Paris, Berlim e Londres: estão em jogo a natureza e a liderança da UE
Por Jorge Almeida Fernandes in Público
26/05/2013
A incerteza atingiu o ponto máximo numa Europa "sonâmbula". À França em crise e a uma Alemanha que já duvida soma-se o risco do referendo britânico, que poderá mudar a arquitectura do continente.
Que têm em comum as crises francesa e britânica com a estabilidade alemã? Em si mesmas, muito pouco. Combinadas, determinam o futuro da Europa. A relação franco-alemã pesa decisivamente na gestão da crise do euro. O britânico Charles Grant, director do Center for European Reform, diz que há 50% de chances de que David Cameron não possa escapar a um referendo sobre a Europa na próxima legislatura. E se a Grã-Bretanha sair da UE, é a arquitectura do continente que mudará.
A França atravessa uma dupla crise, económica e política. A novidade é que pôs em causa as relações com a Alemanha, erigida em "bode expiatório" pela esquerda do Partido Socialista, que procura bloquear as reformas económicas de François Hollande. Se a esquerda está partida em torno da economia, a direita está politicamente fracturada desde a derrota de Nicolas Sarkozy. A gravidade da crise da direita é que pode abrir uma avenida eleitoral à Frente Nacional, de Marine Le Pen.
Na Alemanha, aguardam-se - normalmente - as eleições, sobre cujo desfecho não vale a pena especular. Em princípio, nada deveria mudar na política económica europeia de Berlim, objecto de um consenso de 30 anos entre democratas-cristãos e sociais-democratas e que envolve a esmagadora maioria da opinião pública. Pode, no entanto, acontecer que essa política deva ser "flexibilizada", caso a recessão se agrave no conjunto da Europa - o que é grave para a própria economia alemã. No primeiro trimestre do ano, a Alemanha teve um anémico crescimento de 0,1%, os investimentos das empresas diminuíram e o comércio externo pouco efeito teve sobre o crescimento.
O horizonte "pós-troika"
Hollande sanou imediatamente o incidente com Berlim, fazendo um conjunto de propostas e garantindo a Merkel a opção francesa por uma "união política" - embora não diga o que entende por isso, supondo-se que a use num sentido mais restritivo do que Berlim.
Frisa um analista que, de qualquer forma, as propostas de Hollande a Merkel - como a de um governo económico até 2015 - "abrem um novo debate constitucional na Europa". Havia evidentes sinais de travagem da integração, com os próprios alemães a querer esperar o desfecho do referendo britânico de 2017.
Edmond Alphandéry, antigo ministro francês, avisa: "O clima melhorou consideravelmente nos mercados financeiros. [Mas] o risco do euro desloca-se hoje para o campo político. Os países do Sul vão continuar a aceitar os sacrifícios que lhes pedem?" O mesmo pode ser dito dos países do Norte. Até que ponto, perante as recessões, privilegiarão uma solução comunitária ou serão tentados por uma solução "egoísta"? O grande problema europeu, frisa o britânico Gideon Rachman, é a "ruptura de confiança" entre o Norte e o Sul - por divergência de interesses, mentalidades e preconceitos.
A crise não se reduz ao problema da dívida e à austeridade. Exige reformas. "A guerra, escreve o economista italiano Carlo Bastasin, deve ser ganha, antes de mais, no interior de cada país ou então nunca teremos a paz. Há uma rigorosa correspondência entre a profundidade da crise e a capacidade de governo dos países individualmente. São os países politicamente menos estáveis e com instituições menos credíveis, com níveis de instrução e de legalidade mais baixos, aqueles a quem mais custa responder à crise."
Não se trata apenas das fortes resistências sociais às reformas, mas também do investimento. Explica Bastasin: "O mercado financeiro está ainda fragmentado e impedirá que os países débeis sejam premiados pelo afluxo de investimentos por parte dos países com excedente de poupança." Para estes países, o horizonte de pensamento deverá ser o "pós-troika".
