Ligações perigosas: género, família e anti-semitismo
Análise Jorge Almeida Fernandes / 9 fev 2014 / Público
Está a França a regressar aos
sombrios anos 30? Está a nascer uma variante francesa do Tea Party americano?
Vamos por partes. No domingo 2 de Fevereiro, mais de 100 mil
pessoas manifestaram-se em Paris e Lyon contra o projecto de lei de família e a
alegada “familiofobia” do Governo de François Hollande. A manifestação tinha
como alvos principais “a procriação medicamente assistida (PMA)” para casais de
mulheres e a “gestação para outrem (GPO)”, vulgo “barrigas de aluguer”. Os
repórteres anotaram um temor comum dos manifestantes: “Estamos perante uma
mudança de civilização que vai transformar a família.” No dia 4, Hollande
ordenou o adiamento sine die do debate da lei. Meteu-a na gaveta.
A decisão dilacerou uma parte dos deputados socialistas que
falaram em “debandada”, “renúncia” ou “capitulação”. “Uma parte da esquerda —
entre os socialistas e verdes, nas associações feministas ou homossexuais — vai
sentir-se traída”, escreveu o Monde. Um conselheiro presidencial disse ao
jornal que a lei levaria a mais um interminável debate “societal” que
prejudicaria “a prioridade económica e social”.
O ministro do Interior, Manuel Valls, assumiu a defesa da
decisão. “O Presidente tem razão em procurar o apaziguamento. Não podemos
fingir ignorar que o debate sobre o ‘casamento para todos’ e a filiação deixou
marcas. Numa sociedade fracturada, François Hollande decidiu evitar debates
descontrolados que representariam um vector suplementar de perturbação nos
próximos meses.” E deu uma garantia: o Governo opor-se-á às emendas
parlamentares que visem introduzir a PMA ou “as barrigas de aluguer”. As
manifestações de católicos conservadores, muitos deles integristas, remontam à
aprovação do casamento gay em 2013. Vários colectivos, independentes dos
partidos, lançaram o movimento Manif pour Tous (manifestações para todos). A
Igreja Católica manteve-se à parte. A 19 de Janeiro houve uma “marcha pela
vida” contra o aborto. No dia 26 foi convocado um “dia da cólera” contra
Hollande que reuniu algumas dezenas de milhares de pessoas. A acção foi
parasitada por grupos de extrema-direita ou por amigos do comediante anti-semita
Dieudonné. Grupos de manifestantes gritaram slogans como: “Judeu, a França não
é tua.” “CRS, polícia de judeus.” “Morte aos sionistas.” Etc. Houve uma
comoção. O antigo ministro Robert Badinter lembrou que, desde o fim da ocupação
nazi, nada de semelhante se ouvira em França. Apelou a um sobressalto
republicano.
No dia seguinte, Ivan Rioufol, um dos mais influentes
colunistas de direita e simpatizante do Manif pour Tous, escreveu no seu blogue
no Figaro: “Este ‘dia da cólera’, o primeiro de uma possível série,
descredibilizou-se definitivamente. (...) Revelou a face repugnante de uma
França fascitóide.”
Mas o discurso de dramatização com maior eco partiu do
ministro Valls. Numa entrevista ao Journal du Dimanche, publicada no dia 2
(horas antes da manifestação), declarava: “Assistimos à constituição de um Tea
Party à francesa.” Denunciava “uma fronda dos anti: antielites, antiEstado,
anti-impostos, antiParlamento, antijornalistas.” E, sobretudo, “de
anti-semitas, racista e homófobos”. “É a primeira vez, desde há longos tempos,
que se grita o ódio ao judeu.”
“Explorando a crise de projecto e de liderança da direita,
perante o recentramento da Frente Nacional, libertou-se uma direita
conservadora e reaccionária. Com a oposição ao casamento gay, decuplicou as
suas forças. Ocupa a rua porque considera que a esquerda no poder não é
legítima.” E lançou um desafio à oposição: “Perante este fenómeno, a direita
republicana tem uma responsabilidade: demarcar-se claramente de movimentos que
não aceitam a democracia e as escolhas do Presidente.” Atribuiu a
responsabilidade a “grupúsculos” e a intelectuais reaccionários e
antirepublicanos.
