INÊS NADAIS
25/07/2015 - PÚBLICO
O complexo que
reabre este domingo em Bayreuth não omite a proximidade entre as
posições de Wagner sobre os judeus alemães e o discurso nazi sobre
a raça, nem as comprometedoras ligações da família Wagner a Adolf
Hitler – pelo contrário.
É a novidade do ano
em Bayreuth, mas nem assim domina as notícias neste fim-de-semana em
que começa mais uma edição do sempre polémico festival fundado em
1876 por Richard Wagner (e invariavelmente transformado na arena mais
ou menos sangrenta onde se põem em campo as rivalidades da família
do compositor alemão): o museu que este domingo reabre ao público
não varre para debaixo do tapete os aspectos mais duvidosos, e até
aqui omitidos, da vida e do legado de Wagner. Pela primeira vez, os
ensaios anti-semitas que o compositor escreveu têm um lugar na
exposição permanente – paralelamente, uma exposição temporária
assume o assunto-tabu das ligações da família ao regime nazi, a
começar pelas relações entre a viúva de Wagner e o próprio Adolf
Hitler.
"Temos de olhar
para a nossa História, e temos de trabalhar com a nossa História",
disse à Reuters Brigitte Merk-Erbe, a presidente da Câmara de
Bayreuth, que pagou cerca de um terço dos 20 milhões de euros
investidos nas obras de remodelação e de ampliação de que o Museu
Richard Wagner foi alvo. Além de finalmente pôr o dedo nas duas
feridas mais dolorosas do colosso Richard Wagner, o compositor dos
compositores alemães, o museu abre pela primeira vez ao público a
casa onde viveu até à sua morte, em 1930, um dos filhos do
compositor, Siegfried, cuja mulher se tornaria depois muito próxima
do Führer. É justamente nesta nova ala que se mostram, com destaque
muito significativo, os textos anti-semitas que Wagner escreveu
sobretudo durante a sua juventude, alguns dos quais sob anonimato. O
mais famoso destes textos, Das Judentum in der Musik, publicado em
1850, foi de resto retomado pelos ideólogos do nazismo, que
subscreveram e amplificaram as teses de Wagner sobre o papel dos
judeus ("ex-canibais" tornados "homens de negócios")
na corrupção da cultura e da língua alemãs e transformaram o
compositor no mais definitivo exemplo da superioridade da raça
ariana.
Mas se o
anti-semitismo de Wagner fica assim arrumado na colecção permanente
do museu, o igualmente delicado tema da familiaridade que,
postumamente (quando Wagner morreu em Veneza, o século XX ainda nem
sequer tinha começado...) , os descendentes do compositor mantiveram
com o topo da pirâmide social nazi ocupa toda a primeira exposição
temporária no novo edifício principal. As regulares deslocações
de Adolf Hitler, um furioso wagneriano, ao teatro de ópera que
Wagner mandou construir na década de 70 do século XIX (a Bayreuth
Festspielhaus) não são propriamente novidade, mas nunca o Museu
Richard Wagner tinha exposto e documentado tão frontalmente as
comprometedoras ligações dos descendentes do compositor com o topo
da pirâmide nazi, abrindo o álbum da família para mostrar por
exemplo as fotografias em que as sobrinhas do compositor aparecem de
braço dado com o Führer.
Mas enfrentar os
fantasmas do legado wagneriano faz parte da missão da instituição,
declarou abertamente à Reuters o director, Sven Friedrich, na visita
guiada de sexta-feira: "Quando abriu, há quase 40 anos, o Museu
Richard Wagner não estava completo. Este museu não deve ser apenas
sobre a música e as óperas de Wagner, mas também sobre a recepção
da sua obra (...) e sobre as relações da sua família com Hitler."
E é assim que, como conta a agência noticiosa, os esqueletos que
muitos wagnerianos prefeririam nunca ter visto sair do armário
passam agora a conviver com os itens mais benignos da colecção
permanente – entre os quais se incluem figurinos originais das
óperas de Wagner, manuscritos do compositor, e muitos materiais
audiovisuais – num novo edifício principal de vidro e cimento
contíguo à villa que o compositor construiu e ocupou em Bayreuth, a
Wahnfried, e que ironicamente sofreu danos severos durante a Segunda
Guerra Mundial.
Assuntos de família
A reabertura do
Museu Richard Wagner foi agendada para coincidir com o arranque de
mais uma edição do Festival de Bayreuth, talvez o mais singular dos
acontecimentos do calendário anual da ópera – os bilhetes, como
sublinhou o responsável comercial do festival, Heinz-Dieter Sense,
citado pela France-Presse, continuam a ser dos mais difíceis de
obter do mundo, com esperas de 13 ou 14 anos para certas produções.
Para as 30 representações agendadas até 28 de Agosto (em cena
estarão Tristão e Isolda, o Lohengrin, O Holandês Voador e as
quatro óperas que compõem a mais seminal das construções
wagnerianas, O Anel dos Nibelungos), foram postos à venda 60 mil
bilhetes, um quarto dos quais se destina à poderosa Sociedade dos
Amigos do Festival.
Depois do escândalo
da iconoclástica encenação de Franz Castorf para a tetralogia O
Anel dos Nibelungos, em 2013, em pleno bicentenário do compositor, o
caso deste ano parece ser a nova produção de Tristão e Isolda
dirigida pela polémica Katherine Wagner, neta de Wagner e actual
directora principal do festival. O problema não é só o facto de o
currículo de Katherine não se mostrar propriamente abonatório (em
Bayreuth limitou-se a dirigir um espectáculo muito mal recebido pela
crítica e pelo público); como sempre em Bayreuth, há telenovelas
de bastidores: em Junho, vários jornais alemães noticiaram rumores
de que a meia-irmã de Katherine e co-directora do festival, Eva
Wagner-Pasquier, foi impedida de se aproximar dos ensaios por
imposição do todo-poderoso maestro Christian Thielemann, que terá
ameaçado retirar-se da produção caso a sua vontade fosse
desafiada. Os rumores do complot contra Eva, que já há mais de um
ano anunciou que se retirará da direcção do festival no fim desta
edição, foram "vigorosamente desmentidos" pela
organização do festival, mas terão sido levados a sério pelos
advogados da bisneta do compositor e também por Daniel Barenboim,
actual director do La Scala de Milão e da Berlin Staatsopera. Num
depoimento emitido a título estritamente pessoal, o maestro
considerou o tratamento a que Eva foi submetida "desumano":
"Pensei que não se podia privar uma pessoa da sua liberdade de
movimentos – a não ser tratando-se de um criminoso."
Como se não
bastasse (os enredos em Bayreuth são sempre bastante barrocos), o
actual maestro da tetralogia do Anel, o russo Kirill Petrenko,
condenou publicamente a substituição de última hora do tenor
canadiano Lance Ryan, que foi o Siegfried nas duas últimas
temporadas, por Stefan Vinke, considerando-a "totalmente
indigna". Informação de bastidores: a ordem terá sido dada
pelo rival Thielemann, depois de se ter visto preterido em favor de
Petrenko para o ambicionado cargo de director da Filarmónica de
Berlim.
Não foi o primeiro
(e avaliar pelo historial dificilmente será o último) ajuste de
contas em Bayreuth. Mas, e para voltar ao início desta notícia,
numa coisa tanto Katharine como Eva estão do mesmo lado da
barricada: pelo menos até à inauguração deste domingo, nenhuma
das duas quis ir conhecer o novo museu.
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