A
lição grega
ANTÓNIO GUERREIRO
24/07/2015 / PÚBLICO
Recapitulemos as
principais lições que até os mais distraídos tiveram obrigação
de aprender com a crise grega: 1º) A relação credor–devedor está
hoje no centro da vida económica, social e política. Ela veio
substituir a relação capital–trabalho que pertence a uma fase
anterior do capitalismo e introduziu uma nova técnica de poder e uma
nova “governamentalidade”. Essa relação produz um novo sujeito
universal que é o “homem endividado” tal como ele foi definido e
analisado pelo sociólogo Maurizio Lazzarato. A principal actividade
do homem endividado (tal como o seu análogo colectivo: o país
endividado) é pagar. Nas antigas sociedades disciplinares, ele seria
preso se não pagasse, mas as actuais sociedades não o querem
encerrado porque isso seria remetê-lo para o exterior e é preciso
que ele não saia do interior da esfera dos credores para continuar a
pagar. 2º) A dívida é inesgotável, impagável e infinita. Foi com
o capitalismo financeiro que a “divída finita e móvel” de
antigamente se tornou “dívida infinita”, como a dívida do homem
perante Deus. Esta dívida que não pode ser resgatada funciona
segundo o modelo do pecado original: no reino dos homens, o devedor
nunca acabará de pagar a sua dívida. Recordemos que, para a
teologia cristã, existe uma única instituição legal que não
conhece interrupção nem fim: o inferno. Mas há aqui umdouble bind:
segundo a lógica do capital, um povo é tanto mais rico quanto mais
se endivida. Se a dívida não fosse infinita e o devedor pudesse,
num determinado momento, saldar as suas dívidas, deixava de haver
capital, o capitalismo extinguia-se porque desaparecia a relação de
forças entre devedores e credores e a dominação política e a
assimetria que essa relação supõe. Lazzarato, mostrando que o
capitalismo consiste em encadear dívidas umas nas outras, até elas
se tornarem infinitas, estabelece uma analogia entre o funcionamento
do crédito e a condição em que se vê Joseph K, a personagem de O
Processo, de Kafka. 3º) Apesar de a dívida ser impagável e
infinita, é necessário manter publicamente a aparência (uma crença
que deve circular publicamente) de que ela é finita e pagável. A
dívida da Grécia é tão infinita como a de muitos outros países.
Mas o problema é que, por várias circunstâncias, ela entrou no
campo de uma racionalidade que lhe retirou a máscara que protege
muitas outras. Sem essa máscara, ela exibiu-se como monstruosa, isto
é, algo que se mostra e, assim sendo, cresce sem controlo. O
capitalismo financeiro não vive sem o motor da dívida, mas precisa
que se mantenha a promessa de que ela será honrada. Honrá-la não é
pagá-la, é manter a possibilidade da fuga em frente. A catástrofe
dá-se quando essa fuga é interrompida. 4º) A moeda especificamente
capitalista é a moeda de crédito, a moeda-dívida, e não a
moeda-troca. O capitalismo financeiro não tem nada a ver com o doce
comércio da moeda-troca. Aí estamos numa relação simétrica. A
racionalidade do capital é a de uma relação assimétrica. Trata-se
de uma “racionalidade irracional” cuja condição normal é o
“estado terminal”. 5º) O discurso dos economistas pertence hoje,
de direito, à mesma ordem do discurso dos padres e dos
psicanalistas: esta é a conclusão a retirar do que foi dito no
ponto anterior. 6º) O capitalismo sempre foi capitalismo de Estado.
Deleuze e Guattari já o tinham dito em 1972, no Anti-Édipo, mas
agora percebemos perfeitamente que o capitalismo nunca foi liberal. A
crise grega mostrou-nos claramente até que ponto se deu a integração
e a subordinação do Estado à lógica financeira: o Estado age por
conta dos credores e das suas instituições supranacionais.
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