No dia seguinte, o diário britânico The Independent titulava
em manchete no seu online: “Política do ódio em França. Manifestações pelos
valores da família tradicional em risco de ficarem reféns de anti-semitas e
nacionalistas homofóbicos.”
Note-se que a Frente Nacional, de Marine Le Pen, não se
integrou nesta “direita reaccionária”. As questões “societais” são um tema que
a incomoda, sobretudo no momento em que está apostada nos temas sociais e na
campanha para as eleições europeias. Antes poderá beneficiar do desgaste do
Governo e do embaraço da direita republicana. “Os partidos políticos parecem
completamente ultrapassados pelos acontecimentos”, declarou o politólogo Eddy
Fougier, no fim de Janeiro.
Para Jean-Yves Camus, estudioso das extremas-direitas, o
fenómeno traduz “a impressão dominante na franja mais à direita de que a
esquerda no poder trabalha sempre para minar as fundações tradicionais da
sociedade”. Há uma patente exasperação do eleitorado conservador. “O que é novo
é esta coligação de interesses, muito mais do que uma aliança, que se começa a
formar [e em que convergem católicos tradicionalistas e grupos de ultradireita].”
Mas o êxito da manifestação de 2 de Fevereiro — sem
anti-semitismo — pode voltar a separar as águas. O principal efeito desse
sucesso — prevê o Monde — é que o Manif pour Tous entende passar a pesar sobre
a política familiar e educativa do Governo. A “ideologia do género” tornou-se
hegemónica nas universidade e nos media de grande parte da Europa Ocidental.
Domina também na bancada parlamentar socialista. Os projectos da sua difusão na
escola e a sua marca no projecto da lei da família são encarados como
tentativas de diluir os laços entre pais e filhos e como intromissão abusiva do
Estado na sociedade e no privado. Uma parte dos argumentos podem ser
“fantasmas”. Mas tal não impede a percepção de uma política de “desconstrução
das identidades sexuais” desde a infância, o que pode ter efeitos políticos
explosivos.
O “casamento para todos” era a 31.ª das 60 promessas
eleitorais de Hollande. No entanto, foi a primeira medida “fracturante” a ser
realizada e de forma menos consensual do que noutros países europeus. Porquê?
Escreveu na altura o politólogo Laurent Bouvet: “Em primeiro lugar porque
permitia mascarar os desacordos, por vezes profundos, no seio da esquerda sobre
a política económico-social.” Redundou num “movimento social” contra Hollande.
Na crise de hoje, poderá haver dois vencedores. O primeiro
será o ministro Valls, “bête noire” da “esquerda ‘societal’” do PSF, que
definiu a “narrativa política”. O segundo, e talvez o principal, o Manif pour
Tous, que terá ganho uma espécie de direito de veto na política da família.
France’s politics of hatred: Move towards traditional
family values risks being hijacked by anti-Semites and homophobic nationalists
Calls for a return to
traditional, conservative family values are being hijacked by anti-Semites and
homophobic nationalists, prompting fears that the ‘disturbing’ politics of the
1930s are back
JOHN LICHFIELD / PARIS Monday 03 February 2014 / The Independent / http://www.independent.co.uk/news/world/europe/frances-politics-of-hatred-move-towards-traditional-family-values-risks-being-hijacked-by-antisemites-and-homophobic-nationalists-9102851.html?origin=internalSearch
The stark warning by the interior minister, Manuel Valls,
jarred with the prosperous, well-behaved ranks of most of yesterday’s marchers,
including thousands of elderly people and families with children in
push-chairs.
However, two groups of hard-right thugs were arrested as
they attempted to join the protest. Scuffles broke out on the Avenue Raspail
last night between riot police and about
200 hard-right youths giving Hitler salutes. They threw beer bottles at
the police, who responded with tear gas.
Yesterday’s warning by Mr Valls of “sombre forces” at work
in France followed a similar but smaller demonstration last week which
dissolved into running battles with riot police. Several large sections of
protesters on that march carried anti-Semitic banners and chanted “Jews out of
France”.
There was no sign of such banners at yesterday’s
demonstration – nominally the 15th protest against the law passed last summer
which made gay marriage legal in France. Yesterday’s march, which attracted
about 200,000 people (the organisers claimed 500,000 attended), turned instead
into a much wider protest against the alleged “familyphobe” policies of the
left-wing government of President François Hollande.
