sexta-feira, 17 de julho de 2015

Vem dar uma voltinha no meu tuk-tuk

LISBOA
Vem dar uma voltinha no meu tuk-tuk

O Observador foi em viagem num dos triciclos que circulam na capital, sem legislação própria, para perceber porque é que fascinam turistas, irritam taxistas e deixam os moradores de cabelos em pé.

O Miradouro da Senhora do Monte é um dos locais mais frequentados por tuk-tuks
Catarina Lopes

João Pedro Pincha / 17/7/2015 / OBSERVADOR
Vruuuuuuuuum, vruuuuuuuuum, vruuuuuuuum, criiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. Um cético que olhe de fora talvez não acredite que aquele pequeno triciclo avermelhado seja capaz de galgar eficazmente as sinuosas ruas lisboetas, mas a verdade é que não parece haver obstáculo que trave um tuk-tuk. Seja a subir da Baixa para o Castelo, seja a esquivar-se aos elétricos constantes, seja a cavalgar para a Senhora do Monte ou a descer as ruas inconstantes de Alfama, os tuk-tuk já fazem parte da paisagem de Lisboa e a facilidade com que circulam e estacionam é tal que dá a ideia de que sempre aqui estiveram.

Georgete, contudo, sabe bem que tuk-tuks são coisa recente pelo centro de Lisboa. Ela tem uns setenta anos e pouco mais de cinquenta foram passados no Largo do Contador-Mor, paredes meias com o Miradouro de Santa Luzia, não muito longe do Castelo, onde o movimento destes veículos turísticos é constante. “Ui, nem me fale”, atira mal lhe falamos nisto. Está bem, não falamos, vamos antes contar como foi a viagem que uma equipa do Observador fez de tuk-tuk.

No dia anterior à conversa com Georgete, mais ou menos pela mesma hora, aquela em que o sol torra o incauto que não se previna com um chapéu, passámos pelo Miradouro de Santa Luzia a bordo de um destes triciclos. “Vão lá ver esta vistinha”, disse o condutor, estacionando junto a outros dois tuk-tuks. “Ah já têm aqui um sítio próprio para parar”, comentámos. “Mais ou menos…”
Para o motorista do tuk-tuk que apanhamos na Praça da Figueira, quem ia a bordo eram turistas portugueses, de fora de Lisboa, que poucas vezes tinham vindo à capital. Por isso, queriam ver os pontos principais do centro, os que habitualmente são procurados por estrangeiros. Foi fácil fazer o negócio: por 45 euros, tínhamos direito a uma hora de passeio por sítios escolhidos pelo condutor, que também daria umas explicações sobre o que visitássemos. Se houvesse algum sítio específico onde quiséssemos mesmo ir, era só dizer. Mas não, queríamos era ser guiados.

As regras virão. “A seu tempo”

Vruuuuuuuum, vruuuuuum, criiiiiiiiiiiiiiii, vruuuuuuuuuuuum, criiiiiiiiiiiii. Ultrapassados dois elétricos e fintado o trânsito na Baixa, a primeira paragem é na Sé. O motorista Rui, chamemos-lhe assim, já foi dando algumas explicações pelo caminho, mas não foi fácil ouvir devido ao barulho que o tuk-tuk faz. Falou do terramoto de 1755, que aconteceu “ou no dia de Todos os Santos ou no dia de Santo António”, que pôs em causa a fé dos lisboetas e destruiu mais uma das torres do monumento do que a outra, “por isso é que isto está assim”.

O terramoto de Lisboa foi a 1 de novembro, Dia de Todos os Santos, e de facto levou ao desabamento de uma torre da Sé, mas nenhuma das duas que hoje lá estão. “As barbaridades que eles dizem…” Paulo Cosme, secretário-geral do Sindicato Nacional da Atividade Turística, Tradutores e Intérpretes (SNATTI), alterna entre o tom jocoso e desgostoso quando se trata de falar sobre os condutores de tuk-tuk. O nosso, Rui, admite-nos a páginas tantas que não tem qualquer formação sobre turismo ou sobre Lisboa e que o que vai dizendo é fruto de autoaprendizagem.

tuk-tuk
Os próprios motoristas de tuk-tuk pensam que devia haver regras claras. Foto: Catarina Lopes

Esta é uma das coisas que motivam queixas de vários setores contra estes veículos turísticos. “Inventam imenso, quando não sabem inventam ainda mais”, diz Paulo Cosme, indicando que tem inúmeros exemplos de “disparates” que os condutores de tuk-tuk dizem aos turistas. Eis alguns:

A Ponte 25 de Abril chama-se assim porque foi inaugurada nesse dia de revolução.
O Cristo Rei é mais pequeno do que o do Rio, porque não tivemos dinheiro para fazer um maior.
[No Rossio, cujo nome oficial é Praça D. Pedro IV] O tipo a cavalo na praça foi o quarto rei de Portugal.
A bem da verdade, digamos que o motorista Rui não deu nenhuma informação deste género, mas cometeu mais uma imprecisão histórica além da relativa ao dia do terramoto. Junto ao Miradouro da Senhora do Monte, apontou para uma cúpula na colina oposta e disse: “A basílica da Estrela foi feita com as pedras que sobraram de Mafra pelo D. João V”. O convento de Mafra, mandado erguer pelo rei Magnânimo, é da primeira metade do século XVIII, enquanto a Estrela é já do fim do século. Mesmo que algumas pedras tenham viajado da zona saloia para Lisboa na altura, a basílica foi ideia de D. Maria I, neta de D. João.

