O ruído autárquico e o Cais do Sodré
Por Luís Neto Galvão, Ana Andrade e Isabel Sá da Bandeira
02/05/2013 in Público
O período pré-eleitoral iniciou-se em Lisboa, por impossibilidade de comparência do adversário, com o passeio triunfal de António Costa rumo à vitória. Lamentavelmente para os lisboetas, o debate público que se impunha neste momento sobre os problemas de Lisboa, nomeadamente o seu enorme endividamento e o modelo de desenvolvimento sustentável que o mesmo permite, encontra-se comprometido por uma inacreditável estratégia autárquica da coligação PSD/CDS-PP.
Lisboa vive problemas dramáticos, sujeita que está à condicionante terrível do seu gigantesco passivo e a severos limites ao endividamento. Neste quadro, afastada a realização de grandes obras, o grande desafio para Lisboa nos próximos anos consiste no repovoamento do seu centro histórico, sujeito a décadas de abandono, aliado à dinamização do comércio e do turismo de qualidade e à promoção da reabilitação urbana, actividades com assinalável potencial de criação de emprego.
Para o efeito, será importante contar com um executivo responsável e actuante. Inacreditavelmente, porém, o actual executivo, apesar da intervenção na área da Almirante Reis, que é de saudar, levou a cabo uma política hostil ao repovoamento sustentável do centro histórico, que definha entre a incúria e o abandono.
A este título, é paradigmática a actuação autárquica na zona do Cais do Sodré, a qual teve efeitos nefastos numa ampla área entre o Chiado e o Mercado da Ribeira, abrangendo as zonas do Corpo Santo, Arsenal e Rua Bernardino Costa e alastrando até Santos. Isto - sublinhe-se - após ter permitido por décadas a propagação do ruído nocturno por todo o Bairro Alto.
No Cais do Sodré, a gestão do espaço público, delegada por António Costa em José Sá Fernandes, foi tratada com total desprezo pelos direitos dos residentes. Com efeito, em pouco mais de um ano, a dupla A. Costa e Sá Fernandes conseguiu o feito único de transformar o Cais do Sodré, zona onde a actividade nocturna se circunscrevia a alguns estabelecimentos da Rua Nova do Carvalho/Rua de São Paulo, num foco de ruído, delinquência e insalubridade e num exemplo paradigmático de retrocesso civilizacional.
Em Setembro de 2011, na sequência de um abaixo-assinado de comerciantes da diversão nocturna da Rua Nova do Carvalho, e sem qualquer audição dos moradores, Sá Fernandes encerrou esta rua ao trânsito automóvel, tendo a mesma sido pintada de cor-de-rosa. Tal medida surgiu de "um acordo" entre aquele vereador e os comerciantes da zona, "para transformar esta rua num novo espaço pedonal que terá esplanadas" (PÚBLICO Online, 15/09/2011).
A esta medida seguiu-se um conjunto de festas nocturnas organizadas em plena rua cor-de-rosa e apoiadas pela CML, com uma alegada dimensão cultural, mas caracterizadas pelo ruído intenso e pelo patrocínio de marcas de álcool. Os residentes, esses passaram a ter, de quinta à noite até à manhã de domingo, um megaconcerto entrando-lhes pelas paredes e janelas.
O encerramento da rua cor-de-rosa deu ainda um sinal claro aos empresários da diversão nocturna (e também aos frequentadores da mesma) de que esta actividade era fomentada e promovida pela CML na zona do Cais do Sodré, na qual de imediato surgiram novos espaços como bares, restaurantes/cafés com música e lojas de conveniência, todos em horário alargado.
Estes estabelecimentos têm como factor comum a concentração ruidosa de frequentadores fora de portas, a venda de álcool para a rua e a emissão de música em volume elevado para o exterior. Outros operadores como as smart shops juntaram-se a esta realidade, transformando radicalmente a paisagem comercial daquela zona, antes constituída por pequeno comércio diurno.