Eixos e directórios
Uma União de 27 países tende a ficar refém dos Estados, dos interesses particulares e dos calendários eleitorais. Para organizar o conjunto sem avançar para um Estado federal, recorreu-se a "eixos" ou "directórios". O "eixo Paris-Berlim" foi a força estruturante até aos anos 1990. Funcionou bem até à reunificação alemã e à retirada de Helmut Kohl e Mitterrand. Thatcher chegou a propor a Miterrand uma entente para conter a Alemanha reunificada.
Quando o "eixo Paris-Berlim" deixou de funcionar - e perante a perspectiva do alargamento da UE ao Leste - emergiu a ideia de um directório franco-germano-britânico, historia o analista alemão Hans Stark. Mas nunca foi efectivo. A Grã-Bretanha ficou fora do euro. Segue-se uma longa história de "eixos" - Paris-Londres, Paris-Berlim ou Londres-Berlim - para isolar o terceiro membro. Eram grandes as divergências, do financiamento à arquitectura da UE, passando pela defesa e pela relação atlântica. O "Merkozy" foi uma encenação, que satisfazia o orgulho francês e dava cobertura política aos alemães.
A opção britânica
O referendo britânico ilustra a contingência da política: "Cameron tinha de prometer o referendo para manter o controlo sobre o seu partido", anotou Grant. Depois, o assunto tornou-se num bumerangue que agora ameaça a sua própria sobrevivência. A aventura começou na cimeira de Dezembro de 2011, quando Cameron tentou vetar o Tratado Orçamental. Apenas os checos o seguiram. Os outros 25 celebraram o tratado. Londres foi derrotada.
Para os eurocépticos, foi a prova de que a UE passava a ser a zona euro e Londres seria marginalizada. Cameron jogou a cartada do referendo de forma hábil: a Grã-Bretanha não cederá mais nenhuma parcela da sua soberania sem consultar o povo. A Economist falou em chantagem: "Significa apostar que os outros membros da UE vão fazer-nos grandes concessões sabendo que, se não forem generosos, se arriscam a um "não" no referendo."
Em Fevereiro passado, houve um frisson: Merkel colocou-se ao lado de Cameron - e contra Hollande - no debate da redução do orçamento europeu. Logo se especulou sobre um "eixo Paris-Londres". O Süddeutsche Zeitung, de Munique, explicou que a atitude de Merkel era uma tentativa para "manter a Grã-Bretanha no centro da UE". Quer Londres na UE para contrabalançar as tentações proteccionistas francesas.
"A Alemanha rejubilou inicialmente por ter conseguido transferir as suas normas constitucionais para o escalão europeu. Mas considera-se cada vez mais vítima do seu sucesso", escreve Roderick Parkes num estudo do Instituto Francês de Relações Internacionais. O abandono da Grã-Bretanha não só enfraqueceria a Europa como desequilibraria ainda mais as relações Norte-Sul.
Segundo Parkes, Londres pensa em alternativas à ruptura com a UE. Tentaria criar uma "periferia flexível", atraindo escandinavos, bálticos e até Estados do Sul, instituindo uma cooperação a três, entre a Alemanha, a França e o Reino Unido. Ou seja, um "directório" numa Europa a "três velocidades".
Grant lembrou há dias que a GB pode ainda ajudar a reestruturar a UE. Há países do euro com quem Londres tem grandes afinidades e que tem desprezado. "Muitos parceiros valorizam o seu liberalismo, o atlantismo e a sua visão global."
E que faz no meio disto o euro? O recente inquérito do Pew Research revela que a UE é cada vez mais impopular, que os políticos perderam o crédito (excepto na Alemanha) mas que todos querem ficar no euro. O problema passa a interrogação: quem deve liderar a crise do euro, a reforma das instituições e a iniciativa de romper a inacção? Sabe-se que não pode ser apenas Berlim.
