OPINIÃO
O que diria no congresso
JOSÉ PACHECO PEREIRA 23/02/2014 - 00:57 / PÚBLICO
Até que ponto o programa da troika, que o PSD ajudou a
delinear, não é o governo do PSD?
Na altura em que este artigo vai ser publicado está a
decorrer um congresso do PSD. Terá peripécias, como é habitual, e é natural que
algumas me digam respeito. Encontrar inimigos pode ser útil nestes tempos e não
há nada com uma boa vaia para animar as televisões.
Alguns dos que arrastaram a imagem do PSD pelas ruas de
amargura e lhe tiraram a honra perdida da governação, ou seja, de ser um
partido com prestígio de Governo, coisa que se perdeu quando se publicaram
comunicados a explicar se tinha havido ou não uma sesta do primeiro-ministro,
ou a fazer conferências de imprensa anunciando travessias do Tejo, em vésperas
de eleições, sem se saber se eram túneis ou pontes, são especialistas destes
números como o da "lei da rolha". Outros acham que a política é como
as touradas e que é "corajoso" é bramir, "então venham cá
mostrar-se, de peito feito, como forcados" para a gente lhes mostrar o que
pensa. Eu sei o que pensam e mais ainda, sei porque o pensam, e sei muito bem o
efeito devastador que tem num partido político este tipo de apelo clubístico. É
de política que se trata, não é de touradas, nem de futebol.
A comunicação social continua a falar de coisas que não
existem há muito tempo, como sejam "barões" e "senadores",
uma boa manifestação de ignorância sobre o que é o PSD nos nossos dias. Uns sabem muito bem
que para se falar num congresso tem que se ser delegado ou fazer parte dos
órgãos do partido, outros, como os jornalistas, deviam saber. Acresce que mesmo
assim há coisas que não se podem dizer em cinco minutos, nem provavelmente têm
ali o local ideal para serem ditas. "Medo" de falar num Congresso?
Batam por favor a outra porta, porque eu digo sempre as mesmas coisas,
espantem-se, seja na Aula Magna seja numa reunião ou debate partidário,
institucional ou público, como muitos militantes do PSD sabem muito bem, porque
me ouviram. Depois há o anátema de se falar nessa coisa maldita que é a
comunicação social. Muitos que se especializaram em fazer quotidianamente fugas
para a comunicação social, e são especialistas na intriga, também costumam
queixar-se de quem tem acesso à comunicação social, como se fosse um crime
fazê-lo às claras e sem usar as "fontes anónimas" para dar opinião.
Deixemos isto que é pouco importante. O que é importante, é
outra coisa, é a descaracterização do PSD como partido social-democrata. Eu sei
que me repito, mas às vezes é preciso. O PSD é o fruto de uma síntese única na
vida política portuguesa entre o liberalismo político dos nossos
"liberais" oitocentistas, com sequência nalgum republicanismo
moderado, na oposição à ditadura não comunista, na "ala liberal", com
o personalismo cristão, compreendendo a doutrina social da Igreja, e por fim,
last but not least, a tradição da social-democracia alemã e nórdica, ou seja do
princípio de que o estado deve ter uma função essencial de garantir a justiça
social, seja criando oportunidades iguais a todos, por exemplo, por via da
educação universal e obrigatória, mas acima de tudo pela garantia de que os
frutos da riqueza de um país, são distribuídos em primeiro lugar pelos que mais
precisam. O PSD considerava-se um partido da "classe média", dos self
made man, do mundo do trabalho intelectual e fabril, a que atribua o valor de
elemento fundador da dignidade humana. Agora parece um blogue radical de
direita, de gente que acha que a culpa de tudo é sempre dos mais fracos,
trabalhadores dos estaleiros, funcionários dos escalões inferiores, velhos,
pensionista e reformados.
Muitas vezes se diz que o PSD nunca foi social-democrata,
mas sim um partido populista, muito mais à direita na sua militância do que a
sua elite dirigente. Sim e não, muitas vezes flutuou ao sabor dos tempos e das
circunstâncias, sendo que a sua história, o "programa não escrito",
não é unívoca. Porém nunca abandonou a matriz da sua génese e, nas lideranças
mais consistentes, seja de Sá Carneiro, ou Mota Pinto, ou mais tarde de Cavaco
Silva e Manuela Ferreira Leite, nunca pôs em causa o seu programa identitário.
É alias esse programa que define o papel sui generis do PSD na vida política
portuguesa e que foi capaz de lhe dar o papel de partido reformista que teve em
momentos essenciais.
É isto que está em risco, porque não se trata apenas de
fazer uma interpretação mais "liberal" do programa social-democrata,
o que seria justificado pela actual conjuntura, mas de substituir o programa
genético por uma outra coisa espúria e alheia, mais própria de algum
conservadorismo mais agressivo e daquilo que se considera ser o
"neo-liberalismo", meio Tea Party mais escola de Chicago, à
portuguesa, claro. Tal está a ser feito a partir do governo, mas está a
impregnar o partido, não por convicção ideológica, mas porque o papel crescente
da partidocracia no interior dos grandes partidos portugueses torna os quadros
partidários profissionalizados dependentes dos lugares com origem no poder.
Podia-se considerar que se trata apenas de uma situação de emergência em que os
governantes do PSD estão apenas a tentar fazer sair o país da crise tornando-se
executantes aplicados de programa da troika com que não concordavam. Mas
quantas declarações políticas já foram feitas, desde a que dizia que "o
programa do PSD era o programa da troika", mostrando que não se trata de
uma comunhão por necessidade, mas sim numa concordância de fundo, que vai muito
para além das circunstâncias actuais? Até que ponto o programa da troika, que o
PSD ajudou a delinear, que o PSD completou nas negociações com Passos e Gaspar
e a troika, não é o governo do PSD?
Se virmos bem, a fonte dos discursos de aceitação pacífica
de redução da soberania, de diminuição dos poderes do parlamento português, de
um futuro de vinte ou trinta anos em que a possível recuperação económica não
implicará a recuperação social, em que não há uma palavra para o trabalho, para
o seu valor social, em detrimento de uma repetição monocórdica da palavra
"empresas", o discurso de divisão entre jovens e velhos, o efectivo
abandono de qualquer preocupação ou medida contra o empobrecimento dos
desempregados de longa duração ou os "desencorajados", é o governo do
PSD e Primeiro-ministro.
Não, não é patriotismo. Não, não salvará o país, bem pelo
contrário. Não, não é aceitável num partido social-democrata. Não, a continuar
assim acabará com o papel histórico do PSD na sociedade portuguesa. Tenho a
certeza que muitos militantes do PSD presentes no Congresso lerão este artigo.
Mais: muitos sabem que eu tenho razão e partilham das mesmas preocupações.
Aliás seria isto que eu diria se lá estivesse. Nem mais nem menos.
Historiador
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