Funicular da Graça põe em risco
estrutura medieval única no país
Apesar de o projecto ter sido
revisto, os serviços da DGPC alertaram para a possível destruição de 80% de uma
estrutura com “elevado interesse patrimonial”. Câmara garante que monumento não
será afectado, mas o arquitecto responsável não tem assim tanta certeza.
JOÃO PEDRO PINCHA 26 de Abril de 2017, 8:27
A instalação de um funicular entre a Mouraria e o Miradouro
da Graça, em Lisboa, vai destruir quase por completo uma estrutura medieval
única no país: o alambor da Muralha Fernandina. Foi essa a conclusão a que
chegaram os técnicos da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) depois de
analisarem uma versão revista do projecto, que se destinava precisamente a
evitar que aquela estrutura fosse afectada.
Um alambor é uma rampa inclinada construída na base de uma
muralha com o objectivo de dificultar as acções militares inimigas. O alambor
da Muralha Fernandina de Lisboa foi descoberto pela primeira vez em 2016, junto
ao Miradouro da Graça, durante as escavações arqueológicas prévias aos
trabalhos de construção do funicular. Depois desse achado, o projecto foi
revisto, mas não o suficiente, defendem os serviços da DGPC que acompanham o
assunto.
Em Dezembro, e apesar de os técnicos terem defendido “a não
aprovação do projecto devido à afectação substancial do alambor”, a
directora-geral da DGPC consentiu no avanço dos trabalhos. No despacho, Paula
Silva justificou assim a decisão: “Atendendo a que o projecto nesta fase
evoluiu positivamente e salvaguarda os aspectos essenciais da preservação do
alambor (com uma pequena afectação).”
No fim de Março, durante uma reunião entre as várias
entidades envolvidas no assunto, o arquitecto João Favila Menezes e o vereador
Manuel Salgado entregaram o projecto de especialidades. Mais uma vez os
serviços da DGPC não o aprovaram. “É lamentável que o projecto de arquitectura
não registe e represente o troço da Muralha Fernandina, e respectivo alambor,
classificado como monumento nacional, e que será afectado pela intervenção
proposta”, lê-se num parecer datado de 5 de Abril.
A arquitecta que assina este documento, Maria João Parreira,
refere que “a muralha e o alambor não estão representados nas plantas
específicas da zona de chegada [do funicular] ao miradouro” e lembra que “o
projecto continua a não ser acompanhado por relatório prévio/intercalar
conforme legislação em vigor”. De acordo com um decreto-lei de 2009, que
estabelece o “regime jurídico dos estudos, projectos, relatórios, obras ou
intervenções sobre bens culturais classificados”, a entrega desse relatório
prévio é obrigatória.
O parecer arqueológico é ainda mais contundente. “O
arquitecto projectista continua a não assumir clara e frontalmente o grau de
afectação que a sua proposta impõe à integridade patrimonial [da muralha e do
alambor]”, escreve a arqueóloga Maria José Sequeira, que já em anteriores fases
tinha mostrado reservas ao processo. Perante a ausência desses dados, a técnica
superior faz estimativas com base nas plantas disponíveis: 75% a 80% do alambor
será destruído.
Por isso, escreve: “Tendo presente o grau de afectação do
monumento nacional parece-nos que o desenvolvimento da proposta em projecto de
execução não se enquadra nos termos do despacho exarado a 22 de Dezembro.” Esse
despacho, assinado por Paula Silva, referia “uma pequena afectação”.
O PÚBLICO questionou a Câmara Municipal de Lisboa, promotora
da obra, e o arquitecto João Favila Menezes, autor do projecto, sobre este
assunto. As respostas foram contraditórias. A autarquia informou, através do
seu gabinete de comunicação, que a “solução alternativa” apresentada à DGPC
“não afecta a referida estrutura arqueológica”. João Favila não foi tão
peremptório. “Estamos a estudar qual é o tipo de afectação”, disse,
acrescentando que ela “será mínima”.
No mesmo dia 5 de Abril em que as duas técnicas assinaram os
seus pareceres críticos, o processo subiu na hierarquia da DGPC. Carlos Bessa,
chefe da Divisão de Salvaguarda do Património Arquitectónico e Arqueológico,
remeteu o assunto para a sua superior, a directora do Departamento de Bens
Culturais, Catarina Coelho, apenas com uma nota: “Deverá a execução da obra
minimizar os impactos sobre o alambor e a Muralha Fernandina.”
Por sua vez, Catarina Coelho enviou os documentos a Paula
Silva com outro comentário: “Deverá ser avaliada a metodologia da intervenção
junto ao paramento da Muralha Fernandina.” A directora-geral da DGPC aprovou o
projecto nesse mesmo dia, sem mais acrescentos.
Uma “novidade enorme”
Os trabalhos arqueológicos que decorreram no Verão de 2016
permitiram identificar um novo troço da Muralha Fernandina, o que não foi uma
surpresa total, uma vez que já aparecia referenciado em mapas renascentistas da
cidade. A descoberta do alambor é que foi inesperada.
Em Outubro, tal como o PÚBLICO noticiou, a arqueóloga Maria
José Sequeira escreveu que o alambor estava “muito bem preservado”, tinha um
“inequívoco valor patrimonial” e um “carácter único”. Ideias corroboradas e
reforçadas por Mário Barroca, professor catedrático da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, especialista em castelos, arquitectura militar e
História medieval.
Chamado pela DGPC a dar parecer, o docente destacou a
importância das descobertas, especialmente pelo material de construção usado.
“O aparecimento de muralhas em taipa, para mais em Lisboa, capital do reino, e
para mais em obra de iniciativa régia, não deixa de ser um acontecimento
extraordinário”, escreveu Mário Barroca. Para o especialista, a existência de
um alambor constitui um “aspecto de enorme novidade” que faz questão de deixar
claro. “Devemos sublinhar a enorme novidade destes elementos: por se tratar do
primeiro exemplo, arqueologicamente detectado entre nós, de alambor erguido em
taipa”, escreveu.
Mário Barroca não tem dúvidas em afirmar que as descobertas
têm “elevado interesse patrimonial, arqueológico e histórico, que ultrapassa em
muito a importância – já de si não despicienda – que representam para a
História da cidade de Lisboa”. E acrescenta: “Estamos na presença de vestígios
que assumem uma novidade enorme no panorama da arquitectura militar portuguesa
e que, por isso, merecem ser estudados com mais profundidade.” “Mas, sobretudo,
estamos perante vestígios que é fundamental serem preservados”, conclui o
especialista.
No seio dos serviços técnicos da DGPC, a discordância face a
este assunto não se manifesta só nos pareceres e informações oficiais. Em
Novembro, aquando da apresentação do projecto revisto, o gabinete do vereador
do Urbanismo, Manuel Salgado, escreveu uma carta a defender “a importância da
concretização do percurso da Graça”, que é um dos vários que constam do Plano
Geral de Acessibilidades Suaves e Assistidas à Colina do Castelo.
A carta tem várias páginas e, em todas elas, alguém pôs
notas manuscritas à margem com críticas às palavras do vereador – por exemplo,
Manuel Salgado escreve, em determinada passagem, que “o Estado português (…)
subscreveu diversos documentos nos quais assume que a promoção da mobilidade e
da acessibilidade para todos deve constituir uma prioridade das políticas
públicas”. Comentário escrito a lápis ao lado: “Também subscreveu as cartas e
convenções internacionais de defesa do património!”
Segundo a câmara transmitiu ao PÚBLICO, agora que já foi
obtida a aprovação da DGPC ao funicular, “está em preparação o lançamento do
concurso público para a sua construção.”
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