OPINIÃO
Democracia directa e representação
FRANCISCO TEIXEIRA 24/02/2014 - Público
Só uma incompreensível
cegueira obscurecerá a crise do actual modelo de representação política.
De repente, a “participação direta” dos cidadãos na vida
política é apresentada como o “ideal tipo” de corrupção democrática. A coisa é
absurda a vários títulos porque a democracia começou como “democracia direta”,
numa Atenas em que, todos os meses, os cidadãos adultos se juntavam na àgora
para deliberar sobre todos os assuntos, assim instituindo o “domínio pelo
povo”, i.e., a “demokrateia”.
Aos atenienses repugnava-lhes a ideia de serem governados
por terceiros e, por isso, a participação direta na governação era condição
mínima de honorabilidade. Diz Péricles: “Nós não consideramos o cidadão que não
participa das questões públicas uma pessoa sem ambições mas sim um inútil.”
Bem entendido, a Atenas de Péricles não teria mais que
trinta mil cidadãos e as suas assembleias eram dominadas por uns poucos que
verdadeiramente se conseguiam fazer ouvir pela sua clareza, bom senso e
erudição, ainda que todos pudessem ser selecionados, por sorteio ou eleição,
para a ocupação de cargos governativos, com prazo excecionalmente curto, com elevadíssima
rotatividade e mediocremente pagos. E claro que a Pólis ateniense tem muito
pouco a ver com as cidades e as comunidades políticas de hoje. O tamanho
estabelece a diferença essencial. Mas também a copresença do mundo a todos os
pontos do mundo, num único tempo presente, introduz no espaço político
contemporâneo uma qualidade incomensurável com aqueles tempos.
Por sua vez, a democracia direta de Atenas não era
incompatível com a razão e a deliberação públicas, já que, como lembra
Péricles, “nós, Atenienses, somos capazes de opinar sobre todos os temas, e, ao
invés de encararmos as discussões como um obstáculo para a ação,
consideramo-las como o preliminar indispensável para qualquer ação prudente e
sábia”. A retórica, ou a deliberação pública, era essencial à cidadania
ateniense, sendo-lhe verdadeiramente constitutiva, ao contrário, por exemplo,
da cidadania espartana, onde as deliberações eram tomadas não pelo fulgor da
palavra e do voto mas (literalmente) do grito mais poderoso. Um comunitarismo cívico
profundo e uma prática retórica persistentes estabeleciam a principal mediação
racional-política da governação ateniense.
Sem dúvida, a razão pública necessita de estruturas de
mediação, de reconhecimento, valor e sentido, para que possa ocorrer. Mas a
identificação da democracia direta com a ausência de mediações racionais
constitui, simplesmente, um erro de análise, e tanto mais profundo quanto mais
restrito é o âmbito deliberativo em questão. E acontece, ainda, que nem todas a
mediações são boas. Por exemplo, a mediação corporativa das decisões políticas
é uma má mediação. Como é má uma mediação oligárquica ou partidocrática. Para
além disso, a mediação é tanto pior quanto o universo político em questão é
reduzido. Por exemplo, não há nenhuma razão democrática para que uma escola,
com um universo de umas escassas centenas de decisores (ou nem isso), não possa
ser governada de modo direto, mediada retoricamente pela razão e deliberação
públicas, comummente aceites e enraizadas, ao invés de por um número
limitadíssimo de representantes que se instituem como poderes fácticos
inamovíveis e definitivos.
A magna questão parece ser, então, a de saber se as
democracias constitucionais contemporâneas, profundamente complexas e
comunicacionalmente evanescentes, podem ser governadas por métodos de decisão
direta dos cidadãos. Deve lembrar-se que isso já é feito, em parte, em algumas
das maiores dessas democracias, de modo parcial mas intenso. Enquanto votavam
nas últimas eleições presidenciais, os americanos, por exemplo, votaram,
simultaneamente, em cerca de 150 referendos locais ou estaduais, sobre os mais
diversos assuntos, desde o casamento entre pessoas do mesmo sexo a questões
orçamentais ou à legalização da marijuana.
Escusado será dizer que um exclusivo de decisão política
direta nos estados constitucionais contemporâneos é praticamente impossível e
indesejável. A representação enquanto estruturante de mediação da vontade e da
soberania popular ainda é o melhor modelo de governação, porque é o que melhor
lida com o tamanho e a complexidade das suas exigências. No entanto, só uma
incompreensível cegueira obscurecerá a crise do atual modelo de representação
política, que se instancia, desde logo, na falsificação generalizada do mandato
popular, por virtude da cupidez política e da emergência de poderes fácticos
antidemocráticos capazes de subverter a própria natureza da representação. E só
a cegueira não deixa perceber que a modelação da representação pela decisão
direta pode dar mais força à própria representação e, claro, à democracia.
Mas, indo mais fundo, quero sugerir aqui que a rejeição da
democracia direta constitui (onde ela pode efetivamente ser instanciada,
através de um mínimo de mediação racional e deliberativa), como no século XIX,
um reflexo da desconfiança efetiva na democracia enquanto soberania do povo e
sua presença ao centro da decisão e da ação políticas. A emergência de novas
soberanias não democráticas, particularmente a soberania dos mercados e das
grandes indústrias de intermediação financeira, parece estar a enfraquecer, em
algumas elites políticas e sociais (e até em alguns setores populares), a força
moral da democracia.
Por exemplo, embora seja claro, no nosso ordenamento
constitucional, que “a soberania, una e indivisível, reside no povo, que a
exerce segundo as formas previstas na Constituição” (fazendo com que a
representação constitua a forma da soberania e não a própria soberania), há
quem defenda que o que é necessário, cada vez mais, à nossa democracia, é que a
forma da soberania se afaste da sua fonte material, depurando a mediação
representativa até um nível, quiçá, monárquico/majestático, transformando
“misticamente” o representante na fonte majestática da própria soberania, ao
modo inglês, para quem a soberania reside não no povo, mas no parlamento e no
rei.
Acontece que, na nossa constituição, para além da
representação também se preconiza o aprofundamento da democracia participativa
(artigo 2) ou a participação direta e ativa dos cidadãos, “dos homens e das
mulheres”, na vida política (artigos 48 e 109), “condição e instrumento
fundamental de consolidação do sistema democrático”. Mas mais: ao consagrar o
direito de resistência, a CRP faz um apelo aos cidadãos para que defendam,
directamente, o país de ofensas aos “seus direitos, liberdades e garantias”
(artigo 21.º).
Temos, então, que a ideia segundo a qual as eleições
legislativas refulgiriam como o momento único e definitivo da legitimidade do
poder parlamentar e governamental não tem sustentação
democrática/constitucional. A participação direta dos cidadãos é outro
importante instrumento de expressão da vontade popular.
Por outro lado, a legitimidade do parlamento depende, antes
de tudo o mais, da realização de eleições livres e justas, capaz de aferir da
intencionalidade formal da vontade, ou soberania, popular. Mas não fica por aí.
O parlamento tem de exercer uma conexão racional e materialmente verdadeira
entre as suas condições de elegibilidade, entre o contrato que foi sufragado
maioritariamente, e a sua execução. Um parlamento que executasse o contrário do
programa, do contrato, com base no qual foi eleito seria, é, um parlamento
fraudulento. Bem entendido, o parlamentar-representante-delegado não é eleito
em nome dos interesses particulares dos seus eleitores, mas em nome de certa
ideia de bem-comum. No entanto, esta ideia de bem-comum não pode ser
completamente desligada, “desvinculada”, das “concepções políticas e
ético-sociais dominantes”, obrigando o cumprimento daquilo que se pode chamar
um “princípio da coerência”, pelo qual se “exige que os deputados e partidos se
mantenham, quanto às suas decisões, dentro das linhas gerais do programa
político com que se apresentaram na campanha eleitoral. Destes vínculos
resultam questões acerca de condutas parlamentares legítimas, e isto não só em
relação aos deputados individualmente mas também aos partidos que actuam no
seio do parlamento” (ZIPPELIUS, Reinhold, 1997, Teoria Geral do Estado, Ed.
FCG, pp. 270-271).
Claro que é habitual, e quase sempre falso, que os políticos
indiquem como justificação para as mudanças programáticas sufragadas pelos
eleitores a alteração superveniente das circunstâncias. De facto, há que
atender a um certo nível de flexibilidade na ação política concreta, que sempre
poderá ser avaliada eleitoralmente pelos cidadãos. Mas isso é, em quantidade e
qualidade, bem diferente de uma inversão completa do modelo, ou do contrato,
com base no qual se receberam os sufrágios. O problema, nesses casos, é quando
se substitui um mínimo de deliberação racional por uma completa inversão de
valores e, até, ontologias políticas. Quando o mundo se vira de avesso, a
mentira se torna verdade e o branco se torna preto.
Ora, um incremento da democracia direta no nosso ordenamento
legislativo poderia obstar, em muito, a estas recorrentes falsificações da
vontade soberana do povo (pelas quais se procede a sucessivas ruturas, no seu
sentido material, da legitimidade democrática), que não podendo ser resolvidas
por via da delegação-representação (entretanto usada para fins inversos àqueles
para os quais foi constituída), o poderiam ser através da participação direta e
ativa dos cidadãos.
Professor do ensino secundário, doutorado em Filosofia e
especializado em organizações educativas e administração educacional
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