quarta-feira, 22 de maio de 2013

Oeiras perdoa Isaltino.

Atender pobres e ricos sem hora marcada, dar passeios, cabazes de Natal e cartões de descontos (em farmácias e lojas) aos reformados, medalhas aos funcionários leais, bons dias e boas tardes a toda a gente, magustos e almoçaradas umas quantas vezes por ano. Diz--se que Isaltino conquistou os oeirenses pela simpatia, e também pelo estômago. Todos os anos no dia de São Martinho o festejo repetiu-se: o presidente encomendava toneladas de castanhas da sua terra, Mirandela, e contratava uns homens para as assarem no largo da igreja.




Oeiras perdoa Isaltino. “O erro dele foi gostar de mulheres”

Por Sílvia Caneco
publicado em 22 Maio 2013 in (jornal) i online

Otília teve pena, Zilda chorou e outros ainda quiseram arrombar a prisão. Retrato de um concelho rendido a um presidente condenado

Zilda avança desorientada pela praça da igreja, passos maiores que as pernas. Faltam dez minutos para o início do turno mas só um nome é capaz de travar o passo corrido da varredora da Câmara de Oeiras. “Se pudesse, eu tirava ele de lá, ia lá com minhas mãos, arrombava os portões e tirava-o.” Isaltino Morais foi detido há quase um mês para cumprir uma pena de dois anos de prisão, e Zilda, nascida na ilha do Fogo, em Cabo Verde, ainda está revoltada. “Era um grande doutor, e vai ser preso assim como um cão, ali na praça? Não se faz assim, ao menos mandavam um postal a avisá-lo.” Zilda chorou quando Isaltino foi preso. Não percebe porque o aviso não chegou de mansinho, como um postal de Natal. Não percebe como o seu presidente pode ser preso e “porquê. Se não assaltou banco nem matou pessoa?”. Afinal, na cabeça dela, os homens bons não cometem crimes.
Um criminoso não pára o carro para perguntar se está tudo bem como Isaltino fazia enquanto ela varria os jardins; um criminoso não lhe dá 25 euros do pé para a mão só porque ela – que se gaba de falar cinco línguas – desabafa num francês macarrónico “Je ne peux pas manger, je n’ai pas d’argent”; um criminoso não move mundos e fundos para o seu filho, doente mental, conseguir vaga num centro e uma consulta num hospital. Nem constrói centros de dia, nem escolas, nem lares “para os velhotes”. Digam o que disserem, nada fará Zilda mudar de ideias. “Desculpem, meus senhores, mas eu tenho de defender o homem.”
Zilda não foi a única a querer resgatar o presidente recluso. Isaltino foi detido à hora de almoço na véspera do Dia da Liberdade e logo outras oeirenses começaram a traçar um plano: recolher assinaturas para um abaixo-assinado. Andaram pelas ruas do centro histórico, pelo mercado, de porta em porta. O objectivo era juntar uma catrefada de gente, encher autocarros e ir em romaria para a porta da prisão até que Isaltino fosse libertado. A ideia romântica, de um povo a lutar pela liberdade do seu presidente, acabou por não ir avante. “Pelo que ouvi dizer, o Vistas [o número dois que assumiu a presidência da autarquia por Isaltino estar impedido de exercer funções] não terá dado grande apoio, e a ideia morreu”, conta Otília, a peixeira mais tagarela do mercado de Oeiras.
O que leva um povo a eleger sete vezes consecutivas o mesmo presidente? O que explica que depois de ser dado como suspeito de corrupção, em 2005, e já sem o apoio do PSD, tenha conseguido, de novo, ser eleito? Que milagres fez por Oeiras para que após a condenação, em 2009, tenha conseguido ainda mais votos (41%)? E mesmo agora, atrás das grades, continue a merecer em todos os cantos a pena e o pesar por já não poderem votar nele? Que espécie de fenómeno é este a pairar naquela vila que transforma quatro crimes provados (três de fraude fiscal e um de branqueamento de capitais) numa insignificância na hora de eleger um líder?
José Gonçalves, de 70 anos, tem uma explicação: “Cheguei a ir ter com ele para marcar uma reunião e ele disse: não é preciso, às tantas horas esteja aqui.” Manuel Pereira, oeirense há 32 anos, tem mais uma: “Era uma pessoa muito educada e acessível. O resto, a gente só ouve falar.” E José Antunes ainda tem outra: “Trabalhei 13 anos com ele e só tenho a dizer bem”, conta o pensionista, enumerando os quatro “miminhos” que ganhou ao fim de dez anos de serviço – um almoço, uma tarde livre, um diploma e uma medalha de bronze. “Bronze do verdadeiro.”
Os dois Josés são ex-funcionários da autarquia e Manuel reformado do privado. Nenhum hesita: se Isaltino voltasse a ser candidato (não pode), votavam nele outra vez. No banco de jardim encostado à igreja onde se encontram todos os dias vão continuar a interromper-se e a desfiar argumentos na esperança de serem compreendidos. Manuel resume tudo: “A gente não pode dizer mal de quem nos fez bem.”
