Em Lisboa, um plano a três anos para
a habitação “é impensável”
Sandra Marques Pereira, socióloga,
considera que Lisboa entrou tarde e muito rapidamente no mercado imobiliário
global. Avisa que é urgente olhar “para isto de forma muito séria”.
MARGARIDA DAVID CARDOSO 16 de Abril de 2017, 8:00
Um "turismo imparável" está em Lisboa "para
durar" e é pequena a margem de manobra para dominar um mercado que é
global. Disto Sandra Marques Pereira, socióloga, investigadora e docente no
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), não tem
dúvidas. Com as vantagens e desvantagens que isso acarreta. Assim, qual o
futuro para Lisboa, onde a massificação turística atrai investidores e afastam
residentes do centro da cidade? É o mote para dois dias de debate e
conferência, esta segunda e terça-feira, no ISCTE.
Na conferência “Lisboa, que futuro?”, organizada pela
Dinâmia’Cet-IUL – Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o
Território do ISCTE, a gentrificação (processo de substituição na cidade de
classes mais baixas por classes mais altas) e o displacement (mudança da
população para outras zonas da cidade devido a diferentes pressões) vão ser
discutidos por especialistas de cidades que experienciam fenómenos semelhantes
(Nova Iorque, Vancouver, Milão, Paris e Barcelona) e problematizados por
intervenientes no turismo, comércio, imobiliário lisboetas e moradores
(representados pelo Movimento Quem Vai Poder Morar em Lisboa). É um debate que
quer chegar também à sociedade civil – há mais de 450 inscritos. A entrada é
livre.Especialista em sociologia urbana e coordenadora da conferência, Sandra
Marques Pereira está segura de que os efeitos sentidos hoje – especulação e
pressão imobiliária, crescimento do turismo, reabilitação dos edifícios – fazem
parte de um processo “irreversível”. “Em fase inicial”, em Lisboa. É, por isso,
necessário "picar ideias e referências de várias cidades".
Monitorizar as transformações e estudar a possibilidade de limitar os
licenciamentos de empreendimentos turísticos são cartas que coloca em cima da
mesa.
Associações de Lisboa pedem “nova política” que controle o
uso da habitação para turismo
Associações de Lisboa pedem “nova política” que controle o
uso da habitação para turismo
A pressão do turismo é um fenómeno recente, em Lisboa, mas
as mudanças acontecem a grande velocidade. Esta rapidez pode mudar a forma como
se pensa a intervenção na cidade?
Hoje não podemos pensar em modos tradicionais. Esta mudança
é tão rápida que se vamos fazer um estudo, passado cinco meses está
completamente desactualizado. Portanto, temos que arranjar mecanismos de
monitorização em tempo real destas transformações. E as políticas públicas
devem ir ao encontro desta velocidade. Medidas ágeis, de aplicação imediata.
Neste momento, um plano de intervenção na cidade a três anos é uma brutalidade,
é impensável. O que era pensado como médio e longo prazo, neste desenvolvimento
da cidade de Lisboa está completamente subvertido, porque este processo é
estonteante.
Como pode ser feita esta monotorização?
Vamos ter um painel com o Yann-Fanch Vauleon do Atelier
Parisien D’urbanisme/APUR, que é um observatório das transformações na cidade,
e até na região. O observatório utiliza os dados abertos, alguns
disponibilizados em tempo real, e analisa essa informação em tempo útil para
enformar as políticas públicas.
Vimos as mudanças a acontecer noutros países e o fenómeno
tornou-se premente nos indicadores, em Lisboa, em 2014. O que o provocou?
Tem a ver com o "ressurgimento" dos centros
históricos das cidades. Durante algumas décadas, os centros entraram num
processo de perda populacional e de desvalorização do imobiliário. Com a crise,
as pessoas não tinham crédito e as empresas de promoção imobiliária nacionais
foram ao ar. Os preços do centro da cidade, que já não eram altos, ainda
desceram mais. A autarquia e o governo central têm aqui uma oportunidade: como
não havia recursos públicos, fazem uma espécie de parceria tácita entre
privados e a economia. Há a captação de investimento estrangeiro, há o
marketing urbano internacional da cidade de Lisboa, há a facilitação dos
processos de reabilitação. O imobiliário, o turismo e a reabilitação
alimentam-se uns aos outros. E em 2014, começa a escalar o investimento
estrangeiro e os efeitos desse investimento. De forma muito evidente, em 2015,
2016 e 2017.
