REPORTAGEM
“O meu marido
nasceu e morreu nesta casa. Não é agora que vou sair”
Famílias inteiras estão
revoltadas e residentes dos mesmos prédios sabem que estão a ser enganados. No
Castelo, a palavra de ordem não é apenas resistir. “É lutar”
ANA DIAS CORDEIRO
Texto e MIGUEL MANSO Fotografias 31 de Março de 2018, 7:35
Maria da
Conceição embala a barriga como se o filho já tivesse nascido. É uma maneira de
se sentir segura, sobretudo agora que vive em sobressalto, acorda de noite sem
saber o que fazer. Recebeu uma carta para deixar o andar que habita há um ano.
A ordem é para Maio, mês em que nasce o filho. “Disseram-me que eu podia ficar
mais duas semanas.”
“Para que servem
mais 15 dias numa aflição destas?”, questiona indignada a vizinha de baixo Ana
Luísa que também recebeu uma carta para sair da casa onde vive com o marido e
as três filhas. Mora aqui há 12 anos e não tenciona sair. Ana Luísa vai
contestar a ordem de despejo, e o processo seguirá para tribunal.
Toda a família
está revoltada. Todos os residentes deste prédio pagam mais de 300 euros por
espaços pequenos de duas assoalhadas. “Vivo aqui há 50 anos”, diz Maria, 72
anos, mãe de Ana Luísa, que vive ao lado. “O meu marido nasceu e morreu nesta
casa. Não é agora que vou sair”.
“Os idosos têm
direito a estar protegidos e são enganados”, insurge-se Ana Luísa. “A gente não
se identifica com nada disto que agora acontece e é muito triste tomar consciência
disso. No fundo, isto aqui é a nossa vida.”
Formas de alterar
contratos
Duas senhoras
mais idosas moram no segundo andar, muito apreciado pela vista de 360 graus que
tem sobre Lisboa. Para tentar tirá-las dali, o novo proprietário disse que a
solução seria trazê-las para os andares que ficariam vagos no primeiro andar,
até porque isso facilitaria a sua mobilidade, argumentou. Mas tal implica a
assinatura de um novo contrato e o fim daquele que foi assinado antes de 1990 e
que dá direito a ficarem na casa toda a vida. “O que o novo proprietário quer é
forçar as pessoas a fazer novos contratos”, diz Elsa Norberto, 62 anos, que
vive aqui há décadas, no último andar.
“O senhorio e o
advogado importunam as pessoas, arranjam todas as manhas para poder entrar”,
acusa Maria. E quando Elsa Norberto lhes perguntou se iam transformar o prédio
de habitação em prédio de alojamento local para turistas, responderam-lhe que
“essa hipótese não estava excluída”.
Foi Elsa que
perguntou ao senhorio se não sentia compaixão por uma senhora grávida (Maria da
Conceição) e outra com três filhas (Ana Luísa) – com duas crianças na escola do
bairro, onde ela e o marido têm também os seus empregos – serem forçadas a sair
das suas casas. “Ele não respondeu”, apenas disse que os contratos tinham uma
data para terminar, recorda Elsa Norberto zangada.
Maria da
Conceição e o marido receberam com alívio e alegria a notícia da vaga na creche
do bairro para o filho que vai nascer. Foi como se tudo fizesse sentido. O
filho cresceria no mesmo bairro onde o pai nasceu e cresceu e seria aluno da
mesma creche.
Agora, Conceição
passa parte dos dias a deambular pela Graça, Anjos ou Intendente, onde ainda
não encontrou nada. “Com isto, acabamos por perder a creche do menino, ou o
trabalho”, receia. “Quando começámos a pensar organizar as coisas para o bebé,
fomos apanhados por isto, e começámos então a pensar se não devíamos, em vez
disso, organizar as nossas coisas para sair”, acrescenta num tom inconsolável.
À procura de
imóveis
Várias vezes por
semana aparecem pessoas na rua a pedir o número de telefone do senhorio, ou a
perguntar se o prédio está à venda. Todos os dias, no posto de atendimento da
Junta de Freguesia, aparecem casos de pessoas desesperadas que pedem
aconselhamento jurídico e são encaminhadas para o escritório de advogados na
Rua dos Fanqueiros.
Entre 2013 e
2016, entraram nos tribunais portugueses 759 acções de despejo de prédios
urbanos para habitação e 517 acções de despejo em prédio urbano para fim não
especificado – e para cada uma delas pode estar uma família de várias pessoas.
Estes números, disponibilizados pelo Ministério da Justiça (apenas até 2016),
não incluem os despejos em prédio para fins comerciais ou industriais.
“A situação tem
piorado com esta procura quase selvagem do imobiliário em Lisboa”, confirma o
advogado Carlos Fernandes. “Há imensas pessoas que vivem completamente
atormentadas com a perspectiva de terem de sair.”
Esse mesmo
tormento que antecipa Tânia Correia para os próximos meses da sua vida na casa
onde mora com o marido e o filho de 11 anos. Diz que irá até às últimas consequências.
Não se conforma nem com a sua saída nem com a mudança de vida que o novo
proprietário quer impor às quatro senhoras idosas que vivem no mesmo prédio.
Vê com grande
incerteza o futuro do bairro do Castelo onde os idosos ainda têm, por perto, os
mais novos para dar vida o vazio dos seus dias. A colectividade, de que Tânia
faz parte, organiza actividades desportivas, lúdicas ou criativas, como
costurar os fatos para as Marchas Populares, a que os reformados se dedicam com
brio. Como ela, de 37 anos, que cresceu ali, há uma geração mais nova a dar
apoio aos idosos sozinhos ou com os filhos a morar longe. “Viram-me nascer, e
para mim é natural ir à farmácia ou às compras para eles. Se formos embora, o
que será destas pessoas mais velhas?"
Tânia Correia
recebeu uma carta para sair da sua casa em Maio de 2019. Contesta a acção, não
sai, e está a angariar fundos para poder exercer o direito de preferência da
compra da sua casa. Tem seis meses. Como a venda não lhes foi comunicada, como
era devido, terá que entrar com uma acção judicial a impugnar o negócio.
Tânia tem
esperança de conseguir angariar os 500 mil euros para comprar o prédio.
Perturba-a antecipar o que os moradores mais velhos possam sofrer com as
investidas da empresa proprietária de quem Tânia recebe cartas pouco cordiais e
sarcásticas: querem fazer obras, inspecções várias, vistas pelos residentes
como um mero pretexto para perturbar.
Recentemente
cortaram a luz das escadas, que os idosos descem no escuro. Sem electricidade
não há campainha. O diálogo entre quem mora no prédio e quem o detém é quase
inexistente. Para Tânia, a palavra de ordem não é apenas resistir: “É lutar.”
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