A falta de escrutínio do jornalismo
português
Aquilo que está em causa é muito mais
do que a inocência ou a culpabilidade de José Sócrates ou de Dias Loureiro — é
todo o sistema político, judicial, económico e mediático português.
João Miguel Tavares
20 de Abril de 2017, 7:13
Uma das actividades menos escrutinadas em Portugal é o
jornalismo e as empresas de comunicação social. Por uma razão muito simples:
conhecemo-nos todos uns aos outros. Dou-vos o meu caso pessoal. Apesar de ter
uma carreira relativamente pacata, o único grande grupo de comunicação onde
nunca trabalhei foi na Impresa. Tenho 43 anos, sou jornalista desde 1998, e
neste país duas décadas de profissão chegam e sobram para tratar por tu quase
toda gente que manda nos jornais, nas revistas, nas rádios e nas televisões,
mesmo sem ser preciso frequentar o Snob.
Isso cria laços profissionais e pessoais. Ambos são
sensíveis. Com a crise no jornalismo, há cada vez menos sítios onde trabalhar,
o que significa que reprovar direcções e administrações é limitar a nossa empregabilidade.
E para quem preza os laços de amizade, tal escrutínio obrigaria a ter de
criticar pessoas que são nossas amigas. Não me estou a armar em corajoso: eu
próprio já evitei várias vezes escrever sobre gente de que gosto; e já escrevi
sobre amigos utilizando uma delicadeza que estaria ausente se não conhecesse
essa pessoa de lado algum.
Mas, por vezes, se acreditamos na nossa profissão, a crítica
e o escrutínio tornam-se inevitáveis. Por isso, há dois dias escrevi um texto
sobre Dias Loureiro onde criticava a Global Media, três dos seus directores e
um colunista. Entre eles estava Paulo Baldaia, actual director do DN, que fez
parte da primeira equipa que apostou em mim para exercer cargos de chefia num
jornal. Devo-lhe isso. Ontem respondeu zangado ao meu texto com um artigo no DN
intitulado “Jornalistas justiceiros!”, onde nega qualquer falta de liberdade no
jornal e lembra que eu próprio faço parte do Governo Sombra (programa que passa
na TSF), onde digo o que me apetece sem ser censurado por isso.
É verdade. Mas o ponto central do meu texto em relação à
postura do DN e da Global Media mantém-se. Por quatro razões. 1) Não é
aceitável que o advogado de defesa de Dias Loureiro (Daniel Proença de
Carvalho) seja presidente do Conselho de Administração de um jornal onde o seu
cliente é entrevistado no dia seguinte ao arquivamento do processo-crime. 2)
Não é admissível que essa entrevista seja feita pelo director-adjunto
recorrendo a uma série de perguntas tão macias que mais pareciam cabides para
Dias Loureiro pendurar a sua versão dos factos. 3) Não é prudente, neste
contexto, que dois directores do grupo subscrevam em artigos de opinião a tese
de Dias Loureiro e do seu advogado quanto ao comportamento do Ministério
Público. 4) Não é descartável o facto deste caso e das críticas ao MP serem
decalcadas daquilo que se tem ouvido em relação à Operação Marquês — porque é
aqui, de facto, que tudo se joga.
Paulo Baldaia cita três colunistas do Expresso — Daniel
Oliveira, Pedro Adão e Silva e Miguel Sousa Tavares — para demonstrar que não
foi apenas na Global Media que se criticou o Ministério Público pelo tom do
arquivamento. Certo. Só que esses exemplos apenas reforçam a minha tese de que
tudo acaba por desembocar no suspeito do costume. Obsessão minha? Não creio.
Aquilo que está em causa é muito mais do que a inocência ou a culpabilidade de
José Sócrates ou de Dias Loureiro — é todo o sistema político, judicial,
económico e mediático português. Daí a importância deste tema. E daí a
importância de nós próprios, jornalistas, sermos escrutinados de uma forma que
nunca fomos até hoje. Voltarei ao tema no sábado.
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