Zygmunt Bauman: "Vivemos o fim do futuro"
O sociólogo polonês denuncia a perda de referências
políticas, culturais e morais da civilização e diz que só os jovens, com sua
indignação, poderão resistir à banalização
LUÍS ANTÔNIO GIRON
19/02/2014 07h00 - Atualizado em 19/02/2014 07h54 / http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/02/bzygmunt-baumanb-vivemos-o-fim-do-futuro.html
Em 1963, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman foi censurado e
afastado da Universidade de Varsóvia por causa de suas ideias, consideradas
subversivas no comunismo. Hoje, aos 88 anos, imigrante em Londres, é
considerado um dos pensadores mais eminentes do declínio da civilização. Ele
ainda dá aulas na London School of Economics, ministra palestras pelo mundo inteiro
e publicou quatro dezenas de livros que viraram best-sellers. Seus 32 títulos
lançados no Brasil venderam 350 mil exemplares. O mais recente é Vigilância
líquida (Zahar, 160 páginas, R$ 36,90). Bauman é autor do conceito de
“modernidade líquida”. Com a ideia de “liquidez”, ele tenta explicar as
mudanças profundas que a civilização vem sofrendo com a globalização e o
impacto da tecnologia da informação. Nesta entrevista, ele fala sobre como a
vida, a política e os padrões culturais mudaram nos últimos 20 anos. As
instituições políticas perderam representatividade porque sofrem com um
“deficit perpétuo de poder”. Na cultura,
a elite abandonou o projeto de incentivar e patrocinar a cultura e as artes.
Segundo ele, hoje é moda, entre os líderes e formadores de opinião, aceitar
todas as manifestações, mas não apoiar nenhuma.
ÉPOCA – De acordo com
sua análise, as pessoas vivem um senso de desorientação. Perdemos a fé em nós
mesmos?
Zygmunt Bauman – Ainda que a proclamação do “fim da
história” de Francis Fukuyama não faça sentido (a história terminará com a
espécie humana, e não num momento anterior), podemos falar legitimamente do
“fim do futuro”. Vivemos o fim do futuro. Durante toda a era moderna, nossos
ancestrais agiram e viveram voltados para a direção do futuro. Eles avaliaram a
virtude de suas realizações pela crescente (genuína ou suposta) proximidade de
uma linha final, o modelo da sociedade que queriam estabelecer. A visão do
futuro guiava o presente. Nossos contemporâneos vivem sem esse futuro. Fomos
repelidos pelos atalhos do dia de hoje. Estamos mais descuidados, ignorantes e
negligentes quanto ao que virá.
ÉPOCA – Segundo o senhor, a decadência da política acontece desde o século passado. A situação piorou agora?
Bauman – A decadência da política é causada e reforçada pela
crise da agenda política. As instituições amarram o poder de resolver os
problemas à política. Ela seria capaz de decidir que coisas precisariam ser
feitas. Nossos antepassados conceberam uma ordem que dependia dos serviços do
Estado-nação. Mas essa ordem não é mais adequada aos desafios postulados pela
contínua globalização de nossa interdependência. Com a separação do poder e da
política, a gente se encontra na dupla situação de poderes livres do controle
político e da política que sofre o deficit perpétuo do poder. Daí a crise de
confiança nas instituições políticas, uma vez que a política investiu nos
parlamentos e nos partidos para construir a democracia como atualmente a
compreendemos. Mais e mais pessoas duvidam que os políticos sejam capazes de
cumprir suas promessas. Assim, elas procuram desesperadamente veículos
alternativos de decisão coletiva e ação, apesar de, até agora, isso não ter
representado uma alteração efetiva.
ÉPOCA – As redes sociais aumentaram sua força na internet
como ferramentas eficazes de mobilização. Como o senhor analisa o surgimento de
uma sociedade em rede?
Bauman – Redes, você sabe, são interligadas, mas também
descosturadas e remendadas por meio de conexões e desconexões... As redes
sociais eram atividades de difícil implementação entre as comunidades do
passado. De algum modo, elas continuam assim dentro do mundo off-line. No mundo
interligado, porém, as interações sociais ganharam a aparência de brinquedo de
crianças rápidas. Não parece haver esforço na parcela on-line, virtual, de
nossa experiência de vida. Hoje, assistimos à tendência de adaptar nossas
interações na vida real (off-line), como se imitássemos o padrão de conforto
que experimentamos quando estamos no mundo on-line da internet.
ÉPOCA – Os jovens podem mudar e salvar o mundo? Ou nem os jovens podem fazer algo para alterar a história?