Por Jorge Almeida Fernandes in Público
26/05/2013
A incerteza atingiu o ponto máximo numa Europa "sonâmbula". À França em crise e a uma Alemanha que já duvida soma-se o risco do referendo britânico, que poderá mudar a arquitectura do continente.
Que têm em comum as crises francesa e britânica com a estabilidade alemã? Em si mesmas, muito pouco. Combinadas, determinam o futuro da Europa. A relação franco-alemã pesa decisivamente na gestão da crise do euro. O britânico Charles Grant, director do Center for European Reform, diz que há 50% de chances de que David Cameron não possa escapar a um referendo sobre a Europa na próxima legislatura. E se a Grã-Bretanha sair da UE, é a arquitectura do continente que mudará.
A França atravessa uma dupla crise, económica e política. A novidade é que pôs em causa as relações com a Alemanha, erigida em "bode expiatório" pela esquerda do Partido Socialista, que procura bloquear as reformas económicas de François Hollande. Se a esquerda está partida em torno da economia, a direita está politicamente fracturada desde a derrota de Nicolas Sarkozy. A gravidade da crise da direita é que pode abrir uma avenida eleitoral à Frente Nacional, de Marine Le Pen.
Na Alemanha, aguardam-se - normalmente - as eleições, sobre cujo desfecho não vale a pena especular. Em princípio, nada deveria mudar na política económica europeia de Berlim, objecto de um consenso de 30 anos entre democratas-cristãos e sociais-democratas e que envolve a esmagadora maioria da opinião pública. Pode, no entanto, acontecer que essa política deva ser "flexibilizada", caso a recessão se agrave no conjunto da Europa - o que é grave para a própria economia alemã. No primeiro trimestre do ano, a Alemanha teve um anémico crescimento de 0,1%, os investimentos das empresas diminuíram e o comércio externo pouco efeito teve sobre o crescimento.
O horizonte "pós-troika"
Hollande sanou imediatamente o incidente com Berlim, fazendo um conjunto de propostas e garantindo a Merkel a opção francesa por uma "união política" - embora não diga o que entende por isso, supondo-se que a use num sentido mais restritivo do que Berlim.
Frisa um analista que, de qualquer forma, as propostas de Hollande a Merkel - como a de um governo económico até 2015 - "abrem um novo debate constitucional na Europa". Havia evidentes sinais de travagem da integração, com os próprios alemães a querer esperar o desfecho do referendo britânico de 2017.
Edmond Alphandéry, antigo ministro francês, avisa: "O clima melhorou consideravelmente nos mercados financeiros. [Mas] o risco do euro desloca-se hoje para o campo político. Os países do Sul vão continuar a aceitar os sacrifícios que lhes pedem?" O mesmo pode ser dito dos países do Norte. Até que ponto, perante as recessões, privilegiarão uma solução comunitária ou serão tentados por uma solução "egoísta"? O grande problema europeu, frisa o britânico Gideon Rachman, é a "ruptura de confiança" entre o Norte e o Sul - por divergência de interesses, mentalidades e preconceitos.
A crise não se reduz ao problema da dívida e à austeridade. Exige reformas. "A guerra, escreve o economista italiano Carlo Bastasin, deve ser ganha, antes de mais, no interior de cada país ou então nunca teremos a paz. Há uma rigorosa correspondência entre a profundidade da crise e a capacidade de governo dos países individualmente. São os países politicamente menos estáveis e com instituições menos credíveis, com níveis de instrução e de legalidade mais baixos, aqueles a quem mais custa responder à crise."
Não se trata apenas das fortes resistências sociais às reformas, mas também do investimento. Explica Bastasin: "O mercado financeiro está ainda fragmentado e impedirá que os países débeis sejam premiados pelo afluxo de investimentos por parte dos países com excedente de poupança." Para estes países, o horizonte de pensamento deverá ser o "pós-troika".