Quem sai a perder?
Aqui o elo mais fraco é sempre o arrendatário. Aqueles que
foram para o centro e compraram, podem ganhar. Os que arrendaram estão numa
posição muito débil. São muitas vezes pessoas com grandes níveis de
precariedade profissional, têm rendimentos muito baixos que não são minimamente
compatíveis com estas lógicas globais de imobiliário. Toda a gente reconhece
que temos aspectos positivos e aspectos mais problemáticos. Para mim o mais
importante é a transformação do imobiliário que está subjacente a tudo isto.
Falamos imenso do turismo, que é a coisa mais visível e muito importante, mas a
montante o que temos é uma inserção muito tardia, mas muito rápida e recente da
cidade de Lisboa no mercado imobiliário global. É muito urgente que se comece a
olhar para isto de forma muito séria. Desde logo, porque o processo é
rapidíssimo e é global. Ter esta força da globalização é absolutamente
avassalador e temos uma margem de manobra muito pequena sobre esse fenómeno.
Defende a regulamentação possível. Isto pode passar por
quotas para limitar os licenciamentos no turismo?
Acho que isto tem que ser muito pensado, mas eventualmente
sim. Mas acho que não pode ser só uma medida. Deve ser um pacote de medidas,
feitas de modo a que se perceba exactamente o objectivo e os efeitos não
pretendidos de cada uma. Limitar o alojamento pode manter os preços altos, pode
trazer investimento internacional capaz de superar o nacional, etc.
Limitar em si faz sentido, porque a proliferação de
residência turística gera problemas, não só na inflação dos preços do mercado, mas
como ameaça à função de residência permanente. Há uma diversidade social,
funcional e do património que é preciso manter e temos que perceber como é que
isto se consegue fazer. Barcelona trará certamente muita informação para este
debate.
Este processo, de gentrificação e displacement, pode de
alguma forma ser revertido ou é um caminho de não retorno?
Realisticamente, acho que estas lógicas de globalização do
mercado imobiliário, da expansão do turismo urbano são irreversíveis, são
imparáveis. Mas se ficarmos de braços cruzados, a exponenciação de todos os
efeitos é muito maior. Tendo a consciência de que a margem de manobra dos
governos locais é limitada, mas não é impossível, essa acção deve ser o mais
activa possível. E para isso há a taxa turística, mas também há as receitas do
Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis (IMT). Há muita
receita, o que permite que uma pequeníssima percentagem seja alocada para
permitir algum equilíbrio.
Sabemos que isto vai subir. Os alvarás de obra aumentaram
nos últimos anos, isso quer dizer que a curto prazo vamos ver esses efeitos.
Sabemos que existem três freguesias onde o investimento está completamente
concentrado e a pressão imobiliária é enorme: Santa Maria Maior, Misericórdia e
Santo António. Agora começa a ir para Arroios e São Vicente. Sabemos que, ao
contrário do que se passava em 2005, há uma disparidade de preço da habitação
nas diferentes zonas da cidade. O futuro tende a reforçar estas tendências
todas. Eventualmente a expandir o fenómeno no território. Expansão que obedece
a factores: a proximidade do centro e o património. Este fenómeno assenta no
fascínio pelo património pré-moderno, por isso, tudo o que tem património
edificado anterior aos anos 40 é uma zona de risco, digamos. Já se fala no
Beato, porque tem o potencial dos lofts. É muito importante perceber as ondas
de choque deste fenómeno noutras partes da cidade.
Esta mudança é tão rápida que se vamos fazer um estudo,
passado cinco meses está completamente desactualizado. Portanto, temos que
arranjar mecanismos de monotorização em tempo real destas transformações.
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