Bauman – Sou tudo, menos desesperançoso. Confio que os
jovens possam perseguir e consertar o estrago que os mais velhos fizeram. Como
e se forem capazes de pôr isso em prática, dependerá da imaginação e da
determinação deles. Para que se deem uma oportunidade, os jovens precisam
resistir às pressões da fragmentação e recuperar a consciência da
responsabilidade compartilhada para o futuro do planeta e seus habitantes. Os
jovens precisam trocar o mundo virtual pelo real.
"Para mudar o mundo,
os jovens precisam trocar
o mundo virtual pelo real"
ÉPOCA – Como o senhor vê a nova onda de protestos na Europa, no Oriente Médio, nos Estados Unidos e na América Latina, que aumentou nos últimos anos?
Bauman – Se Marx e Engels escrevessem o Manifesto Comunista
hoje, teriam de substituir a célebre frase inicial – “Um espectro ronda a
Europa – o espectro do comunismo” – pela seguinte: “Um espectro ronda o planeta
– o espectro da indignação”. Esse novo espectro comprova a novidade de nossa
situação em relação ao ano de 1848, quando Marx e Engels publicaram o
Manifesto. Faltam-nos precedentes históricos para aprender com os protestos de
massa e seguir adiante. Ainda estamos tateando no escuro.
ÉPOCA – O senhor afirma que as elites adotaram uma atitude de máximo de tolerância com o mínimo de seletividade. Qual a razão dessa atitude?
Bauman – Em relação ao domínio das escolhas culturais, a
resposta é que não há mais autoconfiança quanto ao valor intrínseco das ofertas
culturais disponíveis. Ao mesmo tempo, as elites renunciaram às ambições
passadas, de empreender uma missão iluminadora da cultura. A elite deixou de
ser o mecenas da cultura. Hoje, as elites medem sua superioridade cultural pela
capacidade de devorar tudo.
ÉPOCA – Essa diluição dos valores explica por que artistas como Damian Hirst e Jeff Koons buscam mais fama do que reconhecimento artístico?
Bauman – Prefiro não generalizar sobre esse tema. Os
artistas, suas performances e produtos são hoje em dia muitos e diferentes, e
os veredictos apressados são equivocados. Pessoalmente, detesto e me aborreço
com os Damiens Hirsts, Jeff Koons e similares. Mas eles são ostensivamente
sustentados pelas correntes e modas guiadas pelo mercado. Os mercados usurparam
o mecenato das artes das igrejas e dos Estados. Por isso, o meio é realmente a
mensagem da arte contemporânea.
ÉPOCA – Como diz o
crítico George Steiner, os produtos culturais hoje visam ao máximo impacto e à
obsolescência instantânea. Há uma saída para salvar a arte como uma experiência
humana importante?
Bauman – Bem, esses produtos se comportam como o resto do
mercado. Voltam-se para as vendas de produtos na sociedade dos consumidores.
Uma vez que a busca pelo lucro continua a ser o motor mais importante da
economia, há pouca oportunidade para que os objetos de arte cessem de obedecer
à sentença de Steiner...
ÉPOCA – O senhor diz que a cultura se tornou dependente da moda. Por que isso ocorre?
Bauman – Modas vêm e vão e são tão velhas quanto a cultura,
tão antigas quanto o homo sapiens... O que a fez tão espetacularmente presente
em nossa vida diária é o impacto combinado da comunicação digital em tempo real
e da produção em massa com a associação entre butiques de alta-costura e
grandes redes de lojas. As manifestações culturais e artísticas são arrastadas
pelo motor da moda.
ÉPOCA – A moda pode dar sentido à vida das pessoas?
Bauman – A moda tem seus usos e uma demanda enorme e
crescente. Ela fornece um modelo para a constante troca de identidades de nosso
mundo. Funciona também como antídoto contra o horror de falhar num mundo em
alta velocidade e contra o resultante abandono e degradação social. Não há nada
de inútil na moda. Pelo contrário, é uma necessidade num mundo de flutuação e
desorientação.
ÉPOCA – Seus livros parecem pessimistas, talvez porque abram demais os olhos dos leitores. O senhor é pessimista? Ou busca a alegria de alguma forma, apesar de todos os problemas?
Bauman – A meu ver,
os otimistas acreditam que este mundo é o melhor possível, ao passo que os
pessimistas suspeitam que os otimistas podem estar certos... Mas acredito que
essa classificação binária de atitudes não é exaustiva. Existe uma terceira
categoria: pessoas com esperança. Eu me coloco nessa terceira categoria. De
outra forma, não veria sentido em falar e escrever...
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