Governo de “vontade popular” na Ucrânia tem tarefa
monumental
JOÃO RUELA RIBEIRO e PAULO MOURA (em Kiev) 26/02/2014 -
19:47 / PÚBLICO
Novo governo combina figuras
próximas de Timochenko e líderes dos protestos. Os próximos tempos irão dizer
se a democracia da Maidan funcionou.
Não deverá haver muitos governos na história da democracia
cuja aprovação esteja dependente dos apupos ou palmas de uma multidão. Mas esse
é pelo menos o método que os manifestantes da Praça da Independência quiseram
utilizar para a formação do seu executivo, que terá tarefas gigantes pela
frente. A primeira foi já nesta quarta-feira, perante a Maidan.
Como sempre, foram muitos os nomes referidos, uns mais
plausíveis que outros, é certo. Em Kiev, o ambiente revolucionário que animou a
Praça da Independência nos últimos meses parece estar para ficar. E mais: serão
princípios revolucionários que vão guiar a agenda política dos governantes, a
começar pela própria origem do gabinete de ministros.
A Praça Maidan preparava-se para uma longa jornada que
começou ao início da noite com o anúncio de que o líder da oposição Arseni
Iatseniuk iria encabeçar o executivo. A partir daí, foram anunciados vários
nomes, alguns mais consensuais do que outros. Certas nomeações foram vaiadas
por grupos inteiros, como foi o caso do novo ministro do Interior, Arsen
Avakov. De uma forma geral, o novo governo de unidade nacional combina várias
personalidades próximas de Iulia Timochenko e figuras que se notabilizaram
durante a contestação.
Iatseniuk tratava-se de uma escolha que muitos antecipavam,
na medida em que alia a experiência de passagens por governos anteriores com a
legitimidade de ter sido um dos rostos da contestação. Iatseniuk liderou o
partido Pátria durante a prisão de Iulia Timochenko e acompanhou de perto os
protestos dos últimos meses.
Poderá ser um bom sinal para os próximos tempos, uma vez que
muito do futuro da Ucrânia vai depender das negociações internacionais para a
obtenção de um resgate financeiro. Para além de uma experiência como ministro
da Economia, Iatseniuk era visto como um dos líderes políticos da oposição mais
fiáveis. Estando agora fora da corrida à presidência, a nomeação de Iatseniuk
pode abrir caminho à possível candidatura de Timochenko.
Na Economia deverá ficar um académico, Pavlo Sheremeta,
fundador e reitor da Faculdade de Economia da Universidade Kiev Mohila. Uma das
áreas mais sensíveis, as Finanças, ficará a cargo de Oleksander Schlapak, que
foi chefe de gabinete do ex-Presidente Viktor Iushenko, que foi eleito na
sequência da Revolução Laranja. Schlapak tem pela frente a difícil situação
financeira da Ucrânia, cujas necessidades de financiamento para os próximos
dois anos ascendem a 25 mil milhões de euros e que convive com uma desvalorização
quase diária da moeda.
A escolha para os Negócios Estrangeiros recaiu em Andri
Deshchitsia, que foi embaixador na Finlândia. A sua experiência diplomática no
país nórdico poderá indicar que a gestão nas relações exteriores de Kiev irá
privilegiar a integração europeia, sem contudo alienar totalmente Moscovo, à
semelhança do que é feito pela Finlândia.
Durante a tarde, o Conselho da Maidan – o órgão deliberativo
informal formado durante os protestos – esteve a escolher alguns nomes para
outros cargos. Andrei Parubi, ex-deputado do Pátria e um dos líderes da
contestação, foi proposto para secretário do Conselho Nacional de Segurança e
Defesa, tendo como vice o líder do Sector Direito, Dmitro Iarosh.
A confirmar-se a indicação de Iarosh, esta seria uma decisão
potencialmente polémica. A entrega de uma posição de destaque ao líder de uma
organização paramilitar de extrema-direita e que utilizou abertamente meios
violentos durante os protestos pode despertar reservas, sobretudo nas regiões
do Leste do país.
Outra nomeação emanada das ruas foi a de Dmitro Bulatov, que
esteve à frente do movimento AutoMaidan, para a pasta da Juventude e Desporto.
Bulatov foi raptado no final de Janeiro, tendo reaparecido uma semana depois
com indícios de ferimentos graves. O activista contou que foi levado por um
grupo de homens para uma mata, onde foi espancado e crucificado.
Democracia directa
A rua soberana conseguiu, desde logo, adiar o anúncio da
formação do governo. Inicialmente previsto para terça-feira, a contestação da
Maidan em relação ao rumo que as negociações no Parlamento estavam a decorrer
falou mais alto e a nomeação passou para quarta-feira. E foi a rua a indicar o
método de escolha: a democracia directa, ao estilo da antiga cidade-Estado de
Esparta, como descreveu ao PÚBLICO um dos líderes dos manifestantes, Andrei
Parubi.
Não obstante as diferenças que possam existir entre as
realidades de uma cidade da Antiguidade de 25 mil habitantes, totalmente
vocacionada para a guerra, e um país moderno com uma população de 45 milhões, a
justificação para o método referido por Parubi está em sintonia com o
sentimento dominante nas ruas de Kiev. Em parte são os receios de que se repita
o desenlace da Revolução Laranja de 2004 – que acabou por substituir uma classe
política dominada pelos oligarcas por outra demasiado parecida – que dominam os
anseios pela democracia directa. Mas há também a necessidade de reconhecer que
a revolução da Maidan foi dirigida sobretudo pelas ruas, que não hesitaram em
apupar e criticar os líderes políticos e que precipitaram a queda de Viktor
Ianukovich.
Basta, contudo, olhar para os desafios que os novos
governantes da Ucrânia terão pela frente para se concluir que juntar
instabilidade governativa à situação crítica do país podia ser o pior a
acontecer neste momento. É o próprio Parubi que nota ser possível que um
governo seja aclamado pela Praça e, “horas depois” venham 30 mil pessoas
derrubá-lo.
Crise económica, integração europeia, relações com Moscovo e
manutenção da integridade territorial serão os principais temas que vão ocupar
o novo governo. Ao mesmo tempo que têm de tentar redefinir a posição da Ucrânia
no mundo, os novos governantes têm que assegurar que não perdem a legitimidade
que, por agora, a rua parece confiar-lhes.
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