A táctica.
Atender pobres e ricos sem hora marcada, dar passeios, cabazes de Natal e cartões de descontos (em farmácias e lojas) aos reformados, medalhas aos funcionários leais, bons dias e boas tardes a toda a gente, magustos e almoçaradas umas quantas vezes por ano. Diz--se que Isaltino conquistou os oeirenses pela simpatia, e também pelo estômago. Todos os anos no dia de São Martinho o festejo repetiu-se: o presidente encomendava toneladas de castanhas da sua terra, Mirandela, e contratava uns homens para as assarem no largo da igreja. “A festa começava de manhã e só acabava quando já não havia uma castanha para contar a história”, recordam. Isaltino, que gosta de patuscadas, também não faltava ao magusto: chegava, sempre com o seu charuto, estendia a mão ao povo e sentava-se ali, a descascar castanhas e a beber um copinho de água-pé. “Sabia exactamente como ter as pessoas na mão”, confidencia um oeirense.
De Carnaxide a São Julião da Barra, dos bairros chiques aos pobres, o difícil é encontrar uma alma que diga mal do homem que comandou Oeiras durante 23 anos. Ou então quem concorde que crime é crime e merece sempre castigo. “Ele a mim não me roubou, ou se roubou a gente não sabe”, justifica um dos Josés. Isaltino não só não lhes roubou nada, como é um símbolo da riqueza e do progresso. Se a vida melhorou, o mérito não é só dos oeirenses, mas também de Isaltino. Se há 20 anos viviam numa barraca e agora têm uma casa, um bem-haja ao Isaltino. Se agora podem correr no passeio marítimo, fechar os olhos e imaginar que estão no calçadão de Copacana, abençoado Isaltino.
Há uma Oeiras antes de Isaltino e uma Oeiras pós-Isaltino.
 A pré-Isaltino é o retrato de um concelho pobre, resumido a pouco mais que o centro histórico – não importa se agora está deserto, se o comércio está moribundo e se sobrevivem lojas do passado como a Gordinha Pimentinha. O que importa é que o concelho cresceu. A era pré-Isaltino era a que tinha inveja da vizinha Cascais, a que tinha urbanizações ilegais e barracas, a que vivia entre o mar e Lisboa, mas fechada e triste, com sintomas de dormitório e de subúrbio.
Na era pós-Isaltino, Oeiras tem um passeio marítimo de 3500 metros, uma piscina oceânica, polidesportivos, centros comerciais, parques tecnológicos, universidades e barracas nem vê-las. Recebe prémios como o “município de excelência” e o de “melhor concelho para trabalhar”. Oeiras é o segundo concelho mais rico do país e quem lá mora usa as estatísticas em defesa do autarca. “Sintra e Cascais ainda têm de comer muita fruta”, brincam alguns residentes. Têm tanto orgulho em Oeiras como num condenado.
A obra é grande e os elogios chegam a atingir o limite do absurdo. “O Isaltino foi como o Marquês de Pombal: um visionário”, remata, eloquente, a peixeira Otília, enquanto arranja um choco com cara de coelho morto. Há 40 anos a vender no mercado de Oeiras, Otília tem uma explicação para tudo. “O erro dele foi gostar de mulheres. Se não se tivesse metido com a secretária e contado o que não devia…” Há tentações que dão cabo da vida de um homem. Outros moradores, meio em surdina, tratam de pôr a coscuvilhice em dia: recordam como, nos tempos em que estava solteiro, os seus motoristas penavam com a sua apetência para o “forrobodó”. “Ia para as discotecas e eles tinham de ficar lá à espera até às 3 ou 4 da manhã. Ganhavam bem, não se podiam queixar.”
“Não está bem a ver como Oeiras era.” É por aqui que quase todos começam, como se precisassem de justificar a devoção a um político que se transformou num alvo de risota fora deste microcosmos. Otília vive na parte baixa da cidade, num rés-do-chão. Quando as chuvas alagavam as ruas e as casas, Isaltino nunca falhava. Fossem duas ou três da madrugada, aparecia, de galochas, para enfrentar as cheias ao lado dos moradores. Até o quotidiano de uma peixeira se alterou devido a um autarca generoso. “Guardávamos o peixe que não conseguíamos pôr na banca aqui em baixo, numas geleiras amarelas, sem condições. Queixámo-nos e ele ofereceu umas arcas frigoríficas.”
Otília, cabelo cinza, braços cheios, seios a boiar dentro da roupa como gelatina, óculos de ver na cabeça, faca a dançar de um lado para o outro, passa uma eternidade a enumerar obra de Isaltino enquanto as freguesas esperam. Das grandes vinhas que ele plantou à zona do Centro Comercial das Palmeiras, que antes “só cheirava a vacas” e se transformou num bairro rico. Tudo para chegar a uma conclusão: “Ele deixa pena a muita gente.”
