Lisboa: O Rei das Meias, que tornou
bonitas as pernas feias, vai fechar
A véspera do dia da liberdade é a
data marcada para a casa mais antiga do país especializada em meias encerrar.
Não é mais uma vítima da lei das rendas nem da falta de clientes. É apenas o
apelo da reforma.
NELMA SERPA PINTO 21 de Abril de 2017, 21:00
Há quase 40 anos que, de segunda a sábado, José Santos
apanha o autocarro e o barco em direcção ao Largo Rafael Bordalo Pinheiro, em
Lisboa. Hoje, ao entrar na porta número 32, as palavras “liquidação total”,
“desconto” e “promoção” saltam à vista. Os clientes, ao entrar, questionam o
que se passa e a reposta do o comerciante de 61 anos é sempre a mesma: “É a
realidade, vamos embora”.
Abriu portas há 88 anos no antigo Largo da Abegoaria, quando
ainda o eléctrico passava pelo meio das duas faixas com sentido oposto. O Rei
das Meias faz qualquer um que lá entre recuar no tempo e sentir-se na velha Lisboa
dos mil ofícios. Não é um negócio de família, mas sim de gerações de
funcionários e José Santos é um deles. “A minha casa é esta, só não durmo
aqui”, confessa. Trabalha na loja desde 1981 e passou a gerente vinte anos
depois, mas há uns meses decidiu “não olhar para trás” e fechar a casa.
Assegura que não foi empurrado pelo senhorio nem pela falta de clientela. Antes
decidiu entregar as chaves do espaço e assim reformar-se. Não sabe o que ali
nascerá mas a avaliar pela vizinhança desconfia que venha aí mais um
restaurante.
Entre mini-meias, collants, meias de liga e soquetes, José
Santos deixou de encontrar o ânimo que precisava. “Senti-me desmotivado e para
estar aqui todos os dias é preciso sentir alegria”, declara. A rotina daquele
que é mais conhecido por Sr. Santos na loja do Rei das Meias começa às 8h e
acaba às 19h. “Eu acho que casei com as meias”, diz, divertido. O problema da
sucessão foi outro dilema que se levantou no momento da decisão de acabar com o
negócio quase secular e explica: “Não tinha ninguém para seguir com isto”.
A reacção dos clientes tem sido de insatisfação e
inconformismo. “É muito complicado. Há muitos que dizem que não pode ser, que
uma casa destas não pode fechar”, conta o gerente de loja. “Tenho aqui uma
cliente de Campo de Ourique que quando soube que íamos fechar mandou-me guardar
meias de Inverno já para oferecer no Natal deste ano”, conta. E acrescenta “Eu
vou embora com muita mágoa e com muita pena, mas também com o sentimento de
dever cumprido”.
Pelas 76 pernas expostas na loja está distribuída a paixão e
dedicação do sexagenário que, com um sócio, mantiveram o Rei das Meias durante
38 anos. José Santos relata o sentimento de proximidade e confiança que sempre
criou com os clientes que entram pela sua porta. “Há pessoas que vêm cá há 50
anos, chego a atender quatro ou cinco gerações de famílias. Digo sem problema
para levarem para experimentar e passarem cá no dia seguinte a pagar. Somos um
exemplo nacional de respeito entre loja e cliente”, refere.
Frequentada por célebres clientes deste e doutro século,
como Amália Rodrigues, Manuela Ferreira Leite, Maria Barroso, Beatriz Costa,
Henrique Mendes ou Rogério Samora, José Santos confessa orgulhoso que “se
tivesse um livro com os nomes das celebridades que já compraram aqui meias ele
estaria cheio”. O atendimento carinhoso e personalizado sempre foi uma
garantia. “Nós aqui abrimos o collant, metemos a mãozinha no collant para a
pessoa ver se gosta ou se não gosta... Atender ao balcão é uma arte. Se não se
tiver jeito e um sorriso na cara não se consegue”, explica.
O Rei das Meias começou por ser uma casa de venda de
brinquedos mas, desde cedo, que os irmãos fundadores se decidiram especializar
no vestuário para pés. Desde as mais atrevidas às mais clássicas, é
perceptível, logo à entrada, a existência de centenas de modelos e para todos
os gostos. “Normalmente temos tudo. A opção de escolha é muito grande, a loja é
um mundo de meias", afirma. Com um sorriso, José relembra o famoso slogan
da loja estampado em todos os sacos: “Este é o Rei das Meias que torna bonitas
as pernas feias. Calçando Portugal de lés a lés, só não conhece quem não tem
pés”.
Apesar de não ter sido a “falta de clientela” a razão para
decidir fechar, José está completamente descrente no sucesso do comércio
tradicional no futuro: “Aqui no Largo, por exemplo, havia uma florista, uma
livraria e uma loja de roupa interior e foi tudo substituído pela restauração,
afirma.
Os próximos dias são para pensar na partida e o sentimento
de nostalgia já se impõe. “Ao longo destes 40 anos entrei aqui milhares de
vezes. Vir aqui amanhã e ver outra casa com outro visual vai ser difícil. Por
isso, ou a gente não pensa ou sai daqui com uma mágoa muito grande”, reconhece.
José dedicou-se às meias quase a vida toda, e, consciente da decisão que tomou,
afirma: “Isto é uma casa que vai deixar muita saudade, mas é como tudo na vida:
tem um principio e um fim”. Para José, o dia 24 de Abril representará o fim das
viagens de autocarro e barco. Esse é o dia fechar a porta pela última vez.
“Depois disso só abro para meter as coisas cá fora”, garante.
Texto editado por Ana Fernandes
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