União
Europeia: do Pártenon até à Máfia em 57 anos
JOSÉ VÍTOR
MALHEIROS 21/07/2015 - PÚBLICO
O
default é a única justificação moral possível para os juros
altos. Se o default não é admissível, então os juros altos também
não podem ser admissíveis.
O capitalismo é um
sistema social e económico baseado na competição, onde se admitem
grandes disparidades nos benefícios e no bem-estar de que gozam
diferentes pessoas que vivem numa mesma sociedade com base numa
justificação moral meritocrática.
Deixemos de lado,
momentaneamente, a realidade em que se traduz esta “meritocracia”
— que é, na realidade, uma oligarquia ferozmente protegida — e
consideremos os seus princípios teóricos. Num sistema capitalista,
as desigualdades são não só toleradas como consideradas um motor
do progresso, pois demonstram como funciona o sistema de recompensas.
O mantra capitalista diz que os melhores serão recompensados e os
piores preteridos, prevendo alguns paliativos para casos extremos
como deficiências congénitas ou acidentes incapacitantes.
Quais são os
méritos que merecem recompensas? Em teoria, todos, em qualquer área.
Pode ser a habilidade a dar pontapés numa bola ou a jogar xadrez, o
raciocínio abstracto ou o conhecimento da pintura maneirista, a
capacidade negocial, a habilidade manual, o jeito para tratar de
animais, a competência técnica para fazer sopa de legumes ou
arranjos florais, a imaginação, a originalidade, a beleza física,
a persistência, etc. — ainda que seja duvidoso que, prosseguindo o
mesmo raciocínio moral, se possa atribuir maior “mérito” a
pessoas que possuem determinadas qualidades naturais em detrimento de
quem não as possua e que seja igualmente duvidoso que alguém que
consegue obter melhores resultados numa qualquer área sem o mínimo
esforço tenha maior “mérito” que quem se esforce afincadamente
sem conseguir atingir as mesmas marcas.
Mas a narrativa
propagandística do capitalismo, que vemos martelada constantemente
no cinema e na televisão americana e não só, é esta: quem se
esforça, quem persiste, quem inova, quem arrisca, quem investe,
ganha e alcança o american dream. Quem não o faz, fica para trás.
Não é só o
trabalho e a competência que justificam moralmente os ganhos no
capitalismo. São principalmente a iniciativa e a assunção de
risco. Os grandes ganhos, em particular, só são justificáveis se
corresponderem a um risco assumido. São o prémio do risco. É
lícito que alguém ganhe uma fortuna na Bolsa se investir num
projecto de elevado risco, que pode fracassar. Pode-se ganhar muito
porque se arrisca muito. Pode-se ganhar muito porque se pode perder
tudo.
É essa a lógica de
quem investe numa fábrica que vai produzir um produto inovador, que
ninguém sabe ao certo se encontrará mercado. E é essa a lógica de
quem empresta dinheiro a um país muito endivididado (um empréstimo
é um investimento). O país endividado propõe-se pagar um juro alto
porque tem um risco elevado associado. Há o perigo de não poder
pagar. E quem compra os seus títulos de dívida aceita o risco
porque pode ganhar muito se o devedor pagar tudo. Mas tem de aceitar
o risco de perder tudo ou uma parte.
As pressões feitas
pela troika e, principalmente, pela Comissão Europeia, pelo
Eurogrupo e pelo Banco Central Europeu nos últimos anos, no caso da
Grécia e de Portugal, significam que todos os que compraram dívida
aceitam os juros altos com que vão ser premiados se forem
reembolsados, mas não aceitam o risco inerente e querem forçosamente
que os devedores paguem, seja como for, nem que seja preciso vender o
Pártenon às pedrinhas. E é evidente que muitos dos bancos privados
que compraram dívida grega com juro alto o fizeram porque sabiam
que, chegado o momento da verdade, haveria uma cartada política que
poderiam jogar para obrigar o devedor a pagar, fosse como fosse, ou
que os títulos de dívida na sua mão seriam resgatados pelas
“instituições”.
O que a negociata
das dívidas soberanas mostra é a enorme hipocrisia dos credores,
que compram barato (ou seja: emprestam com juros altos) com a
justificação moral do risco que assumem, mas depois usam todos os
meios ao seu alcance, lícitos ou ilícitos, para garantir o
pagamento e para afastar totalmente a possibilidade de default.
A questão é que o
default é a única justificação moral possível para os juros
altos. Se o default não é admitido pelos credores, então os juros
altos também não podem ser admissíveis. Até se pode admitir, em
tese, que o default de um estado se torne impossível e que este seja
obrigado a vender monumentos e entregar uma libra de carne todos os
meses para pagar as dívidas até ao último cêntimo. Mas, se for
assim, não há a mínima justificação para os juros altos. Se o
default da Grécia não é permitido, então a Grécia deve poder
contrair empréstimos com os juros negativos da Alemanha, porque o
seu risco será, como o da Alemanha, virtualmente nulo.
Se os juros se
mantêm altos e o default não é possível, como acontece agora,
deixamos de estar no reino das finanças ou da política. Estamos no
reino do racket, da chantagem, da extorsão, do crime organizado, da
Mafia. O reino que a União Europeia agora representa.
Jornalista,
jvmalheiros@gmail.com
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