O prime-time é o novo purgatório das almas maltratadas pelos eleitores, da legião dos aspirantes a serem marceletes
Serei só eu quem já não suporta o desfile dos políticos-comentadores pelas nossas TV?
Por José Manuel Fernandes in Público
24/05/2013 -
Esta semana tentei fazer um exercício que sabia ser penoso: ouvir os políticos-comentadores que pululam nas televisões. Foi ainda mais penoso do que imaginava. Um atrás de outro fui vendo desfilar os veteranos e os novatos, de Marcelo a Ferreira Leite, passando por Sócrates e Santos Silva, sem esquecer Marques Mendes ou Louçã. Não consegui ver todos de fio a pavio e, por vezes, não tive energia para aguentar as arengas até ao fim. O que vi chegou para confirmar a impressão que vinha formando face a tal onda de "analistas": na maior parte dos programas não só não se aprende nada como, em certo sentido, se desaprende. Mais: com tal avalanche de políticos a ocupar os horários nobre das televisões é o próprio debate público e o esclarecimento dos cidadãos que saem prejudicados. Esta moda tem um precedente: Marcelo, "o professor". Só que Marcelo é uma mistura de político e jornalista, de professor e de entertainer sem paralelo ou imitação possível. Os seus programas, mesmo quando adapta a narrativa às suas conveniências, acrescentam informação e são divertidos. Ele não está ali só à espera de poder regressar à política, nem foi para ali lamber as feridas de um qualquer desaire partidário. Às vezes irrita, a maior parte das vezes diverte, quase sempre tem momentos interessantes.
Mas Marcelo só há um. Aqui ou na maior parte dos países que conheço. É um sucesso muito pessoal que pouco tem a ver com notoriedade política, como se verifica olhando para o fiasco de audiências que está a ser protagonizado por Sócrates, que mal reúne um terço dos espectadores do "professor" e às vezes nem consegue superar a audiência do telejornal da RTP. Mesmo assim não faltam candidatos a novos Marcelos, de Marques Mendes a Morais Sarmento, para não falar de legião de outra figuras que desfilam nas televisões por cabo.
Nas televisões portuguesas, de acordo com um levantamento deste jornal, existirão 69 horas semanais de comentário político - dez horas por dia. Dois terços dos comentadores com presença semanal, de acordo com o mesmo levantamento, são ou foram políticos. Um desvario que a situação de crise que vivemos não justifica, pelo contrário.
A maioria esmagadora destes programas - há excepções, como a Quadratura do Círculo, um fenómeno de longevidade comparável ao de Marcelo - é apenas aquilo que pretende ser: uma repetição de argumentos partidários destilados em formato de circo, quando se imita o Parlamento, ou em variação de espectáculo a solo. Dos "debates" em modelo de miniparlamento nada se deve esperar para além do que se esperava das lutas de gladiadores na Roma Imperial: alguns socos, uma dose q.b. de frases grandiloquentes e novo encontro na semana que vem. É um formato televisivo tão fácil como desinspirador e repetitivo. Quando não indigente. Já as novas "estrelas" do comentário político fogem destas arenas e preferem a modalidade das entrevistas semanais com perguntas combinadas de antemão. São espaços que funcionam como uma espécie de purgatório de almas maltratadas pelos eleitores, palco de todos os que ambicionam vir a ser os novos marceletes desta nossa paróquia.
Um dos equívocos deste modelo é que ele confunde comentário e análise política com opinião mais ou menos partidarizada. O interesse do comentário e da análise política é o de procurar explicar a política ao grande público, é o de tentar fornecer aos cidadãos grelhas de leitura que lhes permitam avaliar melhor a acção dos políticos. É por isso que devem ser feitos por pessoas que estão fora do jogo político (o que não quer dizer que não tenham ideias e opiniões), isto é, por pessoas que não têm um interesse directo nos assuntos que comentam. Daí preferir-se, nos países civilizados, a distância dos académicos ou dos jornalistas à ilusão de eloquência dos políticos na semi-reforma. Até porque, com poucas excepções, os políticos tendem a repetir os argumentos dos políticos e a agenda dos partidos, o que é pouco e é pobre.
