“O investimento especulativo junto à forte subida do preço
da habitação (também no aluguer a “expats” do mundo empresarial ) está a
expulsar progressivamente os habitantes locais, transformando os bairros em
plataformas rotativas e contínuas de “idas e vindas” de forasteiros híper
individualizados e indiferentes aos locais, e a transformar os antigos bairros
em locais alienados onde ninguém se conhece e onde reina o anonimato.”
ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO
Lisboa: a família é mais importante do que o turismo
HENRIQUE RAPOSO / EXPRESSO
“Num prédio de
habitação familiar em Lisboa, um dos apartamentos foi transformado em
“alojamento local”, isto é, passou a ser um albergue espanhol que acolhe
estranhos e farras a toda a hora. Num prédio onde as pessoas têm de adormecer
crianças ou idosos, num prédio onde se tenta uma vida familiar normal, há agora
uma parcela que está sempre em festa dionisíaca. O caso foi para tribunal. É
normal: não é fácil adormecer crianças com uma discoteca a bombar ao lado.
Contra a decisão da Relação, o Supremo Tribunal deu razão ao apartamento
rebelde que não quer saber do sossego familiar e que transforma uma casa numa
pensão. O problema não acaba aqui.
Vi demasiadas pessoas de “direita” a comemorar esta decisão,
alegando que o “estado socialista” não pode interferir na liberdade económica.
Lamento, mas não se trata de socialismo. Criticar esta decisão judicial não é
uma atitude socialista, é uma atitude preocupada com a célula base da
sociedade: a família. E a pergunta que temos de fazer é esta: que Lisboa está a
ser construída? Que futuro tem uma cidade que não acolhe famílias e crianças? E
que direita é esta sempre tão rápida a sacrificar a família no altar na bolha
turística?”
Tudo o que mudou desde que o vizinho
do 8.º andar passou a "alugar casa a estrangeiros"
Seja por
considerar que o alojamento local se enquadra no conceito de habitação [...],
seja por considerar que embora esteja em causa uma atividade comercial, estamos
sempre no âmbito de uma utilização para fins habitacionais.
Martim Bouza Serrano
06 de abril de 2017 às 10:27
As assembleias de condóminos conseguem a proeza de juntar,
no dia e hora mais inconveniente para todos, e por tempo indeterminado, um
grupo de pessoas que pouco mais partilham do que o número da porta do prédio
onde vivem, mas que estão condenados a ter de gerir os destinos dos
"espaços comuns" do prédio que dividem, por "maioria dos votos
presentes" em reunião.
Ninguém sai de uma assembleia de condóminos com saudades,
mas todos entraram sabendo de antemão, pela "convocatória" recebida
semanas antes no correio, a abrangência dos pontos que vão ser discutidos,
desde o cheiro a lixo que se faz sentir nas escadas, à lâmpada fundida do
quarto dos arrumos.
No entanto, decorrente da recente febre do "alojamento
local", a acrescer a esta lista surgem agora as queixas relacionadas com a
quantidade de "caras desconhecidas" que se encontram no prédio e os
comentários de como tudo está pior, desde que o vizinho do oitavo andar passou
a "alugar a casa a estrangeiros".
Alguns condomínios, , cansados dos seus prédios terem a
rotatividade de um albergue espanhol, convocaram assembleias nas quais, a
"maioria dos presentes" em reunião, decidiu expressamente proibir o
alojamento local, procurando assim limitar os direitos dos proprietários das
frações.
Esta questão não tardou evidentemente a chegar aos tribunais
pela mão daqueles que, embora a custo aceitem que a "maioria dos
presentes" em assembleia delibere contra a sua vontade pintar a fachada do
prédio de "Pantone 448c", entendem e bem, que essa "maioria"
se deve dissolver à porta das suas casas, não lhes reconhecendo legitimidade
para interferir na forma como dispõem dos seus imóveis.
Chamado a decidir a questão, o Tribunal da Relação de
Lisboa, com o punho ainda viciado por décadas de um regime legal de
arrendamento exclusivamente sustentado no conformismo e no património
imobiliário dos senhorios, onde predominavam os contratos para habitação sem
termo, a impossibilidade de despejo dos inquilinos e o congelamento do aumento
das rendas, considerou um verdadeiro excesso, esta "novidade" dos
proprietários poderem livremente dispor dos seus imóveis com tamanha soltura e
desembaraço.
Na opinião daquele tribunal a sujeição de um imóvel pelo seu
proprietário à "libertinagem" do alojamento local, impunha que
aquelas frações devessem ser consideradas como espaços quase pecaminosos
destinados ao "comércio" e não para fins habitacionais obrigando,
assim, a que os seus proprietários tivessem de alterar a descrição da
propriedade horizontal. Mudança que, por lei, carece da unanimidade da
vizinhança do prédio.
Na passada quarta-feira, o Supremo Tribunal de Justiça,
interpelado para decidir da questão, acolheu o pensamento do Tribunal da
Relação do Porto, não deixando que a "vontade da maioria" dos votos
presentes viesse determinar, ou limitar a vontade dos proprietários das
frações.
Seja por considerar que o alojamento local se enquadra no
conceito de habitação, como entendeu o Tribunal da Relação do Porto, seja por
considerar que embora esteja em causa uma atividade comercial, estamos sempre
no âmbito de uma utilização para fins habitacionais, como entendeu o Supremo
Tribunal de Justiça, a nossa jurisprudência interiorizou esta nova figura com a
abertura e a modernidade que se impunham, ao não deixar que o peso da maioria,
aliado ao conservadorismo de outros tempos, viesse amputar os direitos dos
proprietários.
Como o nosso sistema jurídico tem a lei por fonte
primordial, e não as decisões judiciais, como acontece em sistemas que se regem
pela Common Law, esta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, embora proferida
pela mais alta instância judiciária, não afeta de forma direta e imediata, os
casos pendentes ou futuros relativos à mesma questão de direito.
Contudo e mesmo não vigorando entre nós a Common Law, o
facto de o Supremo Tribunal de Justiça ter proferido este acórdão, abre desde
logo a porta à possibilidade de recorrer de qualquer decisão, sobre esta
matéria, que seja proferida em sentido oposto à do Supremo Tribunal de Justiça,
caminho que estava vedado pelas apertadas regras dos recursos mas que o bom
senso e a razão vieram desimpedir.
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