Uma Carta para o Guardian/Observer
sobre Lisboa
Lucy Pepper
16/4/2017, 23:58
O Guardian atribui a corrente
renovação de Lisboa a António Costa. Quem é que em Portugal fazia ideia de que
o actual primeiro ministro era o único responsável por este milagre económico?
Caro Guardian,
Estava para escrever a minha crónica desta semana sobre uma
catástrofe global (não, não “essa”, outra), mas li ontem este artigo no
Observer (isto é, no Guardian online) e deu-me vontade de responder. A tal
catástrofe global pode ficar para outro dia… espero eu. Bem, todas as crónicas
poderão perder a sua razão de ser até à próxima semana, com “essa” catástrofe à
vista, mas tentemos ser optimistas.
Há três anos que o Guardian escreve liricamente sobre
Lisboa. O Guardian é o jornal britânico com mais influência no que diz respeito
ao jornalismo de viagens (tenho notado o que acontece no sector do turismo
urbano quando o Guardian menciona alguma coisa, por comparação com outros
jornais britânicos). Por isso, os vossos trabalhos sobre esta cidade têm tido
um impacto forte, em número de visitas e no interesse que provocam na restante
imprensa mundial. Bravo! Portugal está em apuros financeiros, e por isso,
suponho que posso agradecer-vos, em nome de Portugal e de Lisboa. Suponho.
Hoje em dia, ficar na moda tem logo efeitos fortes e feios.
O centro de Lisboa está hoje significativamente diferente do que era há três
anos, para o bem e para o mal. A mudança tem sido tremenda e parece imparável,
mas talvez a culpa não seja vossa. Afinal, estavam apenas a tentar ajudar e a
ser simpáticos. Ainda a semana passada, publicaram um artigo chamado “O Melhor
de Portugal Rural: dicas de leitores”, no qual os vossos leitores (que não têm
de respeitar os mesmos critérios de rigor jornalístico, nem incorrem nas
responsabilidades por causa das suas dicas) deram ao mundo notícia de uns
certos lugares pouco conhecidos de Portugal.
Seria óptimo podermos partilhar o turismo mais
igualitariamente pelas várias regiões de Portugal, em vez de estar tudo concentrado
em Lisboa, no Porto e no Algarve. Porque se Lisboa estava a precisar de ajuda,
o resto do país está com problemas ainda mais graves, e dar-lhe-ia jeito
encontrar mais umas maneiras de ganhar a vida. Tudo bem, então, a não ser que
Ponte da Lima se torne uma repetição de Lisboa e do Porto.
Contudo, o artigo de ontem, mais do que qualquer outro
artigo que li no Guardian sobre Portugal e sobre Lisboa, fez-me comichão nos
dentes. Pergunto: já que adoram este país assim tanto, porque não contratam um
correspondente que viva cá (e não em Espanha), que fale a língua, perceba o
país e fosse capaz de dar notícias realistas sobre este lugar maravilhoso? (e
não, não estou a pedir emprego!)
O autor do artigo, o crítico de arquitectura do Observer,
Rowan Moore, parece ter absorvido cada palavra que saiu da boca do “suave”
secretário de estado da indústria, João Vasconcelos, o suspeito do costume
nesta espécie de peças jornalísticas. João Vasconcelos tem, como seria de
esperar, um interesse óbvio em promover a cidade, porque dinheiro é dinheiro.
Também tem interesse em proclamar que o seu chefe, o primeiro ministro, é um
ser maravilhoso.
Eis o que Rowan Moore conta, provavelmente a partir dessa
fonte: “Enquanto presidente da câmara, Costa acabou com os obstáculos burocráticos,
encorajou os empreendedores criativos e técnicos e deu um grande impulso ao
turismo. Tornou mais fácil fundar empresas ou hotéis em prédios históricos.
Criou programas para ensinar ‘coding’ a alunos e desempregados. Iniciou Startup
Lisboa no centro da cidade então moribundo, um espaço onde negócios novos
podiam começar, dirigido hoje pelo, agora secretário de Estado, Vasconcelos”.
Rowan Moore chama a isto tudo o “Renascimento de Costa”. Quem é que em Portugal
fazia ideia de que o actual primeiro ministro era o único responsável por este
milagre económico? A maior parte de nós não sabia.
Rohan Silva é o outro suspeito do costume.
Inexplicavelmente, é muitas vezes entrevistado sobre o tema de Lisboa, talvez
porque tenha interesse em promover o seu negócio de “co-working”. Como vive em
Londres, sabe tudo sobre Lisboa e Portugal. Assim, conta-nos que o governo de
Costa é “popular e favorável ao empreendimento”. Sim, tão popular que precisou
de formar a geringonça com o PCP e o Bloco de Esquerda para se tornar primeiro
ministro, e, como todos sabemos, não há ninguém mais favorável aos empresários
do que o PCP e o Bloco de Esquerda.
Outros entrevistados também contaram como tudo é maravilhoso
por cá, desde o “surf” até as pessoas (“incríveis”). São americanos, franceses
e ingleses, provavelmente conhecendo duas ou três palavras de português (peço
imensa desculpa, mas sou realista… gostava muito de estar errada nisto), e têm
todo o interesse em atrair mais gente como eles a Lisboa, para ter mais gente que
fala a versão de inglês internacional ao pé. O paraíso fiscal de que beneficiam
durante dez anos deve ajudar a criar essa sensação de que tudo é maravilhoso em
Lisboa.
Depois, há a expectativa ingénua de que, para a “classe
global criativa”, Lisboa é a nova Meca. Bem, os “criativos” terão muita sorte
se encontrarem uma casa por menos de €2000 de renda mensal, caso queiram viver
no centro da cidade em vez de nos subúrbios. Sorte a eles, digo eu, enquanto os
lisboetas são empurrados cada vez para mais longe do centro. Um entrevistado
americano revela que veio para Lisboa pelo “baixo custo de vida e pelos baixos
salários”. Ah, estamos a ver: mão de obra barata e surf. Simpático.
Bem, no fim do artigo, o autor tenta fazer algum
equilibrismo, e explica que há pessoas que não estão de acordo com tudo isto.
Mas terá sido tarde demais. Aposto que antes de chegarem ao fim do artigo, já
muitos leitores terão comprado os seus bilhetes só de ida para Lisboa, para
usufruírem do melhor lifestyle do mundo, para interagirem quase nada com o
Portugal genuíno, sem nunca terem de aprender a língua, e, claro, para
aproveitarem o paraíso fiscal. Boa para eles.
Ó Guardian, normalmente manténs o teu compromisso com o
jornalismo de qualidade, e é por isso que muitas pessoas, até as de outras
persuasões políticas, têm a maior estima por ti. Por isso, se fazes favor,
acaba com estas “puff pieces” com pouca informação válida, porque estás a mexer
com a vida das pessoas nesta cidade.
Obrigada.
Beijinhos e abraços, Lucy Pepper (britânica, da “classe
criativa” (bah!), a viver em Portugal desde o século passado, e que fala “the
bloody” língua).
Sem comentários:
Enviar um comentário