Mas estes programas não se limitam apenas a ser repetitivos. Eles geram também eleitos perversos. Os nossos comentadores-políticos sabem que não podem ser apenas mais um entre muitos, intuem que não podem lutar apenas pela atenção das suas audiências e conhecem a importância de dar nas vistas. Um comentador-político torna-se notado não pela profundidade de uma reflexão mas pela acutilância de um soundbite. Foi o que aprenderam a fazer nas lides partidárias, é isso que continuam a fazer nas televisões, disputando agora a atenção dos jornalistas à procura de frases sonoras que dêem um título. Há quem se esmere neste exercício reforçando a frase sonora com uma notícia em primeira mão, mesmo quando isso implica violar deveres éticos (como sucedeu recentemente com Marques Mendes e a sua "antecipação" do Conselho de Estado), mas esse é o custo de se ser aspirante a Marcelo.
O resultado desta cacafonia é um afunilamento do debate público, é a sua redução à mera caricatura. Isso começa nos miniparlamentos de anedota e culmina na necessidade que muitos destes protagonistas têm - mesmo alguns que acharíamos insuspeitos, como Ferreira Leite - de levantar a voz para se fazerem notados, no fundo de carregarem nas tintas para chamar a atenção do jornalismo de recados e títulos sonantes. O bom senso e o argumento ponderado não são uma virtude neste campeonato desmiolado, antes um defeito mortal.
Esta nova modalidade da ditadura dos partidos não é apenas um atentado ao jornalismo - é também, infelizmente, um retrato do jornalismo que temos. É mais fácil, mais cómodo, andarmos todos atrás de citações sonantes de políticos - e nada melhor do que sentá-los num estúdio para garantir que teremos uma corrente infinita e acessível de soundbites -, do que procurarmos vozes originais, perspectivas diferentes, outros olhares, outras interpretações. Servir de pé-de-microfone a um Mendes, um Vitorino, um Bagão, um Sócrates, mesmo um Marcelo, deixando-lhes as deixas para passarem à diatribe seguinte, é muito mais fácil do que preparar uma conversa com um historiador, um sociólogo, um filósofo, mesmo um gestor. Basta ficar pelos lugares-comuns que os comentadores-políticos também ficarão pelos lugares comuns.
Não deixa, por fim, de causar enorme perplexidade que os responsáveis editoriais de todas as televisões tenham achado que as melhores pessoas para comentar a crise em que estamos sejam alguns dos responsáveis por essa mesma crise. Uns mais, outros menos, mas poucos podem escapar a essa responsabilidade. E ainda menos dizer, como Medina Carreira, que avisaram a tempo e horas. Mas nunca ninguém lhes lembra como têm telhados de vidro.
Só temos a perder com este afunilar do debate público, com a sua captura pela agenda dos partidos e pela gerontocracia do regime, com a repetição ad nauseam de argumentos e falácias, com esta corrida dos comentadores pela popularidade. Numa altura em que a opinião pública procura explicações e respostas, a preguiça dos jornalistas serve-lhe frases feitas e rostos gastos e cansados.
O que se passa, é bom dizê-lo com clareza, não é culpa de muitos destes comentadores. É sobretudo culpa de todos os jornalistas que abdicam de o ser, que vivem na ilusão das audiências (quando estão a destruí-las) e que se alimentam do mesmo tipo de intriga e do mesmo catálogo de certezas que a corte partidocrática. Apesar de tudo há melhor e mais estimulante nas elites portuguesas do que o cardápio que nos servem as televisões.
P.S.: Para que não restem dúvidas nem se especule: comentei e comento nas televisões, mas nunca tive nem tenho um contrato pago como comentador. E este texto, como tantos outros que escrevi, não me granjeará mais amigos nas televisões, pelo contrário.
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