Não fiquem cansados tão depressa: o
mal é mais tenaz do que o bem
Trump é um perigo de dimensões
mundiais e pode conduzir o mundo ao patamar de uma guerra.
José Pacheco Pereira
15 de Abril de 2017, 7:34
Há momentos em que a acalmia é um perigo. Há ainda piores
momentos em que o cansaço domina. Não estamos em tempos de acalmia, nem em
tempos de ficar cansados perante o que se está a passar. Dois temas de enorme,
insisto, enorme relevância, exigem toda a atenção, pouca acalmia e nenhum
cansaço: para o mundo, Trump; para Portugal, a Europa.
Trump é um perigo de dimensões mundiais e pode conduzir o
mundo ao patamar de uma guerra. Acredito que possa ser travado e que vai ser
travado, como já o está a ser em muitas matérias, pelo funcionamento exemplar
da democracia americana, mas o risco existe. A resistência a Trump vinda da
própria Administração americana, em particular dos seus círculos mais sensíveis
ao risco — as Forças Armadas, os serviços de informação — e depois a própria
administração civil, os juízes, e a opinião pública e os media, tem sido um
travão consistente quer aos seus procedimentos, quer ao radicalismo ideológico
de parte da sua corte de assessores. Dá-se, aliás, um crescente divórcio entre
os seus nomeados civis, muitos de grande incompetência, outros com motivações
ideológicas ou interesses pessoais e corporativos, e o núcleo de militares,
que, com uma ou outra excepção, tem experiência de combate e de direcção de
homens, que os leva a serem muito prudentes e terem consciência dos riscos de
puxar pelo gatilho à cowboy, que é o que Trump faz. Felizmente que a sua
admiração adolescente pelos “generais” levou-o a escolhas mais sólidas nas
áreas da defesa, e isso explica algumas viragens de 180º em matérias como a
OTAN.
Por outro lado, um dos efeitos mais positivos do “efeito
Trump” é uma grande melhoria qualitativa dos media americanos, em particular da
imprensa escrita e de alguns canais de cabo. Os media “liberais” cometeram
grandes erros no modo como acompanharam a campanha eleitoral e como muitos
intelectuais e académicos menosprezaram Trump e ignoraram as fontes da
insatisfação que o impulsionou à presidência. Ao mesmo tempo, menorizaram os
erros da Administração Obama e a arrogância da campanha de Hillary Clinton e as
suas ligações perigosas. A cegueira sociológica face às motivações do “povo de
Trump” leva hoje os historiadores a reavaliarem partes da história americana,
tentando compreender, no sentido weberiano, porque não viram o que agora está à
vista de todos. Hoje, jornais como o New York Times, ou o Washington Post, os
“fake news” de Trump, publicam alguns dos melhores artigos de sempre sobre o
que se está a passar nos EUA. Já é tarde, mas mais vale tarde do que nunca.
Esse esforço tem um papel militante e ajuda à mobilização
social e a uma cultura de recusa que está a condicionar os partidos políticos,
como se vê no próprio Partido Democrata, cujas bases não querem qualquer
cedência a Trump. Trata-se de um efeito inverso daquele que permite a Trump
ameaçar os congressistas e senadores republicanos de que, se não lhe
obedecerem, fará campanha contra eles quando forem a eleições. Os democratas
nos seus encontros com os eleitores recebem lições de intransigência contra
Trump, os republicanos, reacções mais contraditórias. Mas esta mobilização não
se verificava há muito tempo no sistema político americano.
Porém, o homem já lá está. O que é mais perigoso em Trump,
mais até do que algumas opiniões isolacionistas e demissionistas das
responsabilidades americanas, é o seu carácter errático. O espectáculo
assustador do homem mais poderoso do mundo mudar de opinião como quem muda de
camisa torna-o um perigo para o mundo, porque introduz uma irracionalidade
militante e agressiva no sistema de equilíbrios mundiais, e tal acontece sem
qualquer direcção definida e muitas vezes por futilidades. Há muito de
artificial no agravamento das tensões mundiais, mas esse agravamento existe e
com Trump será sempre assim.
Neste contexto, é evidente que as sucessivas mudanças de
opinião de Trump geram confusão. Com facilidade, a comunicação social e o
comentário vêem-se confrontados com um presidente que antes louvava Assad e agora
o considera um assassino, com um amigo e admirador de Putin e agora seu
opositor; antes a OTAN era absoleta, agora “já não é”, e por aí adiante.
Percebe-se que muitas destas mudanças não têm outro fundamento que não seja ter
visto pela manhã, enquanto escreve no Twitter, um noticiário da Fox ou uma
fotografia mais cruel, ou ter a filha Ivanka, com quem tem uma relação mais do
que dúbia, a pedir-lhe alguma coisa simples como seja bombardear a Síria, ou
reagir a uma reportagem que o enfureceu. O homem, que tem à sua disposição
alguma da melhor informação existente no mundo e a possibilidade de ouvir
alguns dos maiores especialistas sobre que matéria for, decide por instinto e
por arroubos, de forma caótica e sem nexo.
Como sempre acontece, há quem construa um edifício de
racionalidade à volta do caos, um “grande plano”, e lhe atribua uma enorme
inteligência táctica e para isso tem de estar sempre a interpretar o que ele
faz como fazendo parte de um plano brilhante que ele executa milimetricamente,
dando apenas a impressão de caos para nos distrair, onde há uma ordem
intencional. Talvez, mas duvido. Quando se lê os seus tweets, que, como já
referi, são uma maneira de o perceber demasiado bem, vê-se que o homem de
sofisticado não tem nada. É bruto, ignorante, mentiroso, dado a fantasias,
habituado ao bullying, sem princípios, moral ou vergonha, egocêntrico até ao
limite.
Trump , por exemplo, amua. Muitas vezes não é preciso ir
mais longe para perceber o seu modus operandi, do que o interpretar como um
adolescente contrariado que amua e faz birra. E o pior de tudo é que recebe
muitas vezes o benefício do infractor de gente que deveria ser muito mais
prudente do que acreditar num Trump vergado, forçado, moldado pelos seus próximos
a uma sensatez que nem ele nem esses próximos têm. Por isso, é penoso ver a
facilidade com que Trump acaba por receber elogios sempre que muda, de um
momento para o outro, de opinião. Como se o Trump do ataque à Síria ou o
atlantista reencontrado fosse bom e aliviasse o mundo por o ter do lado
“certo”. Na verdade, um homem como Trump não está nunca do “lado certo”, porque
o seu único lado é a sua voz interior dentro da cabeça e, juro-vos, que é a
última voz que desejaria ouvir. Infelizmente o mundo todo agora tem de a ouvir.
Um homem destes suscita uma enorme reacção, mas, mais do que
isso, molda a sociedade que o fez e onde habita. Ele radicaliza os seus fiéis a
uma aceitação intransigente de tudo o que faz e alimenta uma postura que
mimetiza a sua, gera milhares de pequenos Trumps. Esses pequenos Trumps
deslocam-se para onde há qualquer fragmento de autoridade que lhes permita
imitar o seu mestre: para as polícias, para a segurança, para os lugares de
supervisores, de capatazes, de fiscais de qualquer coisa, seja do
estacionamento seja de líder de claques ou chefes da praxe. O mundo solitário
que nós construímos nas cidades está especialmente bem adaptado a estes
pequenos Trumps, como o comportamento agressivo nas redes e a nova ignorância
que emerge associada a tecnologias usadas socialmente para reproduzir
comportamentos que põem em causa adquiridos civilizacionais e nos empobrece.
Ele vive na “pós-verdade” e nos “factos alternativos” e gera
um “povo alternativo”, cujas fontes se encontram não apenas na profunda
insatisfação de milhões de americanos, mas na forma como essa insatisfação tem
hoje de se manifestar politicamente — em rede nas redes e na televisão popular,
cheia de sangue, preconceitos, medos e racismo, e nos dois casos com uma visão
simples dos problemas e do mundo.
Trump não é brincadeira nenhuma, é the real thing. Vai
exigir muita perseverança, muito trabalho, muito apego à liberdade, e muito
amor à decência, para ser vencido. Este tipo de homens e o exemplo que dão são
um perigo público, por isso têm de ser contidos e depois vencidos, na opinião,
na influência, nos tribunais, pelo primado da lei e, por fim, nas urnas.
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