições e identidade de uma cidade serão parte de um passado que não tem futuro. Assim sendo, todos os serviços de apoio aos residentes de Lisboa terão igualmente que encerrar. As juntas e a câmara já não serão precisas. Criem apenas um orgão de apoio aos turistas, os residentes de curta duração. As despesas com o governo local ficariam certamente mais magras.
Sugiro que como primeiro gesto de mudança que os Santos e as Marchas, uma tradição tão tipicamente lisboeta seja este ano levada a cabo pelos turistas. Já que os residentes dos principais bairros das marchas são os lisboetas que estão a ser expulsos sem dó e misericórdia das suas casas, antigamente casas do povo, agora casas para gente que nunca vai saber o que é assar uma sardinha numa rua. Matem já a galinha de ovos ouro, encham-se de dinheiro, lambuzem-se de diamantes e negócios milionários.
Toda a gente me diz que é impossível dar a volta a esta situação, que já aconteceu noutros países, que é a gentrificação, o capitalismo selvagem, que é assim mesmo, as pessoas querem é fazer dinheiro. Não se podem ver as pessoas como seres humanos, são números a abater, que qualquer pessoa como proprietário neste momento faria o mesmo.
Ah, e ainda dizem que vai ser pior. Cada vez pior.
Pois eu não sou o tipo de pessoa que acha que devemos ficar quietinhos perante injustiças e machadadas à dignidade humana.
Contaram-me recentemente que uma senhora que já morava há mais de 50 anos num prédio de uma zona histórica foi convidada a sair e recebeu de indemnização 2.500 euros. Uma senhora sem família nem outras referências territoriais. Decorrem burlas, ilegalidades, ameaças e outras coisas que gritam violação de direitos humanos.
E não pensem que são as pessoas mais velhas ou economicamente mais desfavorecidas que são as únicas prejudicadas na questão do acesso à habitação a Lisboa.
Portugal é o país da UE com o salário mínimo (557 euros) mais próximo do salário médio (650 euros). Pessoas a ganhar acima dos mil euros que muita gente acha que é sinónimo de riqueza é uma miragem. Sempre fomos pobres e continuamos pobres.
Mas pedem-nos rendas acima de 1000 euros, uma cave, buracos com ratos e baratas, locais insalubres, espaços onde os proprietários nunca colocariam os seus mais queridos a viver.
Mas continuam-me a dizer: “é normal e vai piorar, temos que nos adaptar”.
Se todos assumíssemos uma posição de passividade perante as injustiças do mundo, continuaríamos, por exemplo, a viver na era da escravatura, Portugal continuaria num regime ditatorial, as mulheres não tinham direitos, a pobreza e o pé descalço eram verdades incontornáveis, etc. etc.
As desigualdades económicas e sociais à medida que as civilizações avançam deveriam supostamente esbater-se. Mas neste momento acontece o oposto. A riqueza total do mundo está concentrada numa percentagem mínima de privados e organizações corporativas.
O mundo caminha para uma desigualdade e injustiça gritante.
Voltando a Portugal, tenho duas propostas, moradores dos bairros típicos de Lisboa, que num momento são lixo humano e noutro são tradição, conforme os interesses de quem tem poder, boicotem as marchas de 2018.
A minha segunda proposta e instinto é que vai decorrer um êxodo ao contrário. Sempre assistimos à migração interna, ou seja, eram os provincianos que vinham para a capital, Lisboa, procurar uma vida melhor. Agora com a sobrelotação da cidade, com o aumento do custo de vida, com o congelamento dos salários, tornou-se muito difícil vingar nesta cidade.
Sim, Lisboa é linda e única. Mas Portugal não é só Lisboa. Conheço vilas, aldeias e cidades, de norte a sul de Portugal, que igualam a singularidade da capital. E afinal de contas, os sítios são feitos de pessoas e se estas levarem o que de melhor têm para outros locais, agora despovoados, podem fazer renascer o capital humano, social, económico e cultural de uma região. 
O direito de todos termos uma vida digna,  onde a justiça social e a humanidade, não sejam conceitos abstractos, é uma luta de todos, é uma luta por um bem comum.
Agora não me venham dizer que tudo isto é normal e que vai piorar.
Se assim for, Lisboa perde a sua luz e o seu encanto.
Declaração de óbito: ganância.
Luísa Pinheiro, 40 anos, natural da beira alta e lisboeta de coração há mais de 20 anos.

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