Many marchers said they were protesting against the
“conspiracy” of the government, and the “gay” and “feminist” lobbies, to
brainwash primary school pupils into forgetting that they were boys and girls.
In recent months an apparently baseless conviction that something called
“gender theory” is to be imposed in France has been created by a de facto
alliance of fundamentalist Catholics and ultra-right wing, anti-Semitic and
anti-gay nationalists.
AN ACT OF CRUELTY: AN AUDIENCE WITH DIEUDONNÉ M'BALA M'BALA,
THE MAN BEHIND THE 'QUENELLE' SALUTE
One banner on yesterday’s march read, bizarrely: “Gender.
Never, never, never.” Another read: “The school should instruct. Only the
family should educate.”
Mr Valls said in a newspaper interview yesterday: “We are
witnessing a union of extremes, never before seen in France… [Last week] was the
first time for a long time that people have screamed their hatred of Jews in
the street.
“A block of protest is forming, a rebellion which is
anti-elite, anti-state, anti-tax, anti-parliament, anti-press … but also, and
above all, anti-Semitic, racist and homophobe.”
Mr Valls is playing with fire. Most of the people on
yesterday’s march – and many of the protesters at last week’s “day of anger” –
were radical Catholics or conservatives: anti-gay, perhaps, but not anti-Semite or anti-Republican.
One protester, Alain, 67, a businessman, said: “Valls thinks that he
can contain these protests by painting us all as dangerous extremists. When I
was young, every left-winger was accused of being a communist. Now, to this
government and the mainstream media, every right-winger is a fascist.”
And yet Mr Valls also has a point. France’s economic
sufferings are fusing with contempt for President Hollande to dissolve barriers
between radical, but respectable, conservatism and violent, new extremes (even
more extreme than the National Front). This, in itself, is reminiscent of the
poisonous politics of France in the 1930s.
Centre-right and even far-right politicians, such as the
National Front’s Marine Le Pen, are torn between condemning and trying to
channel the new radicalism. One name connects a number of recent events or
phenomena, including the rise of the anti-Semitic comedian Dieudonné M’bala
M’Bala and the anti-Jewish banners and chanting on last week’s march. It also
arises in connection with a recent obscene internet and text campaign which
persuaded hundreds of French parents that the government wanted primary school
children to masturbate in class.
The common factor is Alain Soral, a 55-year-old Franco-Swiss
ex-communist who preaches a new and virulent form of French nationalism. His
declared aim is to unite poor people – white, brown and black – in a revolt
against the “dictatorship” of capitalists, progressives, Jews and gays. Mr
Soral, an avowed anti-Semite and “national socialist”, is Dieudonné’s political
guru. He was long regarded as a marginal figure. No more.
Mr Valls accused him yesterday of creating a new “abscess of
rampant hatred” in France. “Alain Soral, through his use of the net, the
networks he has created, is uniting and federating an unprecedented front of
extremes,” Mr Valls said.
Mr Soral had no connection with yesterday’s march. It was
mischievous of Mr Valls to imply that he did. But many of yesterday’s marchers
nevertheless swallow wholesale the distortions pedalled by Mr Soral and by
Catholic extremists in recent months on “la théorie du genre” – or gender
theory. They demanded the withdrawal of a pilot programme in four areas of
France which seeks to steer primary school boys and girls away from gender
stereotypes.
This apparently modest programme consists of trying to
persuade girls that they can perfectly well drive tractors and boys that they
can be ballet dancers if they want to. Harmless? Not as far as the marchers
were concerned.
Adèle, 42, demonstrating with her three small children
yesterday, said: “What they are really trying to do is to destroy the family.
It is all part of the same plan as the gay marriage law, to impose a completely
new set of values on French society.”
It was this programme which was the subject of the obscene
rumour spread by text and online a few days ago by Mr Soral’s lieutenant,
Farida Belghoul. Texts, tweets and emails persuaded hundreds of mostly black
and Muslim parents that there would be masturbation and cross-dressing in primary
schools.
More moderate protesters against gender theory have been
slow to repudiate the nonsense disseminated by Mr Soral and his friends.
Béatrice Bourges is the spokeswoman for Printemps Français
(“French Spring”) one of the more radical groups behind yesterday’s march – and
last week’s. She is currently on hunger strike demanding the impeachment of Mr
Hollande by the national assembly.
She accuses the President of “bringing France to its knees”
morally as well as economically – not because of his alleged affair with an
actress but by “perverting the school system” to “destroy our families”.
One of France’s most popular conservative columnists, Ivan
Rioufol, of Le Figaro, accused Ms Bourges and other radical Catholics this week
of “undermining their own credibility” and “playing into the hands” of the
government by failing to erect firewalls between their movement and racist,
“plot-obsessed” extremists.
Ms Bourges told The Independent that she tried to stop the
anti-Semitic outbreaks last week. She said she had “never met this man Soral”.
But she refused to repudiate the campaign which persuaded hundreds of parents
to take their children out of school.
“It performed a useful function in drawing attention to the
dangers of gender theory and what the government is trying to do to the family
in this country,” she said.
"Jour
de colère", l'exemple à ne pas suivre
Par Ivan Rioufol le 27 janvier 2014 13h50 | http://blog.lefigaro.fr/rioufol/2014/01/jour-de-colere-lexemple-a-ne-p.html
Renvoi d’ascenseur : Dieudonné est devenu le meilleur allié
de Manuel Valls, qui lui-même s’est révélé être son meilleur impresario. Fort
de sa posture antisystème, maladroitement offerte par le ministre de
l’Intérieur qui en a fait l’homme à abattre, l’humoriste avait appelé à
participer, dimanche à Paris, au "Jour de colère". Il a profité de la
troublante indifférence des organisateurs, et singulièrement de Béatrice
Bourges, la meneuse du "Printemps français". Ce qui aurait pu être un
légitime mouvement protestataire, un de plus, de la société civile s’est
transformé alors, sous l’impulsion des amis de Dieudonné et avec la connivence
de courants extrémistes, en une indéfendable manifestation de vulgarité et de
haine contre les juifs, les francs-maçons, les médias, j’en passe. Retenu par
un colloque (sur l’antisémitisme !), je n’ai pu me rendre sur place. Mais les
récits que j’ai recueillis ce lundi matin, ajoutés aux vidéos que j’ai
visionnées et aux comptes rendus de la presse, ne laissent aucun doute sur le
piège qui a été tendu à ceux qui voulaient, de bonne foi, exprimer
l’exaspération d’une France oubliée. Ce "Jour de colère", qui a
mobilisé quelques dizaines de milliers de personnes, a été pollué par les
slogans entendus : "Juif, la France n’est pas à toi !", "CRS,
police des juifs !", "Mort aux sionistes !", etc. Cette fois,
Valls a donc raison quand il dénonce la violence de "l’extrême droite et
l’ultra droite", même s’il ne s’aventure pas à décrire les vrais soutiens
"diversitaires" de Dieudonné. Les conclusions de ce gâchis doivent
être tirées sans plus attendre.
L’erreur serait évidemment de soutenir hâtivement, comme
beaucoup de télévisions l’ont fait dès hier soir, que l’ensemble des
manifestants seraient d’extrême droite et antisémites. Mais il faut constater
qu’il n’y a pas eu, non plus, de prises de distance affichées face à des
dérives qui étaient prévisibles à partir du moment où le prétendu drôle
appelait ses supporters à rejoindre les rangs. C’est pourquoi ce "Jour de
colère", premier d'une possible série, s’est définitivement décrédibilisé,
sauf à s’enfermer désormais dans son monde complotiste. Les organisateurs, et
Béatrice Bourges en premier lieu semble-t-il, portent la responsabilité de leur
manque de vigilance : ils auraient dû savoir, au minimum, que de telles
manifestations, qui mettent en cause les pouvoirs politiques et médiatiques en
place, étaient attendues au tournant. En fait, une obligation d’exemplarité
s’impose à tous ces mouvements populaires et à tous ces Indignés qui en ont
assez d’être tenus pour quantité négligeable. Ceux-là ne sont ni des racistes
ni des casseurs comme La Manif pour Tous ou les Bonnets rouges l’ont déjà
démontré."Jour de colère" a dévoilé la face hideuse d’un France
fascistoïde. Il est l‘exemple à ne plus suivre. Laisser s’exprimer Dieudonné
est une chose. Il n’en reste pas moins infréquentable dans une manifestation.
En tirer la leçon pour l’avenir.
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