O
país que está à beira do abismo já não funciona há muito tempo
MARIA JOÃO
GUIMARÃES (em Atenas) 08/07/2015 - 07:17
O problema não é
de agora, é de há cinco anos. Não faltam só remédios nas
farmácias — faltam medicamentos e coisas básicas nos hospitais.
Há quem seja operado e saia da cirurgia com fita-cola porque não há
compressas.
Antes de haver filas
no multibanco havia filas para comida. Antes de haver falta de
medicamentos nas farmácias havia falta de medicamentos nos
hospitais. Havia doentes a sair com fita adesiva de operações
porque não havia pensos. Havia organismos públicos sem telefone
porque a conta não tinha sido paga.
Eugenie Moustis,
farmacêutica na zona de Petralona, acabou de receber alguns
medicamentos para o dia. Não são muitos, mas antes também já não
eram, explica. Irrita-se com os relatos de que há falta de alguns
remédios nas farmácias. “Para já, para já, não temos muitos
problemas. Podemos vir a ter, até ainda esta semana, mas para já
não temos. Os problemas estão sobretudo nos hospitais – aí é
que não há medicamentos nem outras coisas”, diz. “Os nossos
maiores problemas não são dos últimos dias”, sublinha. “Os
nossos problemas são dos memorandos.”
Konstantina, jovem
estudante de literatura inglesa de 22 anos, confirma: “O meu tio
foi operado no ano passado e era preciso levar uma série de coisas,
porque não havia. Não havia compressas nem pensos. Não sabíamos
dos pensos, por isso ele saiu de lá com fita adesiva, daquela maior,
a colar a cicatriz”, conta, no restaurante do centro de Atenas em
que trabalha em part-time enquanto acaba o curso.
A universidade em
que estuda, conta, tem outro problema: não há limpeza. As
empregadas foram despedidas, por isso nada é limpo. “Eu vivo
longe, demoro a chegar. Não tenho maneira de evitar ir à casa de
banho”, diz.
Isso repete-se de
organismo público em organismo público. No centro de saúde
infantil de Kaisariani falta demasiadas vezes o básico. Por exemplo:
não houve telefone durante três semanas. “A pediatra telefonava
às famílias do seu telemóvel”, conta Electra Batha, antropóloga
social do centro. “A conta não era paga desde 2011, por isso
cortaram. Depois de três meses, lá voltámos a ter.”
Não são só os
telefones que não funcionam. “Como uma das imposições do
memorando era que por cada dez reformados da função pública pode
entrar um, tínhamos 70 pessoas a trabalhar e agora temos 40. E como
há muito mais problemas, precisávamos era de ser mais.”
"Temos de
ajudar"
Com a crise a
continuar, os casos “estão cada vez mais complicados”, diz a
assistente social Katerina Zolota. Ela faz o que pode, mas sente-se
“sem ajuda”. Há um caso em especial que está a deixá-la com os
nervos em franja. “Temos quatro irmãos cujos pais não conseguem
tratar deles. Estamos a tentar encontrar um sítio para eles, mas
está tudo cheio. Só se os separássemos – um ia para Salónica,
outro para outro sítio…” Uma separação que a assistente social
do centro preferia evitar.
“A Katerina anda a
fazer tudo por eles”, conta Electra. “Já limpou a casa toda, já
foi cozinhar para eles…” Katerina encolhe os ombros. “Não
consigo fazer mais nada. Às vezes penso: Ok, dêem-me um tiro!”,
diz. “Mas depois temos de ajudar, ou deixá-los morrer. Como não
podemos deixá-los morrer, temos de ajudar”, diz.
Tanto Electra como
Katerina sublinham que “o problema não é de ontem, é de todos
estes anos.” Bancos fechados, ao pé disto, não é o mais
importante. “Tanta gente que não pode levantar nem cinco euros. E
estamos nisto há cinco anos”, sublinha Electra.
Noutra zona da
cidade, em Keramikos, há uma fila para comida ao lado de um grafitti
que podia aparecer em qualquer roteiro de Street Art. Há muitos
idosos com roupas já gastas, há mães com filhos adolescentes, há
imigrantes, há uma grande mistura – peles escuras, olhos claros,
lenço na cabeça, crucifixo ao peito.
E há um misto de
tristeza, pontuada por erupções de indignação e pequenas
escaramuças por causa do lugar na fila, mas também alguma alegria,
enquanto são dados os 2700 snacks do dia.
Nesta última semana
em que os bancos estiveram fechados e os transportes foram gratuitos,
houve um aumento de 25% das pessoas a aparecer neste centro, chamado
“food from the heart” para levar comida, diz a fundação
Stelios, que gere o centro. O projecto é de Stelios Haji-Ioannou,o
fundador da Easy Jet.
Jerry, 42 anos, é
das poucas pessoas que aceita falar, e em inglês, graças aos anos
que passou em Toronto. Voltou para a Grécia em 2002, e está a
pensar ir de novo. “Trabalho na construção, canalização, mas
não tenho nada aqui – há quatro anos que não tenho trabalho”,
diz. “Por sorte tenho um amigo que me deixa viver na casa dele. Mas
não é vida. Tenho de recomeçar a minha vida e acho que não vai
ser aqui.”
Pelo que vai vendo
nas notícias, talvez seja mesmo esta a altura para tomar uma
decisão: “A crise vai durar. Euro ou não euro, vai durar.
Francamente, tanto me faz. Não vejo uma solução para mim, aconteça
o que aconteçer.”
Quase ao dobrar a
esquina, está a Igreja de São Jorge, que serve todos os dias
refeições quentes a 350 pessoas em vários turnos, diz-nos o
responsável.
O México "está
melhor"
A refeição já
acabou, mas encontramos a sair Julia Abrego, 52 anos, que arrasta a
filha e um carro de compras antes de ir ao mercado. Cabelo arranjado,
unhas pintadas, não parece a típica pessoa que precisa de comer
aqui. Mexicana, veio viver para a Grécia “há já muuuitos anos”,
depois de casar com um grego. “Quero ir-me embora o mais depressa
possível. Esta terra é muito bonita mas é para os gregos”, diz.
Julia suspeita que o seu filho mais velho foi morto por extremistas
do Aurora Dourada, o partido xenófobo que tem vários membros
acusados por vários crimes. “Dizem que foi um acidente mas eu não
acredito. Nunca me deram o relatório da autópsia.”
Não é só por isso
que quer ir para o México. “O meu marido morreu em 2009. Recebia
uma pensão dele, de 1200 euros. Agora recebo 600. Tenho três filhos
para sustentar. Percebe agora porque é que o Tsipras não podia
cortar nas pensões?”, pergunta, referindo-se ao primeiro-ministro
grego. “Já chega!”
Se tiver de escolher
entre euro ou dracma, ela prefere a moeda europeia. “Desde que não
cortem as pensões!”, sublinha. Mas ela acha que a Grécia está
perdida, qualquer que seja a moeda. “No México também há
corrupção, também há problemas, mas a minha família diz-me que
está melhor do que aqui”, comenta. “O problema é que não
consigo juntar dinheiro para a viagem”, lamenta.
Numa das várias
clínicas sociais e comunitárias de Atenas, Stavros veio buscar os
medicamentos para a sua mãe, que tem diabetes e tensão alta. Já
veio no sábado, e não havia. A farmácia depende de doações, e
assim nunca se sabe o que há. Mas quando chega a sua vez, ele
consegue as quatro caixas de medicamentos. “Se não tivesse, ia ser
complicado. A minha mãe não tem reforma, e eu sou electricista, mas
só de vez em quando tenho trabalho”. Como muitos gregos, Stavros,
de 54 anos, voltou a viver na casa que era dos pais, agora com a mãe,
de 82. “Não temos a certeza de nada do que vai ser o dia
seguinte”, conclui.
Se é euro ou
dracma? “Ainda é cedo para dracma. Agora não é a altura, e as
pessoas ainda não estão preparadas. Mas se o que nos pedirem for
muito mais, vai chegar a uma altura em que poderá ser o dracma”,
considera.
Stella, 48 anos, com
uma filha de dez e nenhuma esperança, está à espera que abra um
centro de distribuição de comida. É o retrato do mais fundo da
crise: está sentada ao colo do namorado, ambos em cima de um cartão
no chão, marcas de dependência de droga, uma nódoa negra escondida
por um cabelo mal pintado.
A fila para a comida
é o retrato do que Stella chama o gueto de Omonia: muitos corpos
magros de heroína e muitos imigrantes que parecem não ter quase
nada. pergunta. “Fumas? Era para pedir um cigarro. Era fixe se
fumasses. Não é muito saudável apanhar do chão.”
Levanta-se na
expectativa de que já seja a hora da distribuição, e comenta.
“Isto está péssimo. Não há trabalho, quando há trabalho não
pagam, a educação para a minha filha é muito má…” Mas Stella,
uma grega-americana com sotaque a condizer, não está completamente
alheada. “Era bom um acordo, mas não acredito. Acho que isto só
vai piorar. Como no Mad Max, viste esse filme?”
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