Lisboa à venda: de quem é a culpa?
Lucy Pepper
9/4/2017, 0:51905
É complicado que esta seja uma cidade em que vivem pessoas
com ideias fantásticas, e outras com enorme poder, todos a olhar enquanto
Olisipo arde e uma paródia dela própria renasce das cinzas.
As rendas das casas estão a subir, e as casas para arrendar
estão a desaparecer. Os preços de venda das casa também sobem e a cidade vai
perdendo as pessoas que constituem a sua alma. Era inevitável e, aparentemente,
é imparável. É complicado, é tudo sempre complicado, mas não a culpa não é de
ninguém.
A culpa não é a minha, nem de todos os que querem ficar na
cidade. Quem não quer ficar perto do trabalho, dos amigos e das escolas dos
miúdos? Quem quer passar os seus dias dentro do carro, parado na A1, A2, A5,
IC19, etc., etc., etc., esses estreitos canais de entrada em Lisboa? Mas cá
estamos nós, tão irritantes, a aumentar o lado “demand” no dinâmico “supply
& demand”.
A culpa não é de quem não tem hipótese de comprar uma casa,
não porque não possa pagar as prestações, que seriam muito mais baixas do que
uma renda mensal, mas porque não tem margem financeira para poupar o depósito
de 20% do valor que os bancos hoje exigem, ao mesmo tempo que está a ser
esmagado por impostos impossíveis, falta de estabilidade no emprego, falta de
contractos permanentes e rendimentos baixos.
A culpa não é dos actuais residentes dos Bairros Históricos,
ignorados e esquecidos por todos durante décadas, que se encontram hoje
rodeados por estrangeiros e boutiques e restaurantes que nada têm a ver com
eles, e que receiam ter de sair para outros guetos ainda piores. Quem não teria
aproveitado uma vida inteira de rendas controladas, embora tenha sido essa
política a transformar os bairros em guetos?
A culpa não é dos governos que instalaram e mantiveram o
sistema das rendas congeladas, política que, durante mais de um século,
transformou os bairros em ruínas, porque os senhorios não ganhavam o suficiente
para sequer pintar os prédios. Que governo, em cem anos (antes, durante e
depois do Estado Novo), resistiria uma política populista de rendas baixas controladas,
para se manter no poder?
A culpa não é da revisão da lei de arrendamento, para
proteger os inquilinos. Uma política populista que, embora carinhosa para
alguns, vai ter exatamente o mesmo efeito que as rendas congeladas. Os
inquilinos, pagando ou não pagando, nunca poderão sair das casas, porque não
haverá outras casas para onde irem.
A culpa não é das insanas leis de herança que deixam irmãos
a discutir durante décadas enquanto as suas heranças se desmoronam, já que
nenhum governo se atreverá a mudar as regras para não parecer injusto.
A culpa não é dos senhorios que estão a encurtar os prazos
dos contratos de arrendamento, de 5 para 3 anos, e de 2 para 1 ano, porque não
sabem o que vêm aí em termos de mercado e de regras. Igualmente, a culpa não é
dos senhorios que estão a desistir do mercado de rendas e vendem os prédios,
aproveitando os valores altos enquanto a bolha se mantém. Quem não o faria?
A culpa não é dos senhorios que estão a dobrar e triplicar
as rendas. Quem poderá culpá-los enquanto, como toda a gente, estão a ser
esmagados com impostos? Que aproveitem enquanto podem.
A culpa não é dos arrendamentos locais turísticos, legais ou
ilegais. Quem poderá culpar aqueles que, hoje em dia, tentam ganhar algum
dinheiro?
A culpa não é dos turistas que querem pagar para ver esta
cidade deslumbrante de cultura e coisas boas. Quem não gostaria de desfrutar
Lisboa?
A culpa não é dos novos residentes estrangeiros com os seus
10 anos de paraíso fiscal. Podem estar a deslocar e a substituir os antigos
residentes, e a contribuir para aumentar o peso dos impostos sobre os outros,
mas quem entre nós não gostaria de aproveitar 10 anos num paraíso fiscal com
sol?
A culpa não é dos vistos Gold. Quem não quer liberdade de
movimento neste nosso lindo continente?
A culpa não é de ninguém … estamos todos simplesmente a
ficar com o que podemos enquanto podemos… e Lisboa está perdida.
É complicado.
É complicado termos uma cidade com milhares de prédios
abandonados e vazios.
É complicado que esta seja uma cidade em que vivem pessoas
com ideias fantásticas, e outras com enorme poder, todos a olhar enquanto
Olisipo arde e uma paródia dela própria renasce das cinzas.
É simplesmente complicado.
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