Por José Manuel Fernandes in Público
31/05/2013
A ideia de Sampaio de que a oposição "tem de encorpar" lembra o intervencionismo dos nossos monarcas liberais no tempo do "rotativismo"
Uma boa parte dos portugueses parece ter uma irresistível atracção por soluções mágicas. Sobretudo quando os problemas se revelam muito difíceis de resolver. A mais recente dessas ilusões é a de que bastaria demitir o Governo, dissolver a Assembleia e convocar eleições para boa parte das nossas dores de cabeça desaparecerem. O Inferno actual seria substituído por uma espécie de Paraíso onde um delicodoce Seguro apascentaria um país de repente capaz de refazer consensos e, claro, de viver sem austeridade. Nada nesta visão idílica resiste a cinco minutos de análise fria. Pior: tudo, ou quase tudo, nesta proposta deriva de uma visão autoritária da democracia e da ideia de que há, em Portugal, uns que são donos do regime e outros os seus eternos enjeitados.
Dois dos principais advogados deste passe de mágica são - o que é muito significativo - ex-Presidentes da República: Mário Soares, de forma assumida e tonitruante; Jorge Sampaio, de forma sibilina e melíflua. O primeiro, contrariando o que defendeu uma vida inteira, vê em cada manifestação de rua uma prova de que o Governo deixou de ser legítimo e deve ir embora, o que só não fará por "teimosia", como esta semana voltou a escrever. O segundo só hesita sobre o tempo que se deve esperar para que a oposição "encorpe".
Há contradições insanáveis nos raciocínios que suportam este passe de mágica. A começar pelo facto de defenderem, às vezes na mesma frase, que é preciso tratar do problema nacional demitindo um Governo que detestam, isto apesar de nenhum dos nossos problemas ter solução nacional, antes uma solução europeia. Ou seja, ao mesmo tempo que defendem que só mudando as políticas europeias é possível mudar as políticas nacionais, acham que outro Governo em Portugal, sem que nada mude na Europa, era suficiente para acabar com a austeridade. Faz sentido? Não. Mas isso parece não contar no seu entusiasmo revolucionário.
A questão de fundo é simples: será que Portugal, como país, tem margem de manobra para escolher entre políticas de austeridade e políticas não se sabe bem de quê? Não tem, e não apenas por causa do memorando de entendimento. Portugal está como todos os endividados: à mercê dos credores. Não apenas porque tem dívidas, mas porque continua a contrair mais dívidas. Na verdade, como notou esta semana Daniel Bessa - uma voz sozinha no deserto - saudar um eventual alívio das metas do défice é saudar ainda mais endividamento. Ora para termos quem nos empreste dinheiro - coisa que não tínhamos antes de a troika chegar - temos de cumprir as condições que nos impõem. A margem de manobra das nossas oposições é ainda menor do que a do senhor Hollande ou mesmo do senhor Rajoy: mal chegaram ao poder, tiveram de se submeter à realidade dos números, com os resultados que se conhecem.
O segundo erro do raciocínio é a convicção de que outros negociariam melhor. É uma convicção extraordinária, já que foram esses "outros" - neste caso, o PS - que negociaram o primeiro memorando, o pior de todos, o que tinha metas mais apertadas e o que mais se enganou nas previsões. Não se vê como um PS com quem a troika nem queria falar da última vez que esteve em Portugal - foi ao Largo do Rato a pedido expresso do Governo, e não o contrário - poderia, depois de eventuais eleições, fazer a negociação que antes não fez e que nem outros países mais poderosos conseguiram. O mais certo seria António José Seguro esborrachar o nariz contra a parede imensa das nossas dívidas e dos nossos irrestritos gastos públicos.
É bom ser claro e não alimentar ilusões: este Governo tem pouca margem de manobra porque o país não tem margem de manobra e nenhuma eleição mudará esse estado de coisas. Pelo contrário: o risco maior é que possa agravar tudo, pois paralisaria todas as reformas, atiraria para as calendas de 2014 a aprovação do Orçamento desse ano, aumentaria ainda mais a acrimónia política e, sobretudo, tornaria ainda mais imprevisível o futuro, tornando ainda mais improvável qualquer investimento produtivo e mais impossível o desejado regresso aos mercados. Iríamos directamente para um segundo resgate, "à grega". Ou seja, se estamos mal, ficaríamos pior.