Finalmente, a CML seleccionou um projecto de requalificação do histórico Mercado da Ribeira, da autoria da revista Time Out, assente, entre outros espaços, num "bar/discoteca", de modo a que "este equipamento seja visto pelos lisboetas como um sítio que tem quase sempre as portas abertas, dia e noite".
Apesar dos consideráveis recursos públicos que a CML veio entretanto a mobilizar para contrariar esta realidade, depois de inúmeras queixas de moradores, o essencial mantém-se (ruído e insalubridade), e a rua cor-de-rosa permanece encerrada a automóveis e ao serviço do divertimento nocturno.
Este é, reconheça-se, um fenómeno que ocorre noutros pontos de Lisboa e nos centros históricos de outras cidades portuguesas, pelo que assume uma dimensão nacional. Porém, nunca como no Cais do Sodré um executivo autárquico assumiu tão diligentemente os interesses do divertimento nocturno e atentou com tanta intensidade contra aqueles que deveria proteger. Note-se que à CML compete exclusivamente a defesa do interesse público, que neste caso se confunde com o direito dos moradores ao repouso e a um ambiente sem ruído nocivo.
No seu artigo 66.º, a Constituição da República Portuguesa (CRP) garante o "direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender" (n.º 1), fazendo recair sobre o Estado o dever de "prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos" (n.º 2, alínea a)).
Conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o direito ao repouso integra-se no direito à integridade física e a um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado, e, através destes, no direito à saúde e à qualidade de vida. Em caso de colisão, o direito ao repouso é "superior ao direito de propriedade e ao direito ao exercício duma actividade comercial" (STA, Ac. de 96/01/09, Proc. n.º 87941). Acresce que a "ilicitude de um comportamento ruidoso, que prejudique o repouso, a tranquilidade e o sono de terceiros está no facto de, injustificadamente e para além dos limites do sociavelmente tolerável, lesar tais baluartes de dignidade pessoal" (STA, Ac. de 02/01/17, Proc. n.º 01B4140).
Fica assim bem claro que, em caso de conflito entre o exercício da actividade de diversão nocturna (ou de qualquer actividade comercial) e o direito ao descanso dos moradores a um meio ambiente saudável, este último prevalece em qualquer circunstância!
É a partir desta premissa que deve partir o debate sobre a requalificação e repovoamento do centro histórico e a promoção da actividade económica e do emprego nas cidades, questões absolutamente centrais na próxima campanha autárquica e que são transversais a todo o país.
Movimento Nós Lisboetas www.facebook.com/AquiMoraGente
1 comentário:
O cais do Sodré sempre foi uma zona de actividade nocturna à mais de um século que funciona nesse registo.
A diferença é que a prostituição acabou, os tiros e as facadas e a famosa cabeçada à cais sodré já não afastam as famílias de irem a essa rua (Nova do Carvalho) jantar, beber um café, copo ou outro. Nesta rua todos os estabelecimentos pagam policiamento para que esteja sempre presente (gratificados).
Nas ruas circundantes, existem lojas de conveniência (monhés) abertas com o mesmo horário dos bares, pessoas de mochila ás costas a vender cerveja.
As ditas lojas de conveniencia deveriam fechar às 24:00, e deixar o negócio das bebidas para os bares, esses não vendem "litrosas" e outros objectos que para alem de se encontrarem ás centenas no fim da noite são objectos perigosos e de fácil arremesso.
Neste momento os bares da Rua Nova do Carvalho dão mais lugares de emprego do que pessoas que lá moram. Só tem um prédio habitado com 3 apartamentos ocupados num edificio que mais ano, menos ano vai acabar por cair, se fossemos por em causa a segurança do prédio, já não morava lá ninguem, e esta rua ficava com ZERO moradores.
Logo, a lei que o senhor fala não pode ser tão linear.
A câmara tem que atacar o problema principal, as "litrosas", e deixar trabalhar quem tem as devidas condições para tal, inspeccionar construtivamente e tomar medidas.
Mais desemprego ? não obrigado.
Acabar com os negócios metendo-os todos no mesmo saco e fechá-los ? Não obrigado.
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