Eixos e directórios
Uma União de 27 países tende a ficar refém dos Estados, dos interesses particulares e dos calendários eleitorais. Para organizar o conjunto sem avançar para um Estado federal, recorreu-se a "eixos" ou "directórios". O "eixo Paris-Berlim" foi a força estruturante até aos anos 1990. Funcionou bem até à reunificação alemã e à retirada de Helmut Kohl e Mitterrand. Thatcher chegou a propor a Miterrand uma entente para conter a Alemanha reunificada.
Quando o "eixo Paris-Berlim" deixou de funcionar - e perante a perspectiva do alargamento da UE ao Leste - emergiu a ideia de um directório franco-germano-britânico, historia o analista alemão Hans Stark. Mas nunca foi efectivo. A Grã-Bretanha ficou fora do euro. Segue-se uma longa história de "eixos" - Paris-Londres, Paris-Berlim ou Londres-Berlim - para isolar o terceiro membro. Eram grandes as divergências, do financiamento à arquitectura da UE, passando pela defesa e pela relação atlântica. O "Merkozy" foi uma encenação, que satisfazia o orgulho francês e dava cobertura política aos alemães.
A opção britânica
O referendo britânico ilustra a contingência da política: "Cameron tinha de prometer o referendo para manter o controlo sobre o seu partido", anotou Grant. Depois, o assunto tornou-se num bumerangue que agora ameaça a sua própria sobrevivência. A aventura começou na cimeira de Dezembro de 2011, quando Cameron tentou vetar o Tratado Orçamental. Apenas os checos o seguiram. Os outros 25 celebraram o tratado. Londres foi derrotada.
Para os eurocépticos, foi a prova de que a UE passava a ser a zona euro e Londres seria marginalizada. Cameron jogou a cartada do referendo de forma hábil: a Grã-Bretanha não cederá mais nenhuma parcela da sua soberania sem consultar o povo. A Economist falou em chantagem: "Significa apostar que os outros membros da UE vão fazer-nos grandes concessões sabendo que, se não forem generosos, se arriscam a um "não" no referendo."
Em Fevereiro passado, houve um frisson: Merkel colocou-se ao lado de Cameron - e contra Hollande - no debate da redução do orçamento europeu. Logo se especulou sobre um "eixo Paris-Londres". O Süddeutsche Zeitung, de Munique, explicou que a atitude de Merkel era uma tentativa para "manter a Grã-Bretanha no centro da UE". Quer Londres na UE para contrabalançar as tentações proteccionistas francesas.
"A Alemanha rejubilou inicialmente por ter conseguido transferir as suas normas constitucionais para o escalão europeu. Mas considera-se cada vez mais vítima do seu sucesso", escreve Roderick Parkes num estudo do Instituto Francês de Relações Internacionais. O abandono da Grã-Bretanha não só enfraqueceria a Europa como desequilibraria ainda mais as relações Norte-Sul.
Segundo Parkes, Londres pensa em alternativas à ruptura com a UE. Tentaria criar uma "periferia flexível", atraindo escandinavos, bálticos e até Estados do Sul, instituindo uma cooperação a três, entre a Alemanha, a França e o Reino Unido. Ou seja, um "directório" numa Europa a "três velocidades".
Grant lembrou há dias que a GB pode ainda ajudar a reestruturar a UE. Há países do euro com quem Londres tem grandes afinidades e que tem desprezado. "Muitos parceiros valorizam o seu liberalismo, o atlantismo e a sua visão global."
E que faz no meio disto o euro? O recente inquérito do Pew Research revela que a UE é cada vez mais impopular, que os políticos perderam o crédito (excepto na Alemanha) mas que todos querem ficar no euro. O problema passa a interrogação: quem deve liderar a crise do euro, a reforma das instituições e a iniciativa de romper a inacção? Sabe-se que não pode ser apenas Berlim.
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