Trafulha sim, patife não
 Isaltino pode estar a cumprir uma pena mas, palavra de morador, está longe de ser um patife. Pode até ser “um trafulha” – mas “o que o gajo fez a gente não fazia?”, “pelo menos ele sabe onde ir buscá-lo”. Há até quem diga que “o pobre homem” só “queria charutos” e “não roubou nada” – pouco importa se escondeu dinheiro que tinha na Suíça para fugir aos impostos no segundo concelho que mais impostos paga no país. O certo, insistem os moradores, é que é o único a cumprir uma pena de prisão. “E o Avelino Ferreira Torres?” “E aquela, a do saco azul?” “E o Valentim Loureiro?” Isaltino estava ali bem, a justiça é que se foi meter onde não devia. “Tinham de se vir meter logo com o segundo maior concelho do país”, refila o proprietário de uma loja que prefere não ser identificado porque é fornecedor da câmara e “não se sabe quem lá vem”. Do candidato do PS às próximas autárquicas, Marcos Sá, ninguém fala. Moita Flores “é um tipo simpático lá da televisão mas não é da terra”. Vistas era o homem de Isaltino, mas há quem esteja descontente por andar “com o rei na barriga” desde que ficou com o comando. “Ainda tem de comer muito feijão com arroz para chegar aos calcanhares do Tino”, protesta Otília.
Carla Teixeira, 32 anos, atravessa um Parque dos Poetas vazio e apressa-se a dizer que não percebe nada de política. Mas o que é que isso interessa? “Sou fã do Isaltino.” E fã que é fã tem sempre um sentimento meio irracional. “Quero lá saber que seja ladrão. Os meus pais foram funcionários da câmara e nunca lhes faltou ordenado ao fim do mês. Nasci aqui e tenho tudo à porta de casa. Abençoado Isaltino.” Se os moradores tiverem menos de 15 anos, talvez o mais certo seja não saberem por que razão foi preso o ex-presidente. “Na escola não se fala nisso. Ouvi na televisão que ele era corrupto… É verdade?”, pergunta António, 14 anos. Dezenas de manchetes de jornais, aberturas de telejornais, 46 recursos, e ainda há quem não conheça o cadastro do autarca. Paulo Renato passa os dias a arrumar carros em Santo Amaro de Oeiras, com um chapéu cabeleira de lã: “Só ouvi de surpresa que ele tinha sido preso, não soube bem o que se passou, mas não deve ter sido nada de grave.”
Ernesto Monteiro, 79 anos e boné de Portugal na cabeça, está há 12 em Oeiras, no Bairro do Pombal, junto ao cemitério. Tudo graças ao “pai Isaltino”. “Dizem que desviou dinheiro. Tenho pena, por mim ele continuava lá, que trabalhava bem.” O seu passado pertence à era pré-Isaltino. Durante 27 anos viveu numa barraca em Algés. Faz parte do grupo que ganhou uma casa porque o autarca conseguiu erradicar todas as barracas do concelho até 2003. Por alguma razão, bairros como o do Pombal ou das Lajes são lugares temidos fora de horas por forasteiros, mas Isaltino era recebido como se estivesse em casa. Quando o presidente chegava era sempre uma festa: punha-se a música aos berros e dançava-se kizomba, hip hop e funaná. “Aqui no bairro toda a gente gosta dele”, conta Filomeno, que na paragem de autocarro espera a camioneta para Leceia, onde noutros bairros sociais Isaltino também era tratado como rei.
Será preciso chegar às Palmeiras e à Quinta do Marquês, zonas de vivendas e moradias mais próximas do mar, para que a justiça fale primeiro que a obra. Na esplanada de um café do shopping, quatro amigos juntam-se naquilo a que na brincadeira chamam “uma tertúlia pseudo-política, misturada com conversé”. “Um homem de visão”, “o melhor autarca do país”, “insubstituível”. Mas não é por reconhecerem a obra que votaram ou votariam nele. “É popular, simpático e competente. Aqui as pessoas não se indignam muito. Mas se cometeu fraudes que a justiça já provou tem mais é de pagar por elas.”
No centro histórico, José Arlindo é dono de uma loja que repara electrodomésticos mas já não está aberta ao público. É uma excepção num concelho que faz vénias ao seu ex-presidente. É da oposição? Não, mas podia, confiando no que os adeptos de Isaltino disseram: “Se quer encontrar quem diga mal dele vai ter de ir ali para os lados da câmara.” Que fez boa obra, lá isso fez, reconhece Arlindo. “E a má, ninguém fala daquele Satu?” O transporte futurista que anda sobre carris e sem maquinista lá permanece, vazio, abandonado, no meio de um concelho que fervilha. Não é estar contra por ser do contra, explicará o comerciante. “Ele pode ter tido sarilhos, o dinheiro não é meu, mas de onde é que ele veio? Como é que ninguém se indigna com isto?”


“Um homem de visão”, “o melhor autarca do país”, “insubstituível”.


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