Ilustração / Peter Schrank / The economist
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OPINIÃO
A Europa que nunca se debate
JOSÉ PACHECO PEREIRA 01/03/2014 – PÚBLICO
Caminhamos para uma nova eleição para o Parlamento Europeu e
já sabemos de antemão que as questões europeias não vão ser debatidas. Podemos
desejar que seja diferente, mas é assim por razões tão poderosas que nem vale a
pena passarmos o tempo dessas eleições a lamentar-nos por isso não acontecer.
Não será por vontade dos principais candidatos, que
certamente desejariam e vão tentar fazê-lo, principalmente Paulo Rangel e
Francisco Assis, nem sequer por vontade da coligação PSD-CDS, que também
preferiria, já por outras razões, que o debate fosse sobre a Europa e não sobre
o estado de Portugal. Mas isso não vai acontecer por uma razão de fundo que é
incontornável: o debate europeu não faz parte de qualquer agenda que os povos considerem
“sua”, que possa ser prioritária em países como Portugal e, aliás, em quase
todos os países da União Europeia. A participação dos povos das nações
europeias foi e é persistentemente posta à margem de todas as decisões
importantes tomadas no âmbito da União Europeia, por isso, não se pode esperar
que atribuam qualquer interesse a mobilizar-se para votar para uma instituição
que não lhes diz nada e que não sentem como relevante para a sua vida, neste
caso o Parlamento Europeu.
Os únicos a quem a questão europeia mobiliza são os
adversários da União Europeia, seja do próprio processo de integração europeu
em geral, seja da actual configuração da União, com a combinação de um
directório de facto, com uma gigantesca burocracia que se autojustifica como
uma tecnocracia que “sabe” contra políticos e parlamentos que “não sabem” e são
apenas ruído. E ilude-se quem não perceba que os sentimentos antieuropeus são
hoje muito mais próximos do povo e da sua vontade do que o europeísmo utópico,
de engenharia política antidemocrática e iluminada. Não encontrando no
mainstream da vida política um reflexo das suas mais que justificadas
preocupações sobre o curso autoritário e antidemocrático, falsamente
federalista, mas inigualitário, com uma enorme duplicidade de critérios no
tratamento das nações entre o Norte e o Sul, votam em partidos como a Frente
Nacional em França, ou no UKIP no Reino Unido. O sobressalto hipócrita sobre o
“ascenso da extrema-direita”, muitas vezes dirigido a partidos que são apenas
eurocépticos, mas que não tem sentido demonizar como sendo de extrema-direita,
reflecte mais os erros crassos dos europeístas do que um surto de nacionalismo
antieuropeu.
É interessante, aliás, verificar que mais facilmente os
europeístas classificam as posições dos seus adversários a partir do binómio
nacionalismo-integração, não aceitando discutir que mesmo o soberanismo
renascente nalguns países (não em todos) se deve a outra coisa, que, essa sim,
eles evitam a todo o custo discutir: o curso autoritário e antidemocrático da
União Europeia, que se acentuou muito na última década. E esse é um problema
gravíssimo, que gera efeitos perversos, incluindo o renascer soberanista e
mesmo nacionalista.
Veja-se o modo como a União Europeia, pela voz de Durão
Barroso e mais mil e um comentaristas europeístas, reagiu aos resultados
recentes do referendo suíço limitando a emigração – ameaçando os suíços porque
votaram “mal”. Eu teria votado contra as propostas referendárias suíças sobre a
emigração, e considero que é de criticar o seu resultado, mas nunca me esqueço
que os suíços votaram livremente e que é suposto em democracia respeitar-se o
resultado das votações. É, aliás, péssima esta tendência na União de não
aceitar resultados, quando eles vão contra a ortodoxia dominante nas elites
burocráticas e governamentais que a governam, e de exigir um determinado
resultado, realizando-se quantos referendos sejam necessários até esse
resultado se obter. Ou, pior ainda, quando um resultado é um “não” a um
política crucial da vanguarda europeísta da União, como aconteceu com a
Constituição Europeia na Holanda e na França, abandonar qualquer consulta
popular e introduzir à socapa as mesmas medidas chumbadas no voto popular
noutros documentos apenas aprovados entre governos, como aconteceu com o
Tratado de Lisboa.
A hipocrisia face ao voto suíço vem de que, bem vistas as
coisas, a legislação proposta não é assim tão diferente de outra legislação
semelhante na União Europeia, em particular fora do Espaço Schengen, e que
mesmo dentro dele as normas nacionais restritivas da livre circulação das
pessoas são habituais e acompanhadas por práticas muito para além das leis,
como os ciganos romenos ou búlgaros podem testemunhar. Acresce que Lampedusa é
na Europa da União e não na Suíça.
Uma das razões pelas quais as pessoas, a começar pelos
portugueses, não têm o mínimo interesse pelo debate europeu e vão naturalmente
“impregnar” estas eleições de questões nacionais é que todas as decisões
fundamentais sobre o seu destino, quer as que conhecem, quer as de que
suspeitam, quer as que ignoram são cada vez mais tomadas fora de Portugal por
governos estrangeiros, que, eles próprios, actuam em função dos seus interesses
nacionais, ou por uma burocracia iluminada que não vai a votos, nem tem de se
preocupar com legitimidades eleitorais.
É exactamente porque o debate europeu é subvalorizado que
ninguém cuida das posições dos candidatos. Paulo Rangel é o mais europeísta de
qualquer candidato europeu até agora. Basta assistir às suas intervenções e ao
que escreve, por exemplo no PÚBLICO, para ver como ele é um crítico da própria
ideia de soberania e independência, e é favorável a uma deslocação de muito do
processo decisório do Parlamento português para instâncias europeias, como,
aliás, está a acontecer já com o direito de veto por Bruxelas do Orçamento
português no âmbito do Pacto Orçamental, ou seja, sem ser em situação de
“emergência financeira”, como normalidade. Os portugueses são cuidadosamente
mantidos à parte de um processo de minimização daquilo que é a função
fundamental de um parlamento numa democracia, votar o Orçamento. Foi a
reivindicação de “no taxation without representation” que iniciou a guerra da
independência americana contra os ingleses.
Rangel entende que não basta que este processo seja de
facto, deve ser também de jure, como defendeu num debate na Fundação Soares dos
Santos. Num artigo recente congratula-se com a deslocação da decisão
constitucional do âmbito nacional, no caso alemão, para o Tribunal Europeu, o
que, por analogia, implicaria que no caso português uma subordinação da
Constituição Portuguesa a um direito constitucional da União, que era uma das
tendências implícitas na chamada "Constituição Europeia", chumbada
pelo voto em vários países.
No PPE ele alinha com o europeísmo mais extremo, onde até
agora o próprio PSD era muito mais moderado, mas, como ninguém cura de ser
coerente nestas matérias (com excepção de Rangel), mas apenas utilitário e
pragmático, já há candidato e basta. Como de há muito tempo sei que o CDS
engole tudo que se lhe põe no prato, é interessante ver como este partido,
recentemente convertido à “eurocalmaria”, pode fazer parte de uma lista
encabeçada por um “euro-extremista”. Ter posições próprias e pensadas é um
mérito de Rangel, que facilita e dá transparência ao debate, mas desconheço como
é possível compatibilizá-las com as posições tradicionais do PSD e do CDS,
muito mais conservadoras no plano europeu.
Com candidatos como Rangel e Assis, que é bastante próximo
de muitas posições de Rangel, o debate europeu ficará prejudicado por se fazer
apenas dentro de uma ortodoxia europeísta que, no meu ponto de vista, de há
muito perdeu o contacto com a realidade das nações europeias, com aquilo que é
hoje a União Europeia, e com a vontade dos povos e nações da Europa. Estamos
dentro de um voluntarismo iluminado, que responde aos problemas acentuando a
mesma receita e que só pode continuar a existir e a moldar a União se não for a
votos, a começar pelo voto referendário que é o que melhor exprime um “sim” ou
“não” a questões que são simples, mas que ninguém quer colocar com clareza. Por
tudo isto, para a reflexão sobre a Europa as eleições para o Parlamento Europeu
serão inúteis. Já não acontecerá o mesmo sobre a política portuguesa.
Historiador
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