OPINIÃO
A caça ao Tordo
JOÃO MIGUEL TAVARES 27/02/2014 - 00:55
O actual Governo tem culpa de
imensa coisa. Mas não da partida de Fernando Tordo para o Brasil.
O problema de Fernando Tordo não foi dizer que se ia embora
para ganhar a vida no Brasil, tal como o problema de João Tordo não foi ter
escrito uma bonita carta de despedida ao seu pai. O problema – e é este
problema que está na base de tudo o que desde então tem caído em cima das suas
cabeças – é ambos terem feito uma ligação directa entre a actuação do Governo e
a necessidade de Fernando Tordo emigrar, como se até os insucessos de um
músico, profissional liberal por definição, fossem responsabilidade de Pedro
Passos Coelho. Ora, que eu saiba, o Palácio de São Bento ainda não tem qualquer
poder sobre o "top 10" da Associação Fonográfica Portuguesa.
Quando Rick Rubin foi ter com Johnny Cash nos anos 90, para
gravarem juntos os extraordinários discos pela American Recordings que
revolucionariam o final da sua carreira, Cash era um sexagenário, tal como
Fernando Tordo. E, tal como Fernando Tordo, a indústria tinha-o abandonado e os
seus concertos estavam vazios. Quem gosta de música sabe o que aconteceu a Cash
a partir de 1994, tal como conhece a amargura que ele sentia antes disso. Mas
eu não me recordo de algum dia, em alguma entrevista, ter visto ou ouvido Cash
culpar Bill Clinton ou a administração americana pela situação em que se
encontrava.
Eu simpatizo bastante com Fernando Tordo e com o seu filho
João. São pessoas simpáticas, afáveis, abertas, bem-dispostas e que não têm
habitualmente o discurso do português desgraçadinho. Mas, neste caso, Fernando
perdeu o pé quando, a 14 de Janeiro, no programa da TVI24 onde tudo isto
começou, uniu a frase “não aceito esta gente, não aceito o que estão a fazer ao
meu país, não votei neles e não estou para ser governado por este bando de
incompetentes” à frase “passou a ser insultuoso, ao fim de 50 anos de carreira,
ter de procurar trabalho desta maneira, ter de viver quase precariamente”.
Ambas as frases são inteiramente legítimas, mas ao juntá-las
Fernando Tordo sugeriu uma relação de causa-efeito que me parece, no mínimo,
abusiva. Relação essa que acabaria por ser sublinhada pela carta de João Tordo,
quando a certa altura cai num retrato neo-realista que mete reformas de
“duzentos e poucos euros” e pancada aos “nossos governantes” por acabarem com
“a cultura”, com “a felicidade”, com “a esperança” e com o seu “pai, e outros
como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para dar cabo
deste país”.
Quando Fernando Tordo veio dizer, num direito de resposta ao
jornal i, que não havia sido “intenção de nenhum dos intervenientes pedir a
misericórdia dos Portugueses” e que ele “não passa dificuldades económicas nem
nunca tencionou que isso ficasse implícito”, já era tarde. A notícia dos
ajustes directos no valor de mais de 200 mil euros tinha feito o seu caminho. E
se essa notícia ainda pode ser considerada popularucha, a de ontem, sobre a ONG
liderada pela sua mulher lhe ter pago 10 mil euros por dois espectáculos,
levanta questões éticas sérias, que Fernando Tordo certamente preferiria que
não tivessem vindo parar à praça pública.
É evidente que a austeridade prejudicou os músicos
portugueses, pois o circuito das câmaras municipais sempre foi fundamental para
o seu sustento, e a torneira fechou. Só que subsidiar a música popular é um
contra-senso: ou bem que é subsidiada, ou bem que é popular. O actual Governo
tem culpa de imensa coisa. Mas não da partida de Fernando Tordo para o Brasil.
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