Gostemos ou não, temos de beber até ao fim o cálice do memorando da troika e esperar que ele não dure para lá de 2014. E não se duvide de que, politicamente, quem mais sofre com esse processo é o Governo e os partidos que o apoiam.
Podemos discutir se o país ficava melhor se fôssemos para eleições antecipadas, mas não devíamos defender a dissolução da Assembleia com argumentos que violam os princípios da democracia representativa. É bom não esquecer que a legitimidade de um Governo não deriva das sondagens, das manifestações de rua ou das flash mobs da Grândola - a legitimidade de um Governo, no nosso regime constitucional, deriva do apoio parlamentar que tem. Achar que se pode remover, por razões políticas, um Governo que dispõe de apoio maioritário no Parlamento - como já sucedeu uma vez -, corresponde a uma entorse grave às regras da democracia e ao princípio da representação.
Isso é tanto mais verdade quanto, desde a revisão constitucional de 1983, o Governo não responde politicamente ao Presidente da República. Por isso só em situações onde não é possível encontrar no Parlamento coligações maioritárias ou, em alternativa, benevolência face a executivos minoritários, se deve violar o princípio de que os ciclos eleitorais de quatro anos são para cumprir, não para interromper de acordo com uma qualquer interpretação do que será a vontade popular. Ninguém, nas democracias avançadas da Europa ou dos Estados Unidos, imaginaria sequer o contrário, mas em Portugal há quem o defenda abertamente.
É aqui que entra Jorge Sampaio, autor de uma das mais lamentáveis intervenções em todo este debate. Na sua óptica, o Presidente derrubar ou não o Governo não decorre de esse ter ou não apoio maioritário no Parlamento, mas de a oposição ter "encorpado" o suficiente para ser alternativa. É uma maneira de olhar para os poderes constitucionais do Presidente que me fez lembrar os tempos finais da monarquia, quando o rei dissolvia o Parlamento e só convocava eleições quando entendia que a alternativa política que preferia já tinha "encorpado" o suficiente. Na época, chamava-se a esse período governar em ditadura (com o Parlamento fechado) e a diferença é que quem o Rei chamava para primeiro-ministro era quem governava no intervalo e organizava as eleições. Na altura, o tempo até à ida às urnas era utilizado para organizar a cacicagem eleitoral (não por acaso, nunca um primeiro-ministro em funções perdeu eleições em Portugal até à derrota de Santana Lopes em 2005); hoje, esse tempo de espera deve antes ser gerido até a oposição "encorpar" (sabendo-se, como se sabe, que em países sob intervenção é a oposição que ganha as eleições, como se tem visto por essa Europa fora).
Haverá um tempo em que este Governo será julgado pelos eleitores - e será, quase inevitavelmente, um julgamento severo. Mas deve ser o tempo certo, a não ser que a actual maioria se autodestrua antes. É essa a regra constitucional, em Portugal e na maioria das democracias europeias. Uma regra que não depende de leituras subjectivas sobre o que os Governos estão a fazer e ainda menos das preferências presidenciais ou da consistência das oposições. Já não é fácil governar Portugal, ainda é mais difícil, em Portugal ou noutro lugar qualquer, seguir políticas impopulares, mesmo quando necessárias. Imagine-se agora que todo e qualquer Governo, com ou sem maioria, ficava nas mãos da leitura que o Presidente fizesse das sondagens, das manifestações e do "encorpamento" das oposições, podendo ser demitido a qualquer momento. Nessa altura, teria triunfado de vez a demagogia sobre a democracia, o populismo sobre o sentido de Estado, a instabilidade sobre a governabilidade.
P.S.: Alguns leitores entenderam que, no artigo da semana passada, se sugeria que Medina Carreira seria um dos responsáveis pela situação actual, quando era o contrário que aí se defendia. Aqui fica o esclarecimento, para afastar quaisquer dúvidas.
Enquanto Soares falava de Cavaco, a assistência vaiava o actual Presidente chamando-o de "palhaço" |
Por Nuno Sá Lourenço in Público
31/05/2013
Dos oradores, só a bloquista e o comunista assumiram o "desafio" de fazer um "Governo de esquerda". Soares avisou Cavaco que manter apoio ao Governo torná-lo-ia "responsável pela perda de pacifismo" dos portugueses
Não trocaram muitas palavras enquanto esperavam pelo início, mas só o facto de estarem lado a lado sinalizava a diferença que representava a conferência Libertar Portugal da Austeridade, ontem realizada na Aula Magna, em Lisboa. Sentados na primeira fila, estavam o ex-secretário-geral do PS Ferro Rodrigues e o histórico comunista Domingos Abrantes. Minutos antes, Vasco Lourenço, um dos capitães de Abril e responsável da Associação 25 de Abril, reconhecia isso mesmo. "Só o facto de virem aqui dizê-lo [não à austeridade e ao Governo] no mesmo local, à mesma hora, é sinal de que uma primeira barreira foi quebrada". E, contudo, apesar da conquista da "união" na "sessão", havia um desafio subliminar que ia para lá do "denominador comum" que a todos ali juntava. E que, quem fez questão de marcar presença, assumia exigir aos partidos. "Os partidos de esquerda têm que se entender de uma vez por todas", resumia Carlos Monjardino antes de entrar na Aula Magna.
Pilar del Rio, viúva de José Saramago e uma das promotores da iniciativa, admitia essa pretensão, mas com uma outra base de partida. "O que eu pretendo é que se desperte a consciência cívica em Portugal, que os cidadãos se levantem e perguntem aos partidos: "Estão aí a fazer o quê?" Se os cidadãos o reclamarem, os partidos terão de responder."
Garcia Pereira, do PCTP/MRPP, reconhecia esse desafio e que era necessário esse passo em frente. "Estas forças [políticas] têm de se encontrar, discutir, saber transigir naquilo que é secundário", admitia o advogado. "A população está sedenta que isso aconteça", adiantava Vasco Lourenço, antes de lembrar que a obrigação dos partidos era "continuar o diálogo sem procurarem o que os divide": "E é necessário que todos os partidos percebam que houve razões para perderem credibilidade junto da população", rematou o militar.
A deputada do Bloco de Esquerda, Cecília Honório, assumiu o encargo dos partidos. "O Bloco responde à chamada", lançou a deputada quando falava de "convergência" à esquerda. A bloquista defendeu a necessidade de construir um outro compromisso político à esquerda. Assumiu o "desafio" do "Governo de esquerda", para depois definir as "fronteiras": "Não há alternativa com memorando e com austeridade". "O que foi roubado terá de ser devolvido", alertou, sendo a proposta recebida com os aplausos da assistência.
"Tudo o que foi roubado tem mesmo que ser devolvido", repetiu o eurodeputado comunista João Ferreira quando definia as condições para se conseguir "um Governo capaz de concretizar" uma "alternativa política" de esquerda. Outras condições definidas foram a recuperação "dos instrumentos de soberania económica", a "rejeição imediata do programa da troika", e a renegociação, incluindo a recusa da componente "ilegítima da dívida".
As intervenções evitaram, no entanto, esse passo em frente. Mas Mário Soares, que iniciou as hostilidades, acabou por furar o guião ao encostar seriamente o Presidente da República à parede. Ainda o antigo chefe de Estado não tinha apelado para que Cavaco Silva deixasse de "considerar o Governo legítimo", já a assistência que enchia a sala o vaiava. E o chamava de "palhaço". Foi então que Soares deixou um aviso ao Presidente. Ao sustentar o Governo, corria um risco: "Será responsável pela perda de paciência e pacifismo dos portugueses e por que o povo se torne mais violento."
O socialista Ramos Preto foi mais disciplinado. Criticou as metas falhadas do Governo, lembrou as propostas do PS e defendeu eleições antecipadas: "É imperioso mudar as políticas e, como o Governo se revela incapaz de o fazer, então há que mudar o Governo", disse, já depois de classificar a equipa de Passos Coelho como "um Governo que actua com reserva mental e não pode ser levado a sério".
Maria do Rosário Gama, da Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRe!), também não foi longe. Centrou a sua intervenção no ataque às políticas de austeridade do Governo. E defendeu que se fosse "buscar o dinheiro onde ele está", ou seja, nas parcerias público-privadas e nos off-shores. Sem deixar de apoiar uma "renegociação mais profunda" do ajustamento português, através do perdão da dívida.
Pilar del Rio, viúva de José Saramago |
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