A tempestade perfeita
O ensino da Arquitectura em Portugal
tem sido dominado por uma geração que nega a importância do restauro.
ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO
6 de Abril de 2017, 5:39
Através de um texto de opinião da autoria do arquitecto Nuno
Almeida, o debate sobre a intervenção de arquitectos “criadores” em áreas
patrimoniais consolidadas, constituindo estas, no seu conjunto intacto, um
valor histórico insubstituível, surge nas páginas do PÚBLICO.
As aspas em “criadores” aponta para a não referência a outro
tipo de arquitectos quase não existentes em Portugal mas necessários e
indispensáveis: os arquitectos de restauro.
Com efeito, toda a retórica do autor é construída à volta de
uma argumentação que, de forma enganadora, só reconhece duas alternativas para
a intervenção arquitectónica na cidade: arquitectura contemporânea, leia-se
modernista, em ruptura e afirmação consciente e demarcada com a envolvente
histórica, que o autor considera como a única capaz de representar
autenticidade, ou o perverso “fachadismo”, ou artificial operação cutânea que
constitui uma mentira perigosa para o futuro da Arquitectura e da autenticidade
da cidade.
Ora o “fachadismo” é sem dúvida uma perversão, mas sim, do
conceito do restauro integral que considera um edifício histórico como uma
unidade indivisível, entre fachada e interior.
Para dar um exemplo muito rapidamente: qual é o valor de um
edifício pombalino, que faz parte de uma solução sistemática e global para uma
reconstrução funcional de uma imensa área vítima de um cataclismo sísmico, sem
a “gaiola”, que constitui precisamente a solução estrutural anti-sísmica
pensada por engenheiros da mesma reconstrução?
Toda esta confusão “arquitolas” é fruto do facto de o ensino
da Arquitectura em Portugal ter sido dominado ideologicamente por toda uma
geração que, de forma manipuladora, tem sempre negado o reconhecimento da
importância do ensino e da prática do restauro. Utilizando de forma manipuladora
o argumento da Carta de Veneza crítico do restauro integral, os arquitectos de
restauro são vistos e acusados no ensino como apologistas do sacrílego
“pastiche”. Compreende-se o nervosismo de Nuno Almeida e de toda uma classe,
agora sujeita a “honorários limitados” e a um crescente e justificado clamor
crítico da opinião pública, capaz de inibir e amedrontar os técnicos
responsáveis pelas aprovações.
Em 2008, Manuel Salgado, neutralizando a intenção da
candidatar a Baixa a Património Mundial, veio anunciar que “a Baixa nunca será
um bairro residencial” e propor exclusivamente um investimento na hotelaria,
residências universitárias e alojamentos de curta e média permanência,
entregando a dinâmica do investimento unicamente às exigências dos “mercados” e,
assim, abdicando da sua responsabilidade planeadora e reguladora, abrindo a
caixa de Pandora. Para isso, foi criada uma comissão “facilitadora” na DGPC em
2007 a fim de garantir uma autêntica “via verde”, capaz de “neutralizar” as
exigências do PDM.
José António Cerejo publicou um artigo (PÚBLICO, 29.03.2016)
onde referia como responsáveis das decisões desta comissão os arquitectos
Flávio Lopes e Teresa Gamboa e descrevia as tensões mal disfarçadas entre esta
comissão e os directores-gerais Nuno Vassalo e Silva e Paula Silva, que
reivindicavam o seu direito à apreciação prévia a fim de “assegurar uma defesa
eficiente e eficaz do património”. Ficou famosa a frase de Manuel Salgado:
"E se formos muito exigentes com a pedrinha e com o azulejo não conseguimos
reabilitar nada."
“Reabilitar” nesta perspectiva significa demolir
integralmente os interiores históricos e aplicar o fachadismo. Os efeitos
devastadores e irreversíveis nas Avenidas, na Baixa e em toda a cidade são
visíveis e ilustrativos deste fenómeno.
Agora que um clamor profundo de resistência começa a dominar
a opinião pública e a Internet, contestando, através de petições e acções, toda
esta situação, e juntando a estas questões as graves consequências de uma
gentrificação/turistificação galopante, a política profissional tem demonstrado
uma incapacidade total para representar estes urgentes desafios, deixando
exclusivamente à cidadania activa o desempenho deste papel.
Nas próximas eleições autárquicas, Fernando Medina não terá
adversários credíveis e de conteúdo e, tendo a vitória assegurada, irá
continuar na ilusão de que a sua recusa sistemática em reconhecer e
regulamentar estes problemas não irá ter consequências.
Entretanto, no horizonte, acumulam-se as energias e os
sentimentos de revolta que estão a desenhar de forma crescente uma tempestade
futura. Curiosamente, inadvertidamente e involuntariamente, o texto de Nuno
Almeida é mais um sintoma que anuncia a tempestade perfeita.
Historiador de
Arquitectura
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