“Nós não podemos fazer absolutamente nada”, queixa-se Paulo Cosme, porque até agora, em Lisboa, não há regulamentação para esta oferta em nenhuma vertente: não há regras sobre circuitos e locais de paragem, não há normas sobre zonas de interdição, não há diretivas sobre ruído e poluição e também não estão definidos os requisitos mínimos para conduzir um tuk-tuk. Em alguns anúncios de emprego disponíveis na internet, o que se pede aos candidatos a motoristas é que tenham o 12º ano, carta de condução categoria B e saibam falar inglês. “Conhecimentos de francês, alemão ou Espanhol serão altamente valorizados”, lê-se em várias propostas.

Quem emite a licença que permite às empresas de tuk-tuk operarem é o Turismo de Portugal. O Observador está há semanas a tentar perceber junto desta entidade em que consiste o processo, quantos veículos existem atualmente em Lisboa, quais os requisitos para se ser condutor e se há algum tipo de fiscalização a esta atividade. O Turismo de Portugal ainda não respondeu.

Por outro lado, a Câmara Municipal de Lisboa está há alguns meses a trabalhar num regulamento para os tuk-tuk, depois de duas recomendações da assembleia municipal. Entre outras coisas, nesse documento deverão estar inscritos os locais próprios de estacionamento e os circuitos autorizados dentro da cidade. Em março, o vereador Duarte Cordeiro garantia que o regulamento estava quase pronto. Há algumas semanas, ao Observador, a câmara apenas disse que tudo será apresentado “a seu tempo”.

No Porto, a regulamentação já existe pelo menos desde janeiro. Segundo o gabinete de comunicação da câmara, não existem normas gerais para os tuk-tuk, mas cada empresa tem bem definidos quais os percursos que podem ser feitos e quais os locais onde podem parar. Foi um processo feito individualmente, com cada um dos operadores turísticos da cidade.

“Crescente mal-estar”

O motorista Rui também acha que falta regulamentação. “Andamos sempre a jogar ao gato e ao rato com a polícia”, diz já perto do Miradouro da Senhora do Monte, poiso habitual de tuk-tuks, que ali levam centenas de turistas diariamente. Neste local, é muito frequente os triciclos terem de parar em segunda ou terceira fila, porque os lugares de estacionamento são escassos e estão quase sempre ocupados. Ainda assim, o movimento destes veículos turísticos por aqui é constante, das oito da manhã até às nove ou dez da noite, para desgosto de Maria de Jesus. “Isto é tuca-tuca-tuca sempre por aqui abaixo”. O prédio de Maria é logo ao lado do miradouro e as janelas dela estão ao nível do passeio, por isso todos os barulhos, por muito pequenos, entram-lhe pela casa adentro. “Eles vão por aqui abaixo aos gritos, vão com caipirinhas ‘eeeeeeeeh’ por aqui abaixo”.

A queixa é comum a várias das pessoas com quem falámos nos bairros históricos. “Dá vida à cidade, é certo, só que são incomodativos”, lamenta Manuel Lopes, habitante da Calçada de Santo André, não muito longe do Miradouro das Portas do Sol, outro local por onde passeámos. Para ele, e para outros moradores da zona, o problema não são os tuk-tuks nem sequer os turistas, antes o barulho que provocam. “Os silenciosos tudo bem, até dão animação”, diz Manuel, que afirma ter de fechar as janelas sempre que quer ouvir a televisão. O mesmo diz Alzira Simões, que se deita cedo e vê passar tuk-tuks pela zona até à noite. “Se me saísse o euromilhões, eu nem um minuto mais cá estava”, atira.

Segundo Miguel Coelho, presidente da junta de freguesia de Santa Maria Maior, que agrega precisamente as áreas de Alfama, Castelo, Baixa e Chiado, “a atividade diária e constante dos tuk-tuk provoca muito ruído e poluição pelos sítios onde passam e tem vindo a causar um crescente mal-estar nos residentes dos bairros históricos, pondo em causa o seu direito à privacidade e à tranquilidade”, lê-se na recomendação aprovada em novembro na assembleia municipal.


Tuk Tuk
Na Baixa, em especial na Rua do Comércio, são visíveis inúmeros tuk-tuks todos os dias

Ganhar a vida

Enquanto nos passeia de volta à Baixa, Rui vai contando coisas sobre Lisboa, sobre a vida e sobre este negócio. Para ele, “o mercado está saturado” porque já há mais de 250 veículos nas ruas da capital. É uma estimativa própria, porque números concretos ninguém os parece ter. A câmara diz que quem tem de responder é o Turismo de Portugal, o Turismo de Portugal não respondeu e a Associação Nacional de Empresários de Tuk Tuk (Astuk), a quem o Observador enviou uma série de questões, também não deu respostas.

O presidente da ANTRAL, associação que representa os taxistas e que desde sempre se opôs a que os tuk-tuk circulem sem regras, afirma que “já no ano passado havia 270″ triciclos em Lisboa e que “isto está a passar tudo o que seria razoável”. A ANTRAL, juntamente com outras organizações do setor do táxi, participou em diversas reuniões com a câmara para definir o regulamento municipal, nas quais as empresas de tuk-tuk não estiveram representadas. “Fomos nós que impedimos que eles fossem”, confirma Florêncio Almeida, que usa a distinção entre os táxis (meio de transporte de passageiros) e os tuk-tuk (veículos turísticos) para justificar a ausência destes nas reuniões.


Indiferente a querelas, Rui conduz o tuk-tuk para ganhar a vida e só quer que não o chateiem. Está a acabar um curso superior e, como não tinha perspetivas imediatas de emprego duradouro, veio para este trabalho. Às vezes, admite, chega a trabalhar 12 horas por dia, mas porque quer. No fim do verão, terá acumulado bom dinheiro para o resto do ano e leva daqui muitos contactos estrangeiros e